quinta-feira, agosto 31, 2017

Novidades literárias e musicais

Neste vídeo.

terça-feira, agosto 29, 2017

Vivo para ver o rosto de Jesus Cristo

E isso leva-me ao rosto dos outros.

segunda-feira, agosto 28, 2017

Sozinho no Olimpo - uma (semi) leitura crítica da tradução da Bíblia feita por Frederico Lourenço - Parte III e última

[Tento ser esperançado em relação ao efeito do que escrevo, mas não esperava tanto barulho nesta série de três textos sobre a tradução da Bíblia feita pelo Frederico Lourenço. Mesmo tendo em conta o uso de um tom que pode ter soado exagerado pela minha parte, creio que, com o Tiago Nunes Oliveira, acertámos em alguma coisa - os nossos tiros não caíram à água. É da discussão destas coisas que se reforça um cuidado superior para quem, numa tarefa tão nobre quanto a do Frederico Lourenço, se aplica na tradução de um texto. Espero que o Frederico arranje espaço no seu coração para albergar alguma pertinência nas críticas que lhe fazemos.

É também no domínio do coração que quero colocar duas notas prévias. Em primeiro lugar, para mim próprio. Não quero ser injusto nas críticas que faço e para mim ser injusto é o mais fácil. À parte da graça de Jesus, sou uma pessoa fundamentalmente injusta. E por isso, até nos assuntos tidos como mais cristãos, em que defendo a minha fé, posso cair em pecado. Portanto, não asseguro que não pequei em toda esta crítica ao Frederico Lourenço. Se assim for, espero ser iluminado pelo Espírito Santo para me arrepender.

Ao mesmo tempo, esta possibilidade de haver pecado no meu coração não me deve amolecer para a tarefa de apontar os erros palpáveis do Frederico Lourenço. Mesmo que tenha traves nos meus olhos, há argueiros que o Frederico deve tirar, e eventualmente com a ajuda de críticas como a minha. Um dos elementos que acho mais trágico na tradução do Frederico Lourenço é o facto de a sua imaginação já ter sido capturada pelo mundo do Dan Brown. Certamente que uma pessoa da erudição do Frederico nunca perdeu tempo a ler o Dan Brown mas, no que diz às ideias que enquadram o desenvolvimento do cristianismo nos primeiros séculos, o Frederico comunga fundamentalmente do mesmo imaginário. Aqui e ali cheira-se o mesmo aroma das teorias da conspiração que capturaram as últimas gerações. Nesse sentido da teoria histórica, o Frederico Lourenço é um Dan Brown com a Sophia de Mello Breyner Andresen no lugar do Stephen King. Eu e o Tiago Nunes de Oliveira vamos ter de lhe passar alguma bibliografia, porque no último texto que partilhou no Facebook dá para ver que ainda se agarra à teoria histórico-crítica como o último progresso teológico.
Encerro com o último texto destes três. Como eles estavam nuclearmente escritos antes de serem publicado, acrescento nestes parêntesis rectos o que me parece útil acrescentar, tendo o efeito gerado pelos dois anteriores.]

Não sou teólogo. Sou um pastor. E é como pastor que me quero situar, precisamente no terreno onde o Frederico Lourenço frequentemente larga comentários depreciativos acerca dos fundamentalistas.
[Para não parecer que falo no vácuo, chamo apenas um exemplo, neste caso de uma entrevista dada à revista da Tap, a Up, onde a determinada ocasião diz: “Nos países ocidentais há uma diminuição de fervor religioso que tem que ver com o fosso cada vez maior entre os ideais de vida de uma sociedade livre e democrática e aquilo que é o posicionamento retrógrado do catolicismo em relação a tantas coisas. Ao mesmo tempo, assistimos pelo mundo fora ao aumento exponencial de conversões a formas fundamentalistas do cristianismo evangélico. Não me parece que o cristianismo esteja a avançar em bloco rumo a uma fase mais esclarecida”. Será da minha injustiça congénita ou mais alguém consegue sentir a arrogância desta afirmação? A mim ninguém me colocou no lugar de porta-voz da honra ferida católica nem das “formas fundamentalistas do cristianismo evangélico". Sou mesmo eu que, por opção, me meto nessa dupla tribuna. Quem não tiver paciência para esta minha advocacia oficiosa, que vá ler outra coisa qualquer e não me chateie. Sá cá fica quem tiver solidariedade para com esta premissa.]

Como se está mesmo a ver, neste mapa onde de um lado está o “posicionamento retrógrado do catolicismo” e as “formas fundamentalistas do cristianismo evangélico” e do outro os “ideais de vida de uma sociedade livre e democrática”, onde presumo que se encontre expectavelmente o próprio Frederico Lourenço,  eu faço parte do primeiro grupo.

Claro que se quiséssemos ser rigorosos, eu não deveria afirmar que sou fundamentalista. Isto porque o fundamentalismo tem um contexto histórico que só muito dificilmente encaixaria com justiça nos meus ombros (já não estamos na década de vinte norte-americana do século passado). A questão é que não parece que as pessoas que usam e abusam do termo fundamentalista, como o Frederico Lourenço, estejam interessadas na chatice de ser rigorosos com a história. É por isso que, tendo em conta esse escasso rigor com que o Frederico Lourenço emprega o termo “fundamentalista”, não me importo de lhe vestir a pele. Fundamentalista seja, portanto.

Vamos portanto a questões bem práticas. Se eu, que nem o grego terminei no Seminário Teológico Baptista em Queluz, estou em posição de, enquanto mau aluno, poder criticar o mestre que é Frederico Lourenço, talvez assim se demonstre que em grande parte serão os fundamentalistas aqueles que ao longo do tempo vão manter a arte de ler grego e questioná-la além dos consensos académicos que rapidamente passam de vanguarda a ultrapassados. Acreditem, nós, os fundamentalistas, estudamos dois mil anos deste jogo jogado - vemos as gravações das partidas e conhecemos as fintas e os falhanços. As conquistas académicas, volúveis a sofisticações várias, passam e nós, os leitores por sofisticar, vamos permanecendo. Quem se mantém a ler o texto independentemente dos humores dos xerifes catedráticos, afinal?

Nesse sentido, não será precisamente aos fundamentalistas a quem o Frederico Lourenço deveria mostrar alguma gratidão? [E eventualmente até aos do “posicionamento retrógrado do catolicismo”?] Quem, como os fundamentalistas, obtusamente crentes num sentido sempre mais literal do que aquele permissível aos mestres, tem mantido o texto tal como ele é? Por isso a dicotomia de Frederico Lourenço no seu primeiro volume de tradução do Novo Testamento é ineficaz: não há uma possibilidade que é a leitura crente que "silencia os problemas” (pág. 18) contra a leitura “não-doutrinária” (pág. 18) que permite “descobrir a extraordinária riqueza das (…) palavras” (pág. 18). A prova de que a leitura crente não é a burra e a de Frederico, emancipado além da categoria de crente, é a inteligente também se vê no facto de os interlocutores que terão capacidade de colocar em causa as suas teses pertencerem precisamente ao primeiro grupo. [Dos comentários dos alunos e fãs do “Professor” que foram invadindo o meu mural do Facebook saiu um número bem redondinho para aqueles que lidaram com o argumento textual exposto: zero. Ou seja, não me parece que o Fred Fan Club que tive oportunidade de observar esteja a promover grande capacidade de analisar o grego.]

[Por outro lado, aqui também se oferece um comentário em relação ao literalismo. Para facilitar, concordemos num enunciado bem simples: todos somos literalistas. Todos, cem por cento dos filhos da humanidade/do homem. Os evangélicos têm a fama injusta de serem os únicos literalistas. Mas os católicos romanos são literalistas do “este é o meu corpo” que os leva à doutrina da transubstanciação (literalismo rejeitado pelos literalistas evangélicos), e o Frederico Lourenço é literalista do “que realmente lá está escrito” que o leva a traduções absurdamente originalíssimas tendo em conta o contexto, feito do que o autor assume e o que o leitor entende (literalismo rejeitado pelos literalistas evangélicos). Todos somos literalistas em relação às coisas que tomamos como absolutamente verdadeiras. Dizer que nada pode ser levado à letra é ser literalista em relação à ideia de que nada pode ser levado à letra. Sei que isto é “Lógica Para Totós” mas não há volta a dar. Todos somos literalistas. É a vida e lidemos com ela.]

A dicotomia de Frederico Lourenço assenta numa falácia: como eu não tenho uma lógica assumida (de ser crente ou descrente) devo ser ouvido como possuindo mais lógica do que aqueles que assumem uma. Tipo: a mim, que me sobreponho às discussões rasteiras acerca de quem tem razão, é que vocês devem dar razão. Perceberam? É a vitória racional pela inexistência de qualquer razão. É triste que detectemos um sofisma tão rudimentar num conhecedor tão erudito da cultura dos filósofos. O encanto da imparcialidade continua a ser o ouro de uma época que se convence que pensa melhor desde que elimine qualquer pensamento sólido. Faz-nos falta canonizar Chesterton, de facto.

Não li tudo o que foi escrito sobre o assunto, e constatei com agrado que o José Tolentino Mendonça logo corrigiu o Frederico Lourenço. Como o Tolentino tem a civilização que eu, como protestante, não consigo ter, cito-o: “Frederico Lourenço afirma que as traduções feitas no contexto religioso são doutrinárias, apologéticas e reproduzem uma leitura pré-determinada, enquanto que a sua tem como intuito fazer “perceber, em português, exatamente o efeito que as palavras têm em grego”. Cada um tem direito à sua naiveté e às ilusões que quiser, mas entendamo-nos: não existe “a tradução” da Bíblia. Existem traduções, assim no plural, e estas têm qualidades e deficiências distintas, e devem ser acolhidas como dialogantes, longe de uma lógica primária de substituição. Que judaísmo e cristianismo tomam a Bíblia absolutamente a sério, Frederico Lourenço sabe-o bem, pois para esta sua tradução depende do trabalho de biblistas e exegetas judeus e cristãos que vê-se obrigado a citar a cada passo. É bom não morder a mão que nos dá o pão.” Oh, Tolentino! Tu tens uma maneira de falar que os portugueses aceitam - tivera eu a tua arte…

Apesar da elevação do Padre Tolentino, duvido que seja fora do meio evangélico que venham críticas duras à tradução do Frederico Lourenço. Afinal, é entre os evangélicos que a Bíblia racha mais lenha. Se seguirmos este raciocínio, posso concluir este texto dizendo ao Frederico Lourenço: os não-fundamentalistas (ou os não-católicos retrógrados), tornando-o “o Senhor Bíblia”, meteram-no num Olimpo onde a contestação não passa do chão dos mortais leigos. Paradoxalmente, parece que nós, os fundamentalistas (e os católicos retrógrados), são os que mais insistem em realmente provar o prato preparado por qualquer nova tradução a Bíblia (recordam-se que no primeiro texto escrevi: consumam esta nova tradução?). Que companhia será, afinal, a melhor: a dos deuses onde o Frederico Lourenço reina sozinho, provavelmente consolado pelos “ideais de vida de uma sociedade livre e democrática”, ou a dos homens que podem ter a audácia de o tentar corrigir?



sexta-feira, agosto 25, 2017

Ouvir

O sermão de Domingo passado, chamado "A misericórdia faz-te viver para sempre", pode ser ouvido aqui.

quinta-feira, agosto 24, 2017

É óbvio

Que sou surfista.

terça-feira, agosto 22, 2017

A preguiça

É um roubo.

Ponto de situação na questão sobre a tradução da Bíblia feita por Frederico Lourenço

1. Não é uma maravilha estarmos a discutir por causa de uma língua morta? É sinal de que a ideia cristã da ressurreição tem um poder material real. Belo Agosto de 2017, este, em que andamos às voltas à custa do grego!

2. Geralmente quando o título de um texto diz "Parte II" é porque provavelmente houve uma "Parte I" antes que disse algumas coisas que podem ser úteis para a melhor compreensão. O contexto é importante para o texto.

3. É significativo que o Frederico Lourenço tenha decidido responder. É generoso da sua parte.

4. Sendo generoso da parte do Frederico Lourenço que tenha decidido responder, registo com alguma surpresa que ele não dê nomes às pessoas que de uma forma ou outra decidiu acudir. Talvez seja da minha falta de autoestima, mas fico com a ideia de que esta ausência de nomeação funciona mantendo uma clivagem entre o "Professor" e outros para os quais o uso dos nomes não se justifica. Tendo em conta que o Frederico Lourenço termina a sua resposta exemplificando o retorno académico internacional que o seu nome adquire, será que tudo se resolve gritando para a caverna para ver quem tem maior eco?

5. Não foi feito um ataque ao Frederico Lourenço. É certo que algumas das conclusões tiradas foram duras. Mas, volto a recordar, há uma Parte I que usa um português bem claro, quanto ao valor que atribuímos à sua tradução. O que houve foi uma crítica baseada na apresentação de exemplos que, cremos, demonstram um momento particularmente pobre da obra do Frederico Lourenço (que, curiosamente, permanecem por refutar). Criticar não é atacar. Regressem ao ponto 2.

6. A questão do especialismo é todo um debate para o qual agora não contribuo. Em termos absolutos e apenas para dar uma ideia acerca de onde me situo nesta questão, talvez acredite mais em trabalho do que em especialismo - chamem-lhe ética protestante, se quiserem. Para mim, o que é fantástico no Frederico Lourenço é mais o seu trabalho do que o seu suposto especialismo (um conceito terrivelmente moderno para nós, que andamos metidos a discutir os clássicos). Argumentos de especialismo parecem-me insuficientes sempre que no trabalho concreto se encontram erros que podem e devem ser discutidos. Foi o caso aqui. A mim pouco me interessa debater ou questionar o estatuto do "Professor" - nessa bicicleta não tenho pernas para pedalar, acreditem. Quando colocámos a "competência de especialista" do Frederico Lourenço em causa foi para que ele nos desse mais e melhor do que fez naquele exemplo de tradução do texto bíblico. De resto, não nos passa pela cabeça tocar na sua "plena convicção de ser internacionalmente considerado um helenista competente na área da Linguística Grega por outros helenistas que publicam nas imprensas universitárias de Harvard, Oxford e Cambridge". Somos a favor da propriedade privada.

7. Recordo que haverá uma Parte III e final, que foi escrita antes, quando redigi todo este texto há já algumas semanas. Termino colando aqui a resposta do Frederico Lourenço e a resposta posterior do Tiago Nunes Oliveira, que era fantástico se pudesse ser refutado nos argumentos que deu, independentemente do facto de viver "do mundo fechado do protestantismo baptista" e do infortúnio de ser meu cunhado.

Resposta do Frederico Lourenço:

Pastores e helenistas

Como já tive ocasião de dizer várias vezes, num mundo ideal todos nós leríamos o Antigo Testamento em hebraico e o Novo Testamento em grego – e assim resolvia-se da melhor forma a problemática levantada pela tradução da Bíblia. Não estamos, infelizmente, nesse mundo ideal. Assim, quem traduz a Bíblia tem de ter a consciência de estar a fazer algo em prol dos outros; no meu caso muito concreto, o que desejo proporcionar às pessoas que lêem a minha tradução do Novo Testamento é a experiência, tão aproximada quanto possível em português, do deslumbramento de lermos o texto na sua língua original: grego.

Logo desde a publicação do 1º volume da minha tradução, vieram críticas previsíveis dos quadrantes que estavam habituados, há séculos imemoriais, a exercer a sua hegemonia teológica sobre o texto da Bíblia e a ter, incontestado, o privilégio de tradução da mesma. Os católicos não gostaram que eu lembrasse que a palavra que a Vulgata católica traduziu por "peccatum" significa em grego "erro". Os protestantes ficaram desgostosos por alguém vir chamar a atenção para o facto de, em tantas das suas ocorrências no Novo Testamento, "espírito santo" não surgir precedido de artigo. No entanto, não são realidades que eu inventei. São realidades que, simplesmente, existem. Qual é o problema de o público de língua portuguesa tomar consciência delas?

Uma das formas de me atacar tem sido a afirmação (que tanto católicos como protestantes têm feito) de que eu estou arrogantemente convencido da superioridade do meu trabalho. Essa é, de todas as ideias que têm sido aventadas, a mais errada de todas, já que nas minhas intervenções públicas (e quem me ouviu recentemente em São Paulo, em Campinas, no Rio de Janeiro e em Paraty é testemunha disso) tenho vincado sempre a forma como eu próprio vejo o meu projecto de tradução da Bíblia: vejo-o como tentativa necessariamente muito imperfeita (nem outra coisa seria possível!) de propor um novo olhar sobre a Bíblia (na esperança de que outros, desafiados pelo meu exemplo, venham agora fazer mais e melhor). Trata-se de um olhar que tem faltado clamorosamente em Portugal e também (segundo fui informado) no Brasil: o olhar crítico-histórico.

No que consiste este olhar? Em separar, antes de mais, toda a construção posterior, que é a interpretação teológica cristã, daquilo que é a materialidade objectiva dos textos que integram a Bíblia. Eu respeito profundamente a leitura que as igrejas protestantes têm feito da Bíblia nestes primeiros 500 anos da existência do protestantismo, mas enquanto linguista e historiador não é relevante para o meu estudo do texto de Paulo ou dos evangelhos aquilo que Lutero ou Calvino sobre eles escreveram 1500 anos depois de Paulo e os evangelistas terem escrito.

O estudo linguístico e histórico propõe somente, livre desse desenvolvimento posterior chamado "teologia", entender as realidades históricas atinentes aos textos da Bíblia: quando terão sido escritos estes textos? Quem os terá escrito? Que relação histórico-objectiva (e não teológica) estabelecem entre si? Que cristianismo está pressuposto nestes textos (mesmo que seja diferente daquilo a que chamamos cristianismo 2000 anos depois)?

Talvez a maior diferença entre a leitura teológica e a leitura crítico-histórica seja, no caso da leitura teológica, a crença de que todos os textos da Bíblia dizem, no fundo, a mesma coisa; e, no caso da leitura crítico-histórica, a constatação de que não é isso que se nos depara se nos ativermos à materialidade objectiva dos textos. Para o teólogo, não há contradição entre os evangelhos; não há contradição entre a Carta aos Romanos de Paulo e a Carta de Tiago. O historiador não se sente obrigado a atribuir a todos os autores do NT essa unanimidade artificial. No caso de Paulo e de Tiago, tão artificial, no fundo, que Lutero, pai do protestantismo, ainda pensou na hipótese de excluir a Carta de Tiago do cânone do NT. Justamente por, em rigor, não ser consentânea com Paulo na questão de "obras" e "fé".

Para o historiador, é perfeitamente natural que Paulo e Tiago tenham pensado cada um com a sua própria cabeça. É que a realidade indesmentível é esta: ambos escreveram na ignorância de que, um dia, os seus textos fariam parte de uma colectânea chamada Novo Testamento. Dar um sentido unitário a esses 27 textos, todos escritos antes da sua reunião num cânone aceite pela Igreja, é tarefa dos teólogos. Estudar esses textos na sua materialidade linguístico-histórica, livre de retroprojecções teológicas, é tarefa de linguistas e de historiadores. Cada metodologia tem o seu lugar.

Outra diferença fundamental entre a abordagem de linguistas e a de teólogos é que, tradicionalmente, a leitura teológica católica se baseia numa tradução do Novo Testamento feita mais de 300 anos depois da escrita dos textos que o integram; ao passo que as leituras teológicas protestantes tomam tantas vezes por base as primeiras grandes traduções vernáculas feitas em ambiente protestante (Lutero, King James Bible, Ferreira de Almeida).

Isto tem várias implicações. Por exemplo: quando eu leio a Bíblia no latim da Vulgata, estou a ler o texto numa língua que não tem artigo definido. Para quem não saiba: o latim não tem artigo definido; mas o grego tem. Isto implica, simplesmente, que "Espírito Santo" nunca é "o Espírito Santo" na Vulgata, porque não existe em latim palavra equivalente a "o". As primeiras traduções em toda a Europa foram feitas por pessoas que tinham sido educadas a ler a Vulgata (desde logo o próprio Lutero!). Ao começarem a repensar o texto, tiveram de o fazer em línguas que tinham todas o artigo definido. A total ausência do artigo definido em latim acabou por redundar na sua omnipresença nalgumas traduções.

Assim, quando os tradutores da Bíblia de King James (1611), tida como teologicamente incontestável em ambiente protestante, traduziram Lucas 1:35, traduziram do seguinte modo: “THE Holy Ghost shall come upon thee, and THE power of THE Highest shall overshadow thee; therefore also that Holy thing which shall be born of thee shall be called THE Son of God”.

Repare-se nos artigos definidos que coloquei em maiúsculas. Nenhum deles está presente no texto grego, que não nos fala aqui em “o Espírito Santo”, nem em “o Filho de Deus”, visto que os artigos definidos estão ausentes da frase. É claro que, noutras passagens dos Evangelhos, lemos em grego “o Espírito Santo” e “o Filho de Deus”; mas nesta passagem não temos, no texto grego, os artigos definidos.

Qual é o problema de uma tradução como a da Bíblia de King James? É que transmite a quem não tem possibilidade de consultar o texto grego uma ideia errada daquilo que está, de facto, no texto. É indiferente a presença ou não do artigo definido? Teologicamente podemos dar como adquirido que não há diferença entre “o Espírito Santo” e “um Espírito Santo”? Não me compete a mim, como tradutor, partir desse princípio; mas apenas dar a ler o que está no texto. Idealmente, devíamos traduzir para português a passagem acima citada do seguinte modo: “Espírito Santo virá sobre ti e poder de altíssimo te sombreará. Por isso, também o concebido <é> santo e chamar-se-á filho de Deus”.

Convenhamos que “Espírito Santo virá sobre ti” não é muito natural em português, já que para nós é natural “o espírito” ou “um espírito”. Por isso, neste contexto, já que não seria correcto escrever “o Espírito Santo” e fica estranho escrever “Espírito Santo” sem qualquer artigo, a opção preferível será “um espírito santo”.

No entanto, é preciso dizer que este dilema do que funciona ou não com/sem artigo definido levanta-se constantemente na tradução para português da Bíblia, desde logo numa palavra que surge muitas vezes sem artigo em grego, mas que em português fica estranha sem artigo. Na resposta de Maria ao anjo, ela diz em grego “eis a escrava DE Senhor” – e não “eis a escrava DO Senhor”. Em latim – língua que não tem artigo definido ou indefinido – estas frases ficam sempre bem: “ecce ancilla Domini”. Ao traduzirmos a frase a partir do latim sem conhecimento da frase grega, podemos subentender ambos os artigos: “eis a escrava do Senhor”; ou podíamos optar por “eis uma escrava do Senhor”.


Mas o texto grego é que tem de funcionar como diapasão. E o texto grego diz-nos claramente que não se trata aqui de “uma escrava”; mas sim de “a escrava” de Senhor. Senhor esse que é, obviamente, Deus.

Em resumo: com a minha tradução do Novo Testamento pretendo também confrontar as pessoas com o facto de as fórmulas tradicionais que temos nas nossas cabeças, depois de as termos ouvido uma vida inteira traduzidas com base noutros critérios, não corresponderem muitas vezes àquilo que está, de facto, no texto na sua língua original. Todos conhecemos “bem-aventurados os pobres de espírito”; ou “fazei isto em memória de mim”; ou “o Espírito Santo virá sobre ti”. Mas não é isso que está realmente no texto do Novo Testamento. Já para não referir que todos rezamos na missa um Pai Nosso que não reproduz as palavras que Jesus indicou que rezássemos.

É preciso voltar a estudar e compreender o texto do Novo Testamento na sua língua original: o grego. O cristianismo do século XXI deve estar apto a aceitar que o rigor linguístico não é inimigo da teologia – muito menos da fé. Nem a Bíblia se torna menos santa por lermos nela o que realmente lá está escrito.

PS: surpreendeu-me ver a minha competência numa área em que me considero especialista (Linguística Grega) posta em causa num texto que circula na internet, escrito por um pastor baptista que aduz como testemunha da minha alegada falta de competência na referida área outro pastor baptista, seu cunhado. No universo universitário, fora do mundo fechado do protestantismo baptista, o modo como se afere a competência de alguém numa área de especialização universitária é no facto de os estudos do especialista em causa serem citados de modo corroborativo por outros especialistas independentes (isto é, pessoas que não pertencem à mesma igreja, nem à mesma família - muito menos à mesma universidade; idealmente, não pertenceriam ao mesmo país). De forma inteiramente objectiva (e, por isso, não inventada por mim) os meus trabalhos especializados em revistas académicas sobre Linguística Grega são citados internacionalmente, de forma corroborativa, nalguns dos estudos mais importantes que têm saído nos últimos anos, livros cujas capas são as fotos que ilustram este post. Não sou arrogante nem convencido do meu próprio mérito no que se refere à tradução da Bíblia (trabalho que nunca poderia ser perfeito); mas estou plenamente convicto de ser internacionalmente considerado um helenista competente na área da Linguística Grega por outros helenistas, que não conheço pessoalmente, que publicam nas imprensas universitárias de Harvard, Oxford e Cambridge.

Resposta do Tiago Nunes Oliveira

O Tiago Cavaco publicou a segunda parte de uma leitura crítica da tradução da Bíblia de Frederico Lourenço. Entre os argumentos, o Tiago Cavaco utilizou alguns excertos de uma carta que lhe tinha escrito e que me pediu autorização para utilizar. Entre outros, o texto mereceu a reação do próprio Frederico Lourenço. Como o meu nome está implicado, gostava de deixar alguns esclarecimentos.

Em primeiro lugar, compreendo a reação de Frederico Lourenço. No entanto, admito que possa não ter sido claro no que diz respeito à razão principal da minha crítica à sua tradução da Bíblia. Não que acredite que a nossa discórdia seja uma mera falha de comunicação, mas porque desejo que seja clara. A razão pela qual considero a obra de Frederico Lourenço um fiasco é porque ela não cumpre o que o autor se propõe fazer. E a razão pela qual Frederico Lourenço não cumpre o que promete é simples: porque o que ele promete não pode ser cumprido! (Note-se; a minha avaliação é com base na proposta de Frederico Lourenço, não minha.)

Na introdução à obra, Frederico Lourenço afirma: “Acima de tudo, trata-se de dar a conhecer o texto bíblico num formato que, tanto no que toca à tradução como aos comentários, privilegia de forma não-doutrinária, não-confessional e não apologética a compreensão do texto grego. (…) sem a interferência de pressupostos religiosos, a materialidade histórico-linguística do texto. (…) explicar de forma clara e não-tendenciosa.”

Em resposta:

1- Note-se que é Frederico Lourenço que compara as várias traduções de forma qualitativa. Não apenas compara de forma objetiva os métodos, mas atribui-lhes valores qualitativos, sendo a sua tradução (em comparação com as outras): sem pressupostos, material, clara e não tendenciosa. Portanto, é justo desconfiar da aparente humildade de Frederico Lourenço quando nos diz que “[n]ão sou arrogante nem convencido do meu próprio mérito no que se refere à tradução da Bíblia (trabalho que nunca poderia ser perfeito).” Ou quando se mostra ofendido face à acusação de estar “arrogantemente convencido da superioridade do meu trabalho.” Preferia um Frederico Lourenço mais ousado.

2- Frederico Lourenço não é menos doutrinário, não-confessional ou apologético do que qualquer outro tradutor. A falácia inerente no argumento de Frederico Lourenço é pressupor que apenas os ‘religiosos’ é que têm uma doutrina ou confissão. A minha contenção é simples: não existe nenhum tradutor/interprete neutro. Frederico Lourenço coloca em oposição os “pressupostos religiosos” dos outros com a “materialidade histórico-linguística do texto.” Os ‘religiosos’ são tendenciosos, Frederico Lourenço o neutro. Uns trazem os seus pressupostos, Frederico Lourenço a ‘materialidade’. Uns trazem a sua teologia, Frederico Lourenço apenas traduz o que “realmente lá está escrito”. No entanto, a abordagem histórico-crítica não é menos confessional do que do que outras abordagens. Antes de ser um método ela é uma abordagem, com os seus pressupostos. Na realidade, porque o texto bíblico é primeiramente uma obra teológica, o método histórico-crítico falha pela raiz, porque quer fazer do texto o que ele não quer ser. O método de estudo deve apropriado à natureza do objeto de conhecimento.

3- Qualquer tradução implica interpretação. Se a tradução fosse simples aplicação de técnicas linguísticas (da qual Frederico Lourenço é exímio), não precisávamos de tradutores humanos. O tradutor humano inevitavelmente interpreta o texto. O rigor linguístico de Frederico Lourenço só serve se conjugado com outros aspetos igualmente necessários para uma boa tradução, entre eles o contexto literário (outra área onde o método histórico-crítico tem sido amplamente demolido, inclusivamente por não-‘religiosos’). A única coisa que me propus foi mostrar que existe uma opção mais plausível para a tradução de “ἐκ πνεύματος ἁγίου” do que Frederico Lourenço propõe. A minha nota é irónica: a suprema tecnicidade linguística de Frederico Lourenço é uma traição à própria língua. Ironicamente, Frederico Lourenço é mais papista do que o papa na sua dogmática linguística. E é obviamente pedante, porque acusa (na sua própria nota de rodapé) todos os outros tradutores de violarem de forma grosseira as leis mais básicas da língua grega de forma a que se pudesse ajustar às suas posições confessionais.

4- Qualquer tradução deve procurar ser fiel ao seu autor. Este princípio é válido para autores contemporâneos, como para autores clássicos. Deve-se reconhecer que a distância que nos separa dos autores clássicos dificulta a tarefa quando comparado com autores contemporâneos, mas o princípio mantém-se válido. Frederico Lourenço, ao invocar a sua não-confessionalidade, desnuda ironicamente a sua incapacidade de reconhecer o evidente: o autor bíblico é confessional. Desta maneira, a tradução deve espelhar a confessionalidade do autor. Não deixa de ser interessante, que Frederico Lourenço quer impor ao autor bíblico uma não-confessionalidade, quando a sua confessionalidade é evidente. O que quero dizer com isto? Que, sempre que possível, o não-confessional Frederico Lourenço transforma o autor confessional num autor não-confessional. Isto é verdade para os dois casos mais debatidos.

Resumindo, julgo ser inegável o valor da tradução de Frederico Lourenço. Como ele próprio observou, as suas credenciais académicas são indiscutíveis e reconhecidas. No entanto, a tradução do texto bíblico de Frederico Lourenço não é o diz ser. É muito mais e muito menos. A sua objetividade é muito menor do que aquela que reclama e é muito mais confessional do que está disposta a admitir. Este é o meu ponto principal de contenção, não as credenciais linguísticas de Frederico Lourenço.



segunda-feira, agosto 21, 2017

Sozinho no Olimpo - uma (semi) leitura crítica da tradução da Bíblia feita por Frederico Lourenço - Parte II

[Alterei a pequena série de textos sobre a tradução da Bíblia feita pelo Frederico Lourenço para "Sozinho no Olimpo" e não "Perdido no Olimpo". Se no primeiro texto o meu tom tentou ser o mais justo e elogioso possível pela importância do que o Frederico tem vindo a fazer, nesta segunda parte assistimos a uma verdadeira demolição, cortesia do Tiago Nunes Oliveira. Quando o assunto é a Palavra de Deus nós, protestantes, não sabemos ser civilizados - lamento. A gentileza acerca de questões de tradução da Bíblia pode servir para quem não leva muito a peito o propósito de Deus se ter revelado nela. Para nós, protestantes, é como dizerem mal da nossa mãe. Somos filhos da Palavra, por isso haja jeitinho no modo de a tratar.]

Quero começar a segunda parte deste texto falando de um problema que, não estando directamente ligado ao Frederico Lourenço, acaba-lhe colado. Esse é o problema de, ao sermos portugueses e consequentemente não termos uma cultura de leitura da Bíblia (a Reforma Protestante não pisou cá), se transferir para qualquer pessoa que se destaque desta triste regra um atestado de especialismo bíblico. Foi lançada ao Frederico Lourenço a maldição de ele ser o novo "Senhor Bíblia". A erudição grega do Frederico Lourenço dá-lhe indiscutivelmente vantagens extraordinárias na leitura do texto bíblico, mas a camioneta não chega para tanta areia. E se é certo que o Frederico Lourenço não tem culpa de que o considerem especialista, também não parece que esteja interessado em ter a coragem de denunciar o erro (e neste texto não me vou entregar à discussão potencialmente mais infindável de questionar o próprio uso do termo 'especialista' seja para quem for).

Nas entrevistas que li sobre o feito desta tradução, fico com a impressão que a douta cadeira do especialismo bíblico tem confortado as costas do Frederico Lourenço. Ele tem-lhe vestido a pele. Pelo facto de a ignorância portuguesa sobre a Bíblia atingir níveis olímpicos, o Frederico Lourenço não tem sabido resistir a teorizar sobre assuntos cujo preço nos parece impossível de ser pago pelo salário que recebe - já não chega ser tradutor, que tal teólogo? E, como aqueles que se interessam por teologia sabem, nas vertigens teológicas há um eterno potencial de espalhanços. O Frederico Lourenço teólogo é, lamento, menor que o Frederico Lourenço tradutor. E com isto, vale a pena passar para esta complexa fase de intersecção, onde, não dando para separar completamente os assuntos, se mistura o que o Frederico Lourenço tenta teologizar com o que o Frederico Lourenço traduz, e vice-versa (o meu amigo António Vieira avisou-me que o Vasco Pulido Valente já tinha tocado este assunto num texto do Observador - por exemplo, a opção por traduzir "Filho do Homem" como "Filho da Humanidade" tem a pobreza que VPV aí assinala, vítima da impiedosa ideologia de género).

Para demonstrar a imprecisão do Frederico Lourenço, provavelmente resultado de confundir o ofício de tradutor com a tal candidatura prematura a teólogo, pedi a alguém que percebe de grego para, ir ao texto da tradução e dar exemplos práticos. Essa pessoa que percebe de grego é o meu cunhado Tiago Nunes Oliveira que, depois de ter tirado um mestrado no Reformed Theological Seminary nos Estados Unidos, continua os estudos num doutoramento no Puritan Reformed Theological Seminary. O meu cunhado quando esteve cá no Natal passado rapidamente comprou o primeiro volume da tradução do Frederico Lourenço e rapidamente começou a apontar erros. Passo a palavra para um texto que ele próprio escreveu a meu pedido. Tenho de advertir que o tom do meu cunhado não é mariquinhas como o meu - estes assuntos são demasiado da vida dele para ele se dar ao luxo das minhas gentilezas. Tendo dito isto, segurem-se.

Palavras do Tiago Nunes Oliveira a partir daqui: "[vejamos os] pressupostos metodológicos de Frederico Lourenço. Diz ele, acerca da sua tradução: “Acima de tudo, trata-se de dar a conhecer o texto bíblico num formato que, tanto no que toca à tradução como aos comentários, privilegia de forma não-doutrinária, não-confessional e não apologética a compreensão do texto grego. (…) sem a interferência de pressupostos religiosos, a materialidade histórico-linguística do texto. (…) explicar de forma clara e não tendenciosa.” Será que Frederico Lourenço consegue cumprir o que propõe? A minha conclusão é que não. Frederico Lourenço falha em toda a linha, inclusive na área em que é mais forte: a linguística. Não deixa de ser interessante, no que diz respeito à sua não-confessionalidade, que ele a impõe ao autor bíblico, cuja confessionalidade é evidente. O que quero dizer com isto? Que, sempre que possível, o não-confessional Frederico Lourenço transforma o autor confessional num autor não-confessional."

Palavras minhas, novamente, para ajudar os mais leigos como eu. Portanto, o Frederico Lourenço, para tornar a Bíblia mais aberta a quem não a lê, desbibiliza quem a escreveu. É como se a lógica fosse esta: como eu não sou cristão mas gosto da Bíblia e gosto da ideia de outros não-cristãos a lerem, vou tentar mostrar que quem a escreveu não tem de ser assim tão cristão como os cristãos com que não concordo. Esta lógica só vai funcionar para quem só quiser ler a Bíblia desde que ela lhe dê aquilo que gosta de ler.

E o Tiago Nunes Oliveira continua: "Basta ler o primeiro capítulo da tradução de Mateus para encontrar o primeiro exemplo da forma preconceituosa (de quem quer fugir a toda e qualquer confessionalidade) e biblicamente ignorante.  Diz o texto, em Mateus 1:18, que Maria ficou grávida “ἐκ πνεύματος ἁγίου”. Frederico Lourenço decide traduzir a frase “ἐκ πνεύματος ἁγίου” por “de um espírito santo”. Diz ele que “a ausência do artigo definido no original grego não autoriza a tradução ‘o espírito santo’”. Considera Frederico Lourenço, portanto, que a sua tradução reflete uma “forma não-doutrinária, não-confessional e não apologética a compreensão do texto grego. (…) sem a interferência de pressupostos religiosos, a materialidade histórico-linguística do texto. (…) explicar de forma clara e não tendenciosa.” Nenhuma tradução que eu conheço opta pela forma como Frederico Lourenço traduz aquela expressão. Se é verdade, como ele afirma, que “a ausência do artigo definido no original grego não autoriza a tradução ‘o espírito santo’”, significa então que todos os outros tradutores violaram de forma grosseira as leis mais básicas da língua grega de forma a que se pudesse ajustar às suas posições confessionais? Não poderíamos então encontrar em traduções “não confessionais” um exemplo que corrobore a posição de Frederico Lourenço? Parece que não. Parece que Frederico Lourenço é a única alma iluminada no mundo académico, capaz de, finalmente, nos traduzir o texto bíblico de forma fiel ao original e à intenção do autor."

Palavras minhas, novamente: portanto, o Frederico Lourenço faz da sua meta não-doutrinária uma maneira de colocar o texto a dizer o que ele enquanto tradutor quer, e não o que o texto pressupõe.

Mas o Tiago Nunes Oliveira continua: "Ironias à parte, vejamos porque Frederico Lourenço está errado e porque todas as outras traduções estão certas. Em primeiro lugar, na língua grega não existe artigo indefinido, apenas artigo. É importante, por isso, definir a função do artigo. Wallace afirma que: “The function of the article is not primarily to make something definite that would otherwise be indefinite. It does not primarily “definitize.” There are at least ten ways in which a noun in Greek can be definite without the article. For example, proper names are definite even without the article (Παῦλος means “Paul,” not “a Paul”). (…) To argue that the article functions primarily to make something definite is to commit the “phenomenological fallacy”—viz., that of making ontological statements based on truncated evidence. No one questions that the article is used frequently to definitize, but whether this captures the essential idea is another matter.”"

E agora, que estamos mesmo em questões técnicas profundas, respirem fundo porque a parte seguinte vai às catacumbas da questão. Se não forem meninos para aguentar, passem à frente.

Diz o Tiago Nunes Oliveira: "Com base no ponto anterior, estudemos o uso da expressão “ἐκ πνεύματος ἁγίου”. Mateus utiliza “ἐκ πνεύματος ἁγίου” cinco vezes no seu evangelho:

NA28 (manuscrito Nestle Aland) - ἐκ πνεύματος ἁγίου (1:18)
Frederico Lourenço traduz: De um espírito santo

NA 28 - ἐκ πνεύματός ἐστιν ἁγίου (1:20)
Frederico Lourenço traduz: vem de um espírito santo

NA 28 - ἐν πνεύματι ἁγίῳ (3:11)
Frederico Lourenço traduz: num espírito santo

NA 28 - κατὰ τοῦ πνεύματος τοῦ ἁγίου (12:32)
Frederico Lourenço traduz: contra o espírito, o santo

NA28 - καὶ τοῦ ἁγίου πνεύματος (28:19)
Frederico Lourenço traduz - do espírito santo

Aparentemente, Frederico Lourenço é um exímio linguista e procura ser o mais técnico possível na sua tradução. No entanto, Grego não é matemática e a forma estrita como ele aplica as leis da língua propõe mais do que a língua permite. Vamos por pontos:

1. A primeira tarefa é estudar os vários usos que o autor faz de “espírito santo”. Visto que a ausência do artigo não determina que a palavra seja indefinida, é necessário averiguar se Mateus alguma vez utiliza “espírito santo” de uma forma claramente definida. De acordo com Mateus 28:19, o Espírito Santo é claramente uma pessoa. Jesus ordena os discípulos a que baptizem em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Desta maneira, temos um claro e inequívoco exemplo em Mateus de que o Espírito Santo é utilizado de forma definida. Não apenas isto, Espírito Santo é claramente um nome próprio. Desta maneira, visto que é um nome próprio, não precisa de artigo para que seja definido.

2. A partir do momento em que se torna claro que “espírito santo” é utilizado como nome próprio (e, desta maneira, pode ou não ser precedido de artigo), há que determinar se existe alguma instância em que “espírito santo” seja alguma vez usado de forma inequívoca para se referir a “um espírito santo” (de forma a deixar em aberto a possibilidade de que a expressão possa ser utilizada para se referir a mais do que uma coisa). Dos cinco usos de “espírito santo”, nenhum se refere inequivocamente a “um espírito santo”. Desta maneira, sabemos duas coisas: “espírito santo” é utilizado de forma inequívoca duas vezes (12:32, 28:19) como “o Espírito Santo” e três vezes (1:18, 1:20, 3:11) de forma ambígua (gramaticamente pode-se referir-se tanto a “um espírito santo” como a “o espírito santo”).

3. Sabendo que, em Mateus, existe de facto a pessoa do “Espírito Santo” (12:32, 28:19), de que existe um Espírito que é tratado não apenas de forma indefinida mas que pode ser chamado de “o Espírito Santo”, devemos procurar outras instâncias em que, eventualmente, este conceito esteja presente. Numa pesquisa rápida em Mateus, entramos a palavra “espírito” a ser utilizada de várias formas. Entre elas, Mateus refere-se a um espírito em particular. Vejamos três exemplos em particular:

Mateus 3:16 - “Batizado Jesus, saiu logo da água, e eis que se lhe abriram os céus, e viu o Espírito de Deus descendo como pomba, vindo sobre ele.”. Esta passagem é particularmente importante porque está no contexto de Mateus 3:11.

João profetiza que Jesus irá baptizar com o Espírito Santo e, um pouco mais à frente, o Espírito de Deus desce sobre ele.

Mateus 4:1 - “A seguir, foi Jesus levado pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo diabo.” (Matthew 4:1).

Este Espírito não precisa de ser qualificado, o que pressupõe que os leitores sabem a que Espírito se refere. Jesus não foi levado por um espírito, mas pelo Espírito.

Mateus 12:31-32 - “Por isso, vos declaro: todo pecado e blasfêmia serão perdoados aos homens; mas a blasfêmia contra o Espírito não será perdoada. Se alguém proferir alguma palavra contra o Filho do Homem, ser-lhe-á isso perdoado; mas, se alguém falar contra o Espírito Santo, não lhe será isso perdoado, nem neste mundo nem no porvir.”

Esta passagem é particularmente importante, porque identifica o Espírito (sem qualificação) com o Espírito Santo. ‘O Espírito Santo’ é ‘o Espírito de Deus’ e “o Espírito”. Todas formas sinónimas para se referir à mesma pessoa.

Concluímos, por isso, que Mateus acredita e os seu leitores estão cientes de que existe um Espírito Santo em particular. O conceito deste espírito é de tal forma estabelecido que este pode ser apenas tratado por “o Espírito”, não necessitando de mais nenhuma qualificação. Conclui-se também que este Espírito é também referido por Espírito Santo e Espírito de Deus.

Finalmente, deve-se ainda pesquisar se existe alguma instância se o conceito de “um espírito santo” está presente de forma clara em Mateus ou qualquer outro livro bíblico. A resposta é negativa. O conceito de “o Espírito”, ou “o Espírito de Deus”, ou “o Espírito Santo” é abundante no Novo Testamento. O conceito de “um espírito Santo” não é verificável.

Depois de verificarmos evidência após evidência, é fácil entender porquê que todas as traduções bíblicas traduzem a expressão “ἐκ πνεύματος ἁγίου” por “do Espírito Santo”.

Voltemos por momentos à citação pela qual começamos, na qual Frederico Lourenço afirma que “Acima de tudo, trata-se de dar a conhecer o texto bíblico num formato que, tanto no que toca à tradução como aos comentários, privilegia de forma não-doutrinária, não-confessional e não apologética a compreensão do texto grego. (…) sem a interferência de pressupostos religiosos, a materialidade histórico-linguística do texto. (…) explicar de forma clara e não tendenciosa.”
No final de contas (e este é apenas um exemplo simples, uma vez que a tradução de Frederico Lourenço está cheia destes e outros equívocos), a tradução de Frederico Lourenço é tudo aquilo que diz não ser: doutrinária (a doutrina do próprio Frederico Lourenço), confessional e apologética. Uma tradução claramente tendenciosa. Mais, é uma tradução preguiçosa (porque não fez o trabalho de casa) e ignorante (porque o mínimo que se pede a alguém que se aventura numa obra destas é ser um profundo conhecedor do texto bíblico)."

Eu disse que ia doer.

Actualização: Entretanto o Francisco José Viegas enviou-me um link para um texto em que o Frederico Lourenço escreve sobre este assunto. Aqui (clicar em aqui). Dizer que "o texto grego é que tem de funcionar como diapasão" sem manifestar um cuidado com o contexto geral  e como ele indica opções de tradução mais justificáveis (demonstrado pelas observações do Tiago Nunes Oliveira) sugere um tipo de "rigor linguístico" que na prática me parece uma iluminação gnóstica acessível apenas a alguns - a tal tese da solidão no Olimpo. Será que o Frederico Lourenço acredita que agora no Século XXI, e através da sua tradução da Bíblia (e de outras) e deste "rigor linguístico", nos estamos a libertar das cruéis amarras dogmáticas da teologia e dos seus verdugos (nos quais humildemente gostaria de ser contado)? Se sim, é toda uma nova metafísica. Na próxima Segunda-Feira vem o texto final sobre este assunto.


sexta-feira, agosto 18, 2017

Critica musical

Que vai dos Arcade Fire à tragédia da música evangélica que segue os Sigur Rós. Valha-nos São Bob Dylan!

terça-feira, agosto 15, 2017

No YouTube

Para dizer que não precisamos de uma fé feita de retalhos do YouTube.

segunda-feira, agosto 14, 2017

Perdido no Olimpo - uma (semi) leitura crítica da tradução da Bíblia feita por Frederico Lourenço - Parte I

[Este texto será divido entre esta Segunda-Feira e as próximas duas. A primeira parte, de hoje, é meiguinha, e as outras duas que se seguirão nem tanto. Queriam o quê? Estamos em ano de comemoração luterana, meus caros.]

Na primeira parte deste texto algo longo sobre a tradução da Bíblia que o Frederico Lourenço está a fazer o mais importante é elogiar o seu trabalho. Traduzir a Bíblia é sempre uma tarefa interminável e por isso o valor de alguém que se mete numa empreitada dessas não é nada pequeno. Dos textos que li na imprensa sobre a vida recente do Frederico Lourenço, encontrei um impulso para se dedicar de alma e coração a verter as Escrituras para a nossa língua que me deixou impressionado. Que vida magnífica tem ele: ansioso para ler a Palavra e ampliar o número dos seus leitores.

Como sou um pastor evangélico, bate-me forte este empenho do Frederico Lourenço. Afinal, também eu vivo para ler a Palavra e ampliar o número dos seus leitores. E aparece até um pouco de inveja em mim, porque no seu impacto mediático, é provável que o Frederico Lourenço consiga cumprir a nossa tarefa partilhada de um modo muito superior ao meu. Espero que esta minha inveja possa ser santificada, até porque o importante não é saber quem promove mais a leitura da Bíblia mas que a Bíblia seja lida por muitos.

O Frederico Lourenço começou a tradução pelo Novo Testamento, até porque é um mestre em grego. A primeira colecção a ser publicada pela Quetzal foi o conjunto dos quatro evangelhos, que me foram generosamente oferecidos pelo Francisco José Viegas, o editor. Apesar de ainda não ter comprado o resto do Novo Testamento (que também já saiu), creio que todos os cristãos portugueses deviam adquirir todos os volumes desta tradução. Falando especificamente para a minha família religiosa: evangélicos, consumam esta obra (em progresso) do Frederico Lourenço!

Outra coisa excelente que acontece graças a esta tradução da Bíblia pelo Frederico Lourenço é que somos recordados que o grego é uma língua mais cristã do que o latim. Como assim? Pelo peso da tradição romana, o latim tornou-se provavelmente a língua mais associada ao cristianismo. Ora, não precisamos de rejeitar a importância histórica do latim para, ainda assim, entendermos que se há língua que precisa de ser reconhecida como a do cristianismo é o grego (e, antecedentemente, o hebraico). Ficar mais perto do grego é sempre uma boa notícia.

O facto de o Frederico Lourenço nos aproximar do grego não é coisa pouca. Entre outros aspectos, ajuda-nos a entender que a simplicidade do grego bíblico não deve ser tomada como esteticamente inferior em relação ao grego tido como mais erudito; ajuda-nos a entender que "ler era ler em voz alta" e que "o texto era escrito para ser ouvido"; e ajuda-nos a entender algumas opções de tradução importantes tidas geralmente como território exclusivo dos linguistas (como a dinâmica diferente dos tempos verbais gregos ou a tradução de termos como "amém", "pecado" ou "escândalo"). Frederico Lourenço permite que não-conhecedores conheçam mais e isso é óptimo para uma cultura média nacional onde o domínio da língua continua uma espécie de território inacessível.

Vamos agora à parte além dos elogios? Próxima Segunda-Feira, sintonizem.



quinta-feira, agosto 10, 2017

Este é um vídeo especial

Porque tenho ao meu lado o meu cunhado Nuno falando sobre o seu amor por Jan Huss, enquanto passeamos por Praga.

quarta-feira, agosto 09, 2017

O primeiro disco brasileiro da FlorCaveira

Há uns anos li um texto da revista Época que falava nos novos músicos evangélicos. A verdade é que, do pouco que conheço, nunca gostei muito da música feita por músicos evangélicos brasileiros (e ainda gosto menos da música actualmente feita por músicos evangélicos brasileiros fingindo que não são músicos evangélicos brasileiros). Apesar de eu próprio ser um músico que também é evangélico (ainda que português), a música que geralmente leva o rótulo de "evangélica" destaca-se por um atraso estilístico de vinte anos e más letras. Como os ingleses dizem, não é a minha colher de chá.

Mas esse texto da revista Época falava de um rapaz que tinha conhecido há pouco tempo através da internet. Esse rapaz chamava-se Eduardo Mano e era uma voz agradável que, movida por curiosidade pela editora que criei em 1999 com amigos - a FlorCaveira, tinha passado a ouvir. O interesse do Eduardo por nós, aqui na insignificante Lusitânia, tinha-me feito agora a mim curioso pela música que ele próprio fazia. Foi ocasião de eu voltar a dar uma chance à música evangélica brasileira.

Quando comecei a ouvir o Eduardo Mano cheguei à mesma conclusão que a revista Época estava a chegar: havia alguma coisa diferente nestas canções crentes. Já não lhes conseguia detectar aquele artificialismo demodé típico dos músicos evangélicos que, porque vivem em complexos de inferioridade, estão obcecados por mostrar ao mundo que tocam muito. Não. No caso do Eduardo tudo o que era tocado não servia outra coisa que não aquilo que ele estava a cantar. As canções do Eduardo não eram feitas para impressionar mas para dizer alguma coisa. E começaram a dizer-me muito a mim.

Por outro lado, as canções do Eduardo transpiravam Keith Green, um dos cantores evangélicos da vaga inicial norte-americana que era realmente inspirador. As letras não tinham medo de ser simples, ao mesmo tempo que eram desavergonhadamente cheias de Bíblia. O Eduardo, ao contrário de muitos da sua geração, não se importava de musicar as Escrituras de um modo que facilmente poderia ser acompanhado pelos ouvintes.

Esta simplicidade do Eduardo criou-lhe um problema. O Eduardo era um músico evangélico que não se sentia mal por fazer música cujo objectivo principal era servir o evangelho. Ora, no Brasil a música evangélica pode servir para muitas coisas mas nem sempre serve o evangelho. Por causa disso, o Eduardo era demasiado punk para quem queria ser sofisticado, e demasiado simples para quem queria ser litúrgico. Apesar de o Eduardo chamar a atenção suficiente para chegar à referência duma revista popular do Brasil, o seu caminho musical ficou num lugar só seu.

Uns anos depois, o lugar que durante seis meses se torna do Eduardo e da sua mulher Eline é Portugal. E aqui entro eu. No aeroporto à espera deles (com o Suva). Como a maior parte do tempo dessa estadia foi passada no Porto, só no último mês pudemos passar mais tempo juntos. Deu para o Eduardo tocar na Igreja da Lapa, onde sou pastor (e onde costumamos cantar algumas das suas canções nos serviços de culto) e deu para sonhar gravar alguma coisa. Apesar de ser início de 2016, continuo a ser um produtor musical bem arcaico. O que tinha para prometer ao Eduardo era um minidisc com um microfone estéreo. No fundo, continuava na boa tradição que levou o Rick Rubin a gravar o Johnny Cash em takes directos sem maquilhagem. Combinámos o dia para assim acontecer.

Havia sete canções para gravar, uma delas com a Eline (a minha canção preferida do Eduardo também é com a Eline, a perfeita "Mais Chegado Que Um Irmão"). Começamos a gravar mas a Eline não se sente bem. Temos de interromper. Recompõe-se e lá conseguimos acertar o take certo. Mais tarde saberia que a razão da má-disposição da Eline era a melhor possível: havia uma Sarah dentro dela a oferecer um ritmo novo ao seu ventre. Certamente que esta gravidez  contribuiu para que as canções seguissem com uma urgência parecida com um trabalho de parto.

O certo é que não foram nove meses que tivemos de esperar para ter este disco cá fora. A gestação foi bem maior, estupidamente dependente de um pequeno problema técnico que me impedia de converter as canções da sua forma interna do minidisc para o digital dos computadores. Mas a hora chegou. E, como em qualquer nascimento, a alegria foi grande. Em toda a sua nudez (uma voz e um violão, como dizem os brasileiros) a criança esperneia (como dizem os portugueses). Não nego que o Eduardo, sendo um pouco menos punk do que eu, não resistiu a um filtros sonoros que arredondam o resultado final. Talvez um dia mais tarde este disco possa ser re-editado com o director's cut do produtor, esplendoroso em toda a sua crueza.

Ainda assim, é com muito sentido de privilégio que a FlorCaveira apresenta a sua primeira edição de um artista brasileiro: mencionado pela Época, demasiado barbudo para o infernal estrelato gospel, encharcado na Bíblia - eis Eduardo Mano!


Na tela

Para dizer sai da tela.

quinta-feira, agosto 03, 2017

Num acto de inesperada graça

... levaram-me à casa de Lutero, que prontamente invadi com os meus comentários sempre (demasiado) prontos.

quarta-feira, agosto 02, 2017

O primeiro vídeo do meu canal do YouTube (quem diria que teria o meu próprio canal...)

Como criaturas da palavra, os cristãos não são só chamados a falar mas também a ouvir. Todos. Até os que não crêem.