Consultório espiritual
[A correspondência apresentada nesta rubrica é ficcional para proteger a veracidade dos factos vividos pelos seus intervenientes. Todas as semanas.]
Cara Voz do Deserto,
durante a minha adolescência fui uma membro dedicada de uma igreja carismática. Apesar dos muitos milagres que me passaram pelos olhos, perdi a fé após uma viagem missionária a um país muçulmano. Hoje não possuo qualquer tipo de identificação com o universo religioso. Acaba o meu doutoramento em Antropologia na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. A minha tese versa sobre "O transgender
esmagado pela imposição do binómio sexual do Ocidente - uma análise às casas de banho da cadeia de restaurantes do MacDonald's na cidade de Lisboa". Considero-me uma libertária de esquerda.
Entretanto apaixonei-me pela Ondina, uma das pessoas que entrevistei na fase de estudo no terreno. A Ondina já foi um Horácio. Com a sua redefinição sexual não abandonou, contudo, o primado de uma educação religiosa rigorosa adquirida no Brasil, seu país de origem. Gostaria de saber se existe alguma igreja evangélica no nosso país que receba e estimule a comunhão entre gendertrenders.
Beatriz Batalha
Cara Beatriz,
desconheço se alguma comunidade evangélica acolhe transexuais que reincidam na religião. Na minha igreja até há militantes do Partido Socialista, o que significa que as perspectivas não são assim tão más.
No Evangelho de Mateus (capítulo cinco, versículo trinta), Jesus aconselha à amputação de mãos caso estas nos façam pecar. Nada diz sobre orgãos viris e é possível que o Mestre estivesse a usar um recurso estilístico. Arrancarmos partes do corpo, ainda que em sentido figurado, depende da literalidade que atribuimos ao termo "pecado". Analise as intenções do seu/sua companheiro/a. Conheça-lhe os hábitos de leitura.
Devo reconhecer a dificuldade de nos sentirmos bem numa igreja sem uma dose mínima de ortodoxia. Mulheres que já foram homens são sempre um terrível desafio para clérigos.
Tenho ideia da religiosidade brasileira. Raramente removível. Iria ver que se fosse ele/a budista e não havia chatice nenhuma. Aconselho uma viagem ao Tibete ao som de Caetano Veloso e a que evite o Canal de televisão "Canção Nova" (três bons antídotos contra a excessiva assertividade protestante).
Volte sempre à Voz do Deserto ainda que seja apenas para obter informação estatística sobre minorias religiosas.
O seu dedicado,
Tiago de Oliveira Cavaco.