quarta-feira, dezembro 31, 2014

O ABC de 2014

A - Amizades
Dois mil e catorze foi um ano onde a palavra amizade sai destacada. Porque, pela graça de Deus, ganhei novas amizades e aprofundei algumas que já tinha (coisa que tem acontecido noutros anos). Mas também porque igualmente tive a experiência contrária (coisa que não tem acontecido noutros anos). Não somos educados para perder amigos. E, nesse sentido, permitam-me, somos mal-educados. Porque, na teoria, a minha fé cristã sempre me ensinou que é absolutamente normal perder ligações quando uma ligação maior a Jesus implica uma diferenciação no caminho que até então seguimos acompanhados. Afirmamos na teoria mas na prática acho que nunca estamos muito preparados. Perder uma amizade pode ser uma lição dura mas necessária acerca da suficiência de Cristo.

B - Blogger do ano: Rod Dreher
Rod Dreher bloga na American Conservative e é um católico romano que se tornou ortodoxo. Está a escrever um livro sobre Dante (e influenciou-me ao ponto de ter acabado de comprar nas Amoreiras "A Divina Comédia"), vive no sul dos estados Unidos e é equilibrado ao mesmo tempo que corajoso. Foi o melhor blogue que descobri e passei a seguir este ano.

C - Chata, vida chata
Estou a exagerar, claro. A vida nunca é chata para um cristão. E se há coisa que a minha vida não é, é chata. Mas entendam o argumento. Quando me ponho a pensar sobre 2014 encontro um padrão novo. Este ano em boa parte foi um ano substancialmente diferente dos anos anteriores. Porquê? Porque de um modo geral, desde 2007 que os anos foram extraordinários. Ou porque vivia projectos novos no que diz respeito à igreja, ou porque vivia anos excepcionais no que diz respeito à música (e isto para não falar de 2004 em diante, desde que os miúdos começaram a nascer). Digamos que havia expectativas pouco usuais que, de um modo ou outro, se concretizavam. Ora, 2014 não foi um ano em que nada de especial aconteceu (é assinalável que tenha sido o ano em que a Igreja Baptista de São Domingos de Benfica se tenha unido oficialmente à Segunda Igreja Baptista de Lisboa). Mas foi um ano em que não esperei ou recebi nenhum reconhecimento específico por algo invulgar. Isso faz-me pensar que estou finalmente a amadurecer: os anos valem por si mesmo quando não prometem nada de espantoso.

D - Discos
- "Popular Problems", Leonard Cohen
- "Divide and Exit", Sleaford Mods
- "Pela Surra", Manuel Ferreira
- "#batequebate", D'Alva
- "Sente", HMB
- Disco do Bruno Morgado que, tendo sido gravado, não foi editado
E - Escrever um livro
De facto, foi no ano passado que escrevi um livro e o publiquei (Dezembro). Mas foi neste que o promovi com a minha mulher. Foram quase vinte eventos a falar sobre o "Felizes Para Sempre e Outros Equívocos Acerca do Casamento". O assunto do casamento é uma grande necessidade entre cristãos. Isto porque provavelmente os cristãos o têm mais assumido que aplicado. Por outro lado, aqueles que não são cristãos mostram uma curiosidade genuína sobre ele, até quando não se sentem confortáveis com os seus pressupostos religiosos. Creio que o casamento é um assunto para durar no meu ministério pastoral.

F - Filmes
"Interstellar" de Christopher Nolan
"12 Years A Slave" de Steve McQueen
"The Wolf Of Wall Street" de Martin Scorsese
"Nightcrawler" de Dan Gilroy
"Fury" de David Ayer
"'78" de Yann Demange
"Maps to the Stars" de David Cronenberg

G - Gratidão
Ser grato por obrigação não é uma contradição? Não necessariamente. Ser grato é uma obrigação para quem acredita que viver é uma graça. Logo, ser grato é algo que obrigatoriamente se acrescenta ao acto de existir. A gratidão como disciplina é um absurdo para quem acha que vive porque merece viver. A minha perspectiva é, naturalmente, outra. "Mais louvação, menos murmuração."

H - Henrique Raposo
Geralmente o padrão de quem escreve na imprensa é usar a realidade como pretexto de validar a sua opinião. Há muita selectividade para que se assine a letras grossas aquilo que mantém alguém na posição de justificar ser lido: o seu ego. O Henrique Raposo não faz este percurso. Não digo com isto que quem lê o Henrique não se aperceba de convicções que são visíveis desde que ele começou a escrever. Claro que sim. Ter uma espinha também é isto. Mas o que não tem preço na escrita do Henrique é revelar valores maiores que ele mesmo. O Henrique não escreve para fazer fintinhas de efeito que o mantenham no poleiro literário. O Henrique está interessado nessa coisa chatíssima para a imprensa que é a verdade. Estar interessado nessa coisa chatíssima para a imprensa que é a verdade não implica ser chato. E o Henrique comprova-o. Mas estar interessado na verdade é fazer um percurso de muita solidão. Nesse sentido, o Henrique é a pessoa mais sozinha da nossa imprensa. Quero vê-lo mais acompanhado, claro que sim. Mas a sua peregrinação é uma verdadeira inspiração.

I - Intensidade
O meu amigo Nuno Ornelas alertou-me esta ano para uma característica minha que frequentemente é problemática. A parte de ser problemática foi uma conclusão minha. O Nuno apenas falou na característica. Essa característica é a intensidade. Reconheço isso. A minha intensidade muitas vezes cega-me. Deus tem pegado na minha intensidade e, com muita misericórdia, não raramente a reverte para coisas boas. Mas o meu instinto é, sentindo essa intensidade, fazer dela um passaporte para só parar quando o que desejo se concretiza. Muito trabalho pela frente!

J - João Rosa de Oliveira
2014 ficará como o ano em que partiu o Pr. João Rosa de Oliveira. Muito partiu com ele. Aumentou o peso na balança a favor de desejarmos ir para o Céu.

K - Keller
Este foi o ano em que, como já escrevi, o Kellerista conheceu o Tim Keller. Li o "Encounters With Jesus" e preparo-me para o novo acerca da oração. Como tenho sido próspero em elogios, acrescento só mais um. Uma das coisas mais significativas acerca de Tim Keller é que ele não começa a surfar a crista da onda. Falamos de um homem que teve de pedalar muito para lá chegar. O trabalho em Nova Iorque começou há mais de 25 anos por isso Keller não é um pregador que colhe precocemente os louros da moda calvinista. As lições de Keller foram experimentadas, não são teologia pronta-a-vestir. Isto é precioso para uma geração de pastores jovens como eu que anseia resultados de preferência sem eles nascerem de uma prática longa e consistente. Keller antes de ser da mocidade é da maturidade.

L - Livros
- "How (Not) To Be Secular" de James K.A. Smith. Onde o autor pega no filósofo Charles Taylor e explica que a nossa era secular não é o resultado de Deus ter sido subtraído. As coisas não são assim tão simples. No nosso mundo não é só a descrença que é nova, é também a crença - crer hoje é certamente diferente de crer há cem anos. É um livro de 2014.
- "Delighting In The Trinity" de Michael Reeves. O livro não é deste ano mas foi neste ano que me lembrou que a Trindade é O assunto.
- "As Primeiras Coisas" de Bruno Vieira Aamaral. Foi em 2013 que este livro arrumou os prémios todos mas o meu coração foi só em 2014.
- "Crazy Busy" de Kevin DeYoung. Viver bem é saber do que devemos estar desligados para ficarmos ligados ao que realmente vale a pena. Também não é de 2014.
- "Raised?" de Jonathan Dodson e Brad Watson. Crer em Cristo é não fugir de lutar com o fundamento da ressurreição (e ser vencido por ele). É de 2014!
- "Encounters With Jesus" de Timothy Keller. Ou nos encontramos com Cristo ou a cristandade não vale a pena. Não é de 2014.
- "The Portrait Of A Lady" de Henry James. Um clássico de sempre. E não é de 2014.

M - Mark Driscoll
Este também foi o ano da morte da moda calvinista. Claro que falo dos Estados Unidos porque Portugal não conta. A onda dos Young, Restless and Reformed passou. E os calvinistas, a pouco e pouco, regressam ao lugar que naturalmente lhes pertence: o da minoria (embora seja verdade que o número aumentou nestes últimos anos). O grande momento simbólico deu-se com a queda de Mark Driscoll. Driscoll deixou de ser o pastor da igreja que fundou, recusando-se a cumprir o programa de reabilitação que os anciãos da igreja tinham para si. Isto é tudo muito triste sobretudo tendo em conta que o Pastor Mark era claro e enfático na necessidade de disciplina na igreja. Claro que continuamos a orar por ele esperando que regresse à pregação clara e viva do evangelho a que nos habituou, e que permita que essa mesma pregação o corrija naquilo que é necessário. A boa notícia é que é mais saudável que o evangelho seja pregado livre das modas que aparentemente o podem beneficiar. Nesse sentido, que o calvinismo vá para que Cristo fique.

N - Negas
Aquelas coisas que idealizámos para 2014 e que aparentemente 2014 se negou a nos oferecê-las. Digo aparentemente porque descubro duas coisas positivas nas negas. Uma é que termos negas muitas vezes nos permite termos depois maiores positivas. Outra é saber que muitas vezes as negas são apenas fases intermédias de termos muito mais do que pedimos.

O - Oceano
Este ano fui ao mar 162 vezes. Mais 32 vezes que no ano passado. Fui ao mar uma vez em cada 2,25 dias. Estou animado mas gostava de subir a média em 2015!

P - Pedro Gil
Conheci o Pedro Gil há coisa de um ano. O Pedro trata do gabinete de imprensa do Opus Dei. Em alguns aspectos o Pedro tem-me ensinado mais acerca do catolicismo romano num ano do que aprendi em 37. Contra todos os preconceitos que é fácil formar a partir da péssima imprensa que o Opus tem, demonstrou um interesse genuíno em compreender o protestantismo de um baptista e mostrou na prática essa abertura convidando-me para vários eventos onde deu uma oportunidade à minha voz reformada. É este o tipo de ecumenismo em que continuo a acreditar. Não tem nada a ver com bailes de máscaras onde cada um veste a sua melhor toga para o belo retrato institucional (sei que estou a ser duro mas aturem-me só mais um bocadinho). O meu ecumenismo não é das rezas partilhadas mas é o do conhecimento mútuo para a assunção do que nos une, assunção essa imprescindivelmente acompanhada pela outra assunção do que nos separa.

Q - Quase
Na última viagem de avião senti-me a quase perder o medo de voar. Quase. O que me ajudou? Usei as duas horas da viagem para decorar o Salmo 4. Pode estar aqui uma estratégia de futuro. O rapaz que ia ao meu lado, ao ver-me a abrir e a fechar repetidamente a Bíblia, pode ter ficado com medo que eu me preparasse para algum atentado fundamentalista. Não aconteceu.

R - Rede, estar em rede
Progressivamente vou-me desligando. Ainda estou demasiado ligado. Mas o pouco que me desliguei fez muito. Ouçam-me: para que estejamos ligados ao que interessa, precisamos de nos desligar de muita, muita coisa que consome a nossa atenção (sei que já disse isto a pretexto do livro do Kevin DeYoung mas vale a pena ser repetido).

S - Sérgio Gomes
O Pastor Sérgio Gomes cuida da Igreja Baptista de Rio de Mouro e é mais velho que eu cerca de 15 anos. Não sendo a distância das nossas idades assim tão grande, diria no entanto que o Pr. Sérgio tende a inspirar uma autoridade que o torna aparentemente mais velho. Por causa disso é fácil ganhar uma ideia dele que não corresponde inteiramente à realidade. Antes da minha consagração ao pastorado, tinha-o como colega improvável. Como sabemos, Deus tem sentido de humor e no dia do concílio examinador, quem dirigiu o questionário sobre doutrina e ética? Ele mesmo. Uns tempos depois entregou-me as folhas que usou como rascunho para o orientar nas questões que me fez, recordação que guardo na Bíblia que utilizo para pregar. Ora, o Pr. Sérgio Gomes tem sido um dos grandes impulsionadores das reuniões mensais de pastores baptistas da zona de Lisboa. Adicionando a isso, é pai da Sandra Raquel Henriques que tem sido uma pessoa muito importante na formação escolar dos nossos filhos. Estes factos contribuiram para que o meu contacto com o Pr. Sérgio se tornasse muito frequente este ano. Descobri nele um verdadeiro companheiro. Se já conhecia nele uma reputação de firmeza doutrinária, a surpresa deu-se por descobrir uma generosidade à mesma dimensão. Também entre pastores muito do que parece, não é. O Pr. Sérgio Gomes é daqueles homens que une fibra a braços abertos. Isto é especialmente valioso numa época que tende a estabelecer uma dicotomia pateta entre esses dois aspectos. Não tem de ser ter fibra ou ter braços abertos. Tem de ser as duas coisas ao mesmo tempo. Tenho aprendido isso com o Pr. Sérgio.

T - Tranquilidade
Quantas pessoas realmente tranquilas conhecemos? Que pessoas realmente tranquilas invejamos? Falo de tranquilidade naquele equilíbrio delicado de aceitação e ambição. Aceitar a realidade como prova de humildade e ambicionar outra realidade como prova de justiça. Lotta work to do.

U - Último a morrer
Na minha lista de filmes deste ano um deles é o "Fury". O "Fury" podia ser um filme muito melhor se se mantivesse na dinâmica que aguenta até metade. Ainda assim é o filme com os melhores diálogos para serem absorvidos por um cristão evangélico (são muito saborosas as referências aos cristãos protestantes mainline e, por oposição, aos evangélicos mais fundamentalistas - é preciso estar dentro do contexto para perceber). O "Fury" é, como boa parte do cinema americano, acerca de aguentar até ao fim nem que sejamos os últimos. E por causa disso lembra-me o meu amigo Jónatas Lopes. O Jónatas é um amigo que também é pastor e que me tem ensinado essa arte heróica de aguentar até ao fim, mesmo que seja o último. O Jónatas faz-me lembrar um tanque de guerra parecido com o do "Fury". Ser fiel a alguma coisa implica que tenhamos resistência. Os tiros vêm. E nós não fugimos deles. Se morrermos, paciência (como no filme). Fomos fiéis até ao fim. É o que interessa.

V - Viajar
Viagei muito comparado com a última década. Fui aos Estados Unidos e a França. Foi óptimo. Para ser excelente tenho de o fazer acompanhado da minha mulher.

W - Willow Creek
Este foi o ano em que pela primeira vez tive um contacto directo com a Igreja de Willow Creek. Li uma vez na wikipedia que era a sétima maior igreja dos Estados Unidos. Foi um contacto saudável. É fácil demonizar as igrejas grandes sem grande conhecimento de facto. Não saí fã do Bill Hybels nem na onda da Willow Creek. Mas Deus deu-me a capacidade de me inspirar com algumas das suas virtudes. No Fim-de-Semana Cheio na Lapa tentámos reproduzir a pontualidade, a organização e a excelência como traços do evento. Temos ainda muito caminho pela frente. Mas já somos gratos pelas coisas certas que os cristãos de Willow Creek fazem.

X - XNC2
Quem já grava música há mais de 20 anos sabe que há discos que resultam e outros nem tanto. O segundo disco da Xungaria no Céu, "Dropa o Beat", saiu em Setembro e ficou entalado, sobretudo porque a equipa que o gravou entretanto ocupou-se de outros trabalhos mais prioritários. Uma boa parte da genica com que o gravámos já não existiu na altura em que o editámos e isto faz com que o CD passasse a ser daqueles que, numa perspectiva imediata, não resultaram. Acontece que eu sou um fã de discos entalados, de objectos estranhos e abandonados precocemente. Não é a primeira vez que gravo um disco assim. Aliás, o padrão da reacção aos meus discos era o abandono precoce. Só nos últimos anos, e com a atenção inesperada de alguma imprensa, é que experimentei o contrário: gravar discos ouvidos, criticados, e falados. O segundo disco da XNC já é para mim dos mais especiais. Se ninguém cuida dele, eu serei dos seus maiores aliados. We're all about underdogs.

Y - Yay!
A única crítica que o disco da XNC teve terminava com um Yay! Não era uma crítica positiva (e não a achei completamente justa) mas era uma crítica divertida. O Gato Mariano é em Portugal a melhor crítica musical. É pós-moderna no melhor sentido (porque geralmente não uso o termo pós-moderno como elogio), e traz novidade. Parte de um disco para nos dar mais do que apenas a opinião acerca desse disco. Espero que o Gato Mariano continue (de preferência menos especializado na cenazinha indie deprê nacional).

Z - Zeros
Como escrevi no ano passado, a rigor não são zeros porque o zero inspira-nos neutralidade. Quando falo de zeros não falo de neutralidade mas de erro, de pecado, de mal (na Palavra saber fazer o bem e não o fazer é fazer o mal). Batalhas para 2015: menos distracção e mais coragem.


















A ilustração é do Pedro Lourenço.

terça-feira, dezembro 30, 2014

Ouvir
Fazer a vontade de Deus tem provavelmente muito mais a ver com a atenção que prestamos ao que já está a acontecer na nossa vida pela sua graça, do que a ver com a ansiedade com que desejamos que ele concretize algumas coisas na nossa vida.
O sermão de Domingo passado aqui (clicar em cima de aqui).

segunda-feira, dezembro 29, 2014

A terceira pessoa da Trindade é eficiente
Richard Sibbes foi um puritano que gastou muito tempo a falar do Espírito Santo. E a falar em particular de como o Espírito Santo trabalha na vida das pessoas que o recebem. Sibbes queria ser o mais específico possível, apontando para a qualidade quotidiana do Espírito Santo. Como os puritanos desprezam teorias que não se vêem na prática, dizia-se acerca de Sibbes que o céu estava nele antes de ele estar no céu. Para os puritanos ou o cristianismo dava para tocar ou não servia para teorizar.
Richard Sibbes pregava para acordar os nossos sentidos para o governo de Cristo. Para isso é possível resumir o essencial da sua pregação em 4 pontos. O primeiro é acerca da habitação do Espírito Santo. Qualquer habitação do Espírito é sempre trinitária. O Pai e o Filho nada fazem sem o Espírito e o Espírito nada faz sem o Pai e sem o Filho. Logo, se o Espírito habita em alguém, essa pessoa ganha uma comunhão também com o Pai e o Filho, com todas as pessoas da Trindade.
A consequência do Espírito estar numa alma é essa alma ser transformada segundo a característica nuclear do Espírito: a santidade. Essa transformação é um processo em que a nossa velha natureza é deposta e o governo de Cristo implementado. Ser santo também é um acontecimento político. As cadeiras do poder registam novos ocupantes.
A transformação que o Espírito Santo traz é externa, expulsanso as trevas, mas também é interna, expulsando os desejos da carne (da velha natureza pecaminosa). O Espirito Santo não é um diplomata de tempos pacíficos mas, neste sentido, um conquistador. Um conquistador que ganha uma batalha maior, aquela do Calvário em que os nossos corações nasceram de novo - na justificação. Mas consequentemente há outras batalhas mais pequenas a serem travadas no dia-a-dia, na nossa santificação. A presença do Espírito Santo traz consigo a presença de conflitos constantes contra o nosso pecado. Homens com o Espírito Santo não são criaturas amolecidas mas são criaturas de guerra.
O segundo ponto é acerca de como o Espírito sela as nossas almas. Se ainda agora falávamos do Espírito Santo acarretar consigo uma dimensão de conflito, isso não significa que não traga também uma dimensão de paz. Uma das coisas que acontece é a chegada à pessoa que recebe o Espírito Santo de uma segurança pessoal acerca da sua fé e salvação. Richard Sibbes distingue entre o Espírito Santo selar a nossa alma na regeneração e posteriormente aplicar esse selo à consciência do crente. É nessa consciência que se reforça uma segurança no crente que é uma marca de genuínas maturidade e autenticidade. Para tal é preciso que haja experiências concretas e quotidianas, o que não significa um misticismo vago mas uma espiritualidade firmada nas Escrituras. Joel Beeke e Mark Jones escrevem assim: "Sibbes emphasized both the intuitive testimony of the Spirit and the sanctifying fruits of the Spirit. The Spirit's sealing is inward in its essence and outward in its fruit." O Espírito Santo trabalha para dentro e para fora. Há uma parte que é subjectiva, sentida no coração do crente, e há outra bem objectiva que se vê no que o esse crente faz.
Um exemplo prático: é o selo do Espírito Santo que permite que um cristão se aproxime da morte sem medo. Sibbes quer que aquilo que escreve seja entendido pastoralmente. Podemos ver um fio condutor do selo aos frutos, à segurança, ao amor por Deus e à obediência. É um processo completo.
Permitam-se um comentário nesta questão da segurança que o Espírito Santo traz. Mesmo entre evangélicos este é um assunto divisor. Entre aqueles que acham absolutamente natural que o cristão se sinta seguro da sua salvação, e os outros que consideram essa segurança uma presunção. Encaixo-me no primeiro grupo. E sem querer entrar a fundo no tema diria apenas que a certeza da salvação não tem a ver primariamente com aquilo que acontece na consciência do crente. A certeza da salvação não decorre de um convencimento subjectivo mas do trabalho objectivo do Espírito Santo. Quem não crê na certeza da salvação acaba por acusar, ainda que inconscientemente, o Espírito Santo de incompetência. Não é absurdo acreditar que o Espírito Santo tem o poder para pegar numa alma morta e dar-lhe nova vida mas não tem o poder de dar a essa alma uma consciência do facto? Isto não é acerca do que acontece na cabeça do crente, é acerca do que acontece no poder de Deus Espírito Santo.
O terceiro ponto da pregação de Sibbes tem a ver com o Espírito Santo como confortador. Há um consolo vindo do Espírito que confronta os momentos de desânimo que fazem parte da vida de qualquer crente. Não é possível esperar que o Espírito Santo seja um símbolo de alegria fácil. O Espírito significa também um consolador que nos ajuda a recuperar alguma da comunhão com Deus que se perdeu com a queda.
O quarto e último ponto tem a ver com a possibilidade de entristecermos o Espírito Santo. E quando falava disto Sibbes apontava a mira especialmente aos professores de religião que se especializavam nela sem a viver. Pecados espirituais como o orgulho e a inveja são dos que mais entristecem o Espírito porque revelam um desejo de se viver autonomamente do seu poder. Um orgulhoso é alguém que para defender a sua identidade recua para a sua personalidade de origem, não para a nova que o Espírito Santo lhe ofereceu. E um invejoso é alguém que para defender a sua identidade avança para uma personalidade que o seduziu que encontrou noutra pessoa, não para aquela que o Espírito Santo lhe ofereceu. Sibbes sabia que estas tentações fazem parte do jogo e só se combatem com um recolhimento para a meditação, e não para um ascetismo que resolve os problemas numa atmosfera artificial.


















[Escrito a partir do capítulo "Richard Sibbes on Entertaining The Holy Spirit", do calhamaço "A Puritan Theology" de Joel Beeke e Mark Jones.]

quinta-feira, dezembro 25, 2014

Postal de Natal


terça-feira, dezembro 23, 2014

Ouvir
Se eu não consigo ser bom, é natural que me perturbe quando alguém me elogia a a bondade. Mas se alguém me diz que Deus está no negócio de fazer coisas impossíveis, então a bondade que me falta não é a última palavra acerca de mim. A minha identidade pode ser o que Deus quiser porque ele vai onde eu não. Só preciso de me disponibilizar para esse poder. Para que Deus cumpra em mim a sua palavra. Este foi o exemplo de Maria.
O sermão de Domingo passado pode ser ouvido aqui (clicar em cima de aqui).

sexta-feira, dezembro 19, 2014

Para o sermão deste Domingo
A reacção de Maria não é ao facto de lhe aparecer um anjo. A reacção de Maria é ao facto de, aparecendo-lhe um anjo, aparecer-lhe uma graça especial. Esta humildade de Maria é magnífica. Que Deus envie anjos é mais pacífico para Maria que Deus enviar anjos que digam que ela é especial. Para Maria parece impossível que ela possa ser especial.

quinta-feira, dezembro 18, 2014

No seu coração o Pastor-de-Pijama é um grande rebelde
Lei de Deus. Eis três palavras que juntas têm pouquíssimo charme no mercado actual do dicionário. Pena é que boa parte desse cafonice colada a estas três palavras juntas passe também pela preguiça dos cristãos em pensar. Lei de Deus são três palavras que juntas deviam despertar o nosso desejo. Exagerando um bocadinho, diria que "lei de Deus" deveria ser uma expressão libidinosa para o cristão. Libidinosa no sentido em que a palavra libidinosa está associada ao desejo. Um cristão quando pensa na lei de Deus não deve sentir um turn off. Deve sentir um turn on. Os puritanos, claro está!, percebiam isto muito bem. E ajudam-nos muito, se nós formos corajosos ao ponto de querermos ser ajudados.
Os puritanos pensavam muito sobre a lei. Entre várias coisas concluiam, por exemplo, quatro coisas acerca da lei.
1) Que o pecado a transgride.
2) Que a morte de Cristo a satisfaz.
3) Que a justificação é o veredicto dela.
4) E que a santificação é o cumprimento dela.
Bestial! Os puritanos sabiam que o facto do Deus do Velho Testamento (e de toda a Bíblia!) ser um Deus de lei não era uma coisa má. Bem pelo contrário. Os Reformadores, antes deles, diziam o mesmo. Ora, é importante compreender a importância  dos Reformadores falarem sobre a lei porque frequentemente os Reformadores eram acusados pelos Romanos de serem contra ela (sob o pretexto que defender a justificação pela fé era promover uma fé sem lei). Ao mesmo tempo, e no outro extremo da balança, os antinomianos defendiam efectivamente que o cristão, sendo justificado pela fé, estava livre para não ter de a cumprir. Para que ninguém endoidecesse no meio da Reforma Protestante, os seus protagonistas entendiam a importância da lei. Sobre ela diziam que era essencial compreender os seus três usos. Vamos a eles.
O primeiro uso da lei pode ser chamado civil. Nesse uso, a lei serve para guiar a conduta dos cidadãos. O segundo uso da lei pode ser chamado evangélico. Nesse uso, a lei serve para conduzir os crentes da sua insuficiência moral à confiança em Cristo. O terceiro uso da lei pode ser chamado normativo e aplica-se exclusivamente aos crentes. Nesse uso, a lei serve de regra para que as vidas dos cristãos sejam vividas de uma maneira que agrade a Deus. Logo, num primeiro momento a lei coage, num segundo momento estarrece, e num terceiro requer obediência. Lutero e Calvino concordavam no primeiro e segundo uso. O terceiro não foi desenvolvido por Lutero. Assim, podemos ver que a acusação que Romanos faziam aos Reformados é injusta: a lei é algo bem positivo para os últimos.
Os Reformados não ficam com uma dicotomia de lei versus graça. O que acontece é mesmo o oposto: quem é graciosamente guiado pelo Espírito ganha uma amizade pela lei. Agradece-se pela lei porque o evangelho diz-nos que podemos cumpri-la com o poder de Deus em nós. A liberdade que Cristo nos dá não é uma liberdade da lei (a liberdade de já não termos de a cumprir), mas a liberdade do pecado e da morte. Jesus morre não para nos salvar nos nossos pecados, mas para nos salvar dos nossos pecados. O puritano Ezekiel Hopkins dizia: "a nossa obediência à lei é a única evidência sólida do direito que temos às promessas do evangelho." E Samuel Bolton: "a lei é abolida enquanto pacto para a nossa justificação, mas permanece como uma regra para a nossa obediência." A lei não serve para nos salvar mas serve para mostrar que somos salvos.
Deus aborrece sempre o nosso pecado, seja aquele praticado antes ou depois da nossa conversão. Isto porque, se a lei está baseada na imutável justiça de Deus, logo nunca perde a sua validade. A lei não serve só para mostrar que somos pecadores, especialmente antes de nos convertermos. A lei serve também para depois de nos convertermos, como parte da graça de Deus connosco. A suficiência da lei vê-se na sua exigência: é-nos pedido que ajamos de "todo o coração, alma, mente e forças (Lucas 10:27)". A lei tanto dá propósitos evangélicos como princípios evangélicos - as duas coisas colaboram para que almas sejam redimidas.
Joel Beeke e Mark Jones colocam as coisas assim: "Aqueles que dizem que o evangelho anula a nossa obrigação de obedecer à lei deveriam compreender que nada demonstra quanto Deus valoriza altamente a sua lei como o evangelho de Cristo, proclamando que Cristo foi enviado para satisfazer as exigências da lei por nós a seu próprio custo." Deixem-me simplificar: é um disparate um cristão sentir-se livre para não praticar a lei quando foi a lei que exigiu que Cristo viesse e, portanto, tornasse possível a existência de cristãos. Um cristão que relativiza a obediência é um cristão que que deita para o lixo o que permitiu a sua própria identidade. Um cristão que relativiza a obediência é um pateta que provavelmente não é cristão (eu disse que ia simplificar).
Atitudes práticas no final disto tudo. Devemos obedecer à lei mesmo quando o nosso coração não está lá porque na sua obediência frequentemente o nosso coração é lá acordado. Dava jeito alguns pastores-de-pijama (aquele género de pastores que pregam o conforto deitado) interiorizarem esta verdade antes de aconselharem os crentes a fazerem somente aquilo que já lhes está no coração. Seguirmos apenas os nossos sentimentos independentemente da lei também é um legalismo. E um legalismo que parte de um princípio ridículo que é achar que os nossos sentimentos são lugares à partida mais justos.
Isto não significa que se obedece à custa de um coração frio. Não. A obediência realmente evangélica é uma submissão cujo combustível é o amor por Deus. Da mesma maneira que um marido não abandona a mulher (e vice-versa) nos dias em que sente menos apaixonado por ela, não deixamos de fazer o que Deus nos pede para fazermos quando não nos apetece fazê-lo. Os puritanos percebiam isto muito bem. O amor que eles tinham à lei de Deus tinha o tamanho do Salmo 119.












[Escrito a partir do capítulo "The Puritans On the Third Use of the Law", do calhamaço "A Puritan Theology" de Joel Beeke e Mark Jones.]

terça-feira, dezembro 16, 2014

Ouvir
João Baptista não era dos religiosos nem dos revolucionários. João Baptista era de Cristo. Vivia de pouco porque tinha tudo o que precisava. Comia gafanhotos e mel porque tinha a barriga cheia do Espírito de Deus.
O sermão de Domingo passado pode ser ouvido aqui (clicar em cima de aqui).

sexta-feira, dezembro 12, 2014

Já está nas bancas
A Revista Ler onde escrevo sobre Flannery O'Connor (Flannery, sempre a Flannery!) e o Profeta Jeremias:

Se os escritores sem fé escrevem para fintar a morte, os profetas do Velho Testamento escreviam abrindo-lhe os braços. (...) Devemos escrever para escapar da morte ou para lhe dar as boas-vindas?
 

quarta-feira, dezembro 10, 2014

Conversas que mostram pessoas que são continentes
Nos últimos anos a teologia reivindicou a maior parte da minha leitura. Sinto remorsos pela lentidão com que leio clássicos. Quando há uns meses fui de férias para o Algarve peguei num dos que estava na prateleira - "The Portrait of a Lady" (dado pelo meu amigo Filipe Costa Almeida). O volume assusta um bocado e quem já leu o Henry James sabe que não o aguarda uma leitura de aventuras excitantes. Ou melhor, há excitação mas é de outra estirpe. Henry James é um filósofo que escreve romances. Do mesmo modo como há romancistas que escrevem filosofia. James tem um faro apurado para escrever circunstâncias que procuram mais do que mostram. Posso estar a ver mal as coisas mas para mim o James é um Proust que correu bem.
Um dos temas preferidos dos seus livros foi um dos temas da sua vida: um coração dividido entre a Inglaterra e a América. Em "The Portrait of a Lady" está cá isso também. Do que é que uma família britânica carece para alguma emoção na sua previsível rotina? De uma americana, claro está. E assim temos Isabel Archer, a personagem central. Isabel é uma prima que vem transformar a família Touchett. Apesar de lhe conhecermos o país de origem, não é possível mapear-lhe os passos. Isabel é um continente em si mesma. "«Well, I don't like originals; I like translations», Mr. Ludlow had more than once replied. «Isabel's written in a foreign language. I can't make her out. She ought to marry an Armenian or a Portuguese»." (pág. 47)
Ao contrário de muitos escritores que apresentam as personagens gradualmente, à medida que a acção decorre, James parece pôr de imediato toda a carne no assador. Nesse sentido ele não promete futuros efeitos-surpresa para prender o leitor. Essa é uma das características que acho verdadeiramente admirável em James: divertir-se nas primeiras dez páginas a querer fazer desistir boa parte daqueles que lêem os seus livros. Um grande escritor não deve ser reconhecido também no facto de enxotar leitores indesejáveis? Um grande escritor também é o convívio que não deseja que os seus livros obtenham. "An englishman's never so natural when he's holding his tongue." (pág. 106)
Henry James apresenta as personagens tão rapidamente e de um modo tão bem sintetizado em humor que parece que não vale a pena o livro passar dos primeiros três capítulos. Aliás, essa é outra das sensações que comprova a ética jamesiana: por que razão continuar a ler se nos parece que só o início já chega? Há momentos em que Henry James nos diz que não está interessado em ser lido, está interessado em ensinar-nos a ler. Não espanta que muitos possam achar a sua escrita presunçosa. Para mim até é presunçosa, de facto, mas é presunçosa da maneira certa. O leitor fica prematuramente convicto de que as personagens do livro servem mais de pretextos para James debitar a sua verve, como sacos de ironia e lições de vida numa frase apenas.
Por outro lado, os livros de James não pedem grandes circunstâncias para resolverem as personagens (as personagens não querem ser resolvidas). Desacelerando qualquer apetite épico, as personagens de James é que exigem circunstâncias à altura do seu carácter. O que faz todo o sentido se pensarmos que James foi um americano tornado inglês. Mesmo os eventos mais assinaláveis que acontecem a Isabel Archer não surgem com estrondo mas, antes pelo contrário, são referidos como quase notas de rodapé. O foco não é aquilo que acontece a Isabel, o foco é Isabel acontecer.
O que podia ser um equilíbrio complicado entre uma mestria crocante na descrição que o narrador faz das personagens e os diálogos entre elas, torna-se um dos triunfos totais de James. Se a qualidade aforística do narrador sobre as personagens é imbatível, os diálogos entre elas não ficam atrás. Com James a acção está tanto no que acontece nos momentos de ausência de conversa como nos momentos de conversa.
Um dos efeitos que Henry James me provoca não é necessariamente querer ler mais. Mas querer falar mais. E querer falar mais para, de alguma maneira, tentar reproduzir o prazer superior que as suas personagens retiram dos diálogos. Correndo o risco de soar catastrofista, não somos hoje todos um bocado analfabetos na arte de um bom diálogo? É tão raro participarmos de uma conversa bonita que me convenço que tantas solicitações para comunicar espalmaram-nos enquanto seres falantes. Precisamos de restituir às nossas palavras quotidianas uma qualidade litúrgica (I'm preaching already!).
Por outro lado, o parágrafo seguinte é brilhante mostrando o perigo de fazer da nossa interacção social a base da nossa identidade: "She was in a word too perfectly the social animal that man and woman arte supposed to have been intended to be; and she had rid herself of every remnant of that tonic wildness which we may assume to have belonged even to the most amiable persons in the ages before country-house life was the fashion. Isabel found it difficult to think of her in any detachment or privacy, she existed only in her relations, direct or indirect, with her fellow mortals. One might wonder what commerce she could possibly hold with her own spirit." (pág. 213 - uau! este excerto é um bocado a história do meu 2014, fugindo das ciber-distracções para ganhar algum comércio com o meu próprio espírito, mas divago...)
Isabel Archer é uma personagem inesquecível. Sei que entretanto Nicole Kidman a representou no filme sobre o livro. Deverei arriscar? Dificilmente o ecrã conseguirá fazer-lhe justiça quando as páginas a libertam tanto na nossa imaginação.




segunda-feira, dezembro 08, 2014

Ouvir
O amor de Deus é extravagante. O sermão do segundo Domingo do Advento, pregado pelo Pr. Jónatas Figueiredo ontem na Lapa, pode ser ouvido aqui (clicar em cima de aqui).

sexta-feira, dezembro 05, 2014

Filmar que as trevas também existem na Europa
"O Tempo do Lobo" de Michael Haneke é um filme de terror em que os zombies estão vivos. E isto serve de pretexto para, mais uma vez, sublinhar a diferença de tratamento que América e Europa dão ao problema do mal. A tendência da primeira é carregar-lhe os traços, ao passo que a segunda os atenua. Isto não quer dizer que os americanos usam monstros nos seus filmes porque acreditam que o mal acontece fora dos homens. Mas parece que os americanos precisam de serem mais impressionados para se recordarem que são maus. O vilão têm de ter requintes de malvadez, o apocalipse tem de consumir muitos efeitos especiais, o mundo tem de acabar com estrondo. Já para os europeus o problema do mal filma-se optando pelo silêncio. Nesse sentido, os filmes mais assustadores feitos na europa tendem a ser quietos. Talvez porque a sensibilidade europeia em relação ao problema do mal genuinamente dispense o alarido. Creio que em termos práticos, e no meio de tanto sossego estético, a Europa corre o risco de adormecer para o problema do mal, eventualmente chegando a um ponto onde já não o reconhece sequer. Mas isso já são elaborações mais pessoais e que agora não interessam tanto. De qualquer modo, realizadores como Michael Haneke estão cá precisamente para salvar a honra do nosso continente no que diz respeito ao reconhecimento que o mal existe e merece ser tratado em filme.
"O Tempo do Lobo" é um filme tão forte na mesma medida que é um automóvel que se comporta melhor nas mudanças mais baixas. A primeira morte, logo no início do filme, mostra que Haneke não está interessado em filmar ao jeito de quem acende um rastilho. O suspense importa-lhe pouco porque a maior explosão é no filme um ponto de partida para a acção, e não o ponto final onde a acção deve culminar. Outro exemplo para esta força funda do filme é o facto das cenas nocturnas serem vistas pelo espectador de um modo realmente nocturno. Ao contrário da maior parte da indústria cinematográfica, especialista em iluminar a noite para que seja sempre clara para os olhos do espectador (umas das grandes fraudes da contemporaneidade - esconder o que é uma noite escura e por isso induzir as pessoas a não compreender espiritualmente a existência das trevas), Haneke filma a noite para que ela seja para nós como é na realidade: imperceptível. A família do filme, que deambula pela França rural, quando precisa de ver alguma coisa à noite, acende archotes ou fogueiras. Nós só vemos alguma coisa quando as personagens conseguem ver alguma coisa. O que no espectador se perde em conforto, ganha-se em ansiedade - o espectador não contempla a acção do lado de fora, vendo o que as pobres personagens não podem ver. A ansiedade de Haneke não é a ansiedade dos cheap thrills dos grandes estúdios (atenção: sou todo a favor das boas cheap thrills dos grandes estúdios). Mas é uma ansiedade que dispensa a espectacularidade. Provavelmente porque crê que a espectacularidade nos pode distrair do mais importante no problema do mal: o mal é impiedoso ao ponto de funcionar independentemente de nos impressionar. O mal é tão mau que não fica à espera que nos espantemos com ele. O mal é um funcionário competente que cumpre as suas obrigações mesmo que ninguém elogie o seu trabalho. O cinema europeu apanha melhor isto. O americano nem tanto.
Tentando dizer isto de outra maneira, Haneke quer que reconheçamos a presença do mal mesmo quando ela não lança foguetes. Para isso, precisamos necessariamente de nos envolver com o filme esquecendo a distância que temos com as personagens. Sei que soa a simplificação pouco eloquente, mas "O Tempo do Lobo" tem de ser mais vivido que apenas visto.
Dois exemplos disto mostram-se no modo como Haneke permite que o choro de crianças faça aquilo que geralmente o choro de crianças faz no mundo real - intromete-se. O choro das crianças em "O Tempo dos Lobos" atrapalha as cenas para nos maçar tanto num cenário apocalíptico como nos maça num cenário idílico. Haneke com isso quer dizer-nos que a distância entre o Paraíso e o Inferno não é assim tão grande e, por isso mesmo, opta por zombies que estão vivos. O que é monstruoso é muito mais parecido com a rotina do que podemos imaginar, diz-nos Haneke. E este é um dos seus trunfos. As premissas de "O Tempo dos Lobos" não são diferentes de todos os blockbusters sobre o fim do mundo, no entanto, nada é explorado da mesma maneira. Este é um filme tão chato como um filme francês sobre dramas proustianos porque Haneke quer-nos ensinar que o Armagedão não é necessariamente uma coisa por vir mas uma coisa que, se prestarmos atenção, já está a acontecer.
Eu, que gasto muito mais tempo com o cinema apocalíptico americano do que com o cinema europeu em geral, tenho de reconhecer que há opção ética preferível no último. Essa opção ética preferível tem a ver com o modo como o mal se filma. Haneke, filmando o mal, filma-o com pudor. Quem é baleado é representado na câmara apenas com salpicos de sangue no rosto da personagem ao seu lado; quem é abusado sexualmente é representado na câmara apenas ajeitando a saia depois desse abuso ser consumado sem ser mostrado, isto para referir apenas dois exemplos. Talvez force demasiado a barra com esta comparação, mas vejo vestígios de um sóbrio calvinismo cinematográfico com o qual os americanos deviam aprender mais. A impressão é importante no cinema mas não pode ser tudo. O yuck factor precisa de ser questionado como dispositivo emocional.
Precisamos de mais apocalipse no cinema europeu porque o apocalipse no cinema europeu nos mostra melhor que o dia-a-dia não é só rotina, é também ruína. Michael Haneke tem sido brilhante nesta tarefa.


quarta-feira, dezembro 03, 2014

O calendário como adoração
Hoje quando lia o Primeiro Livro dos Reis na Bíblia Arqueológica (uma Bíblia de estudo que recebi de amável presente de um grupo de jovens da minha igreja) descobri que quando Israel se dividiu entre Reino do Norte e Reino do Sul, dividiu-se também o modo como se contava o ano. O Reino do Norte começava o ano da Primavera (no mês de Nisan) e o Reino do Sul começava o ano no Outono (no mês de Tsiri). Lembrei-me de uma coisa que escrevi há três meses: "na minha opinião, quando Deus criou o mundo era Setembro. Setembro tem a luz suave dos começos. Começar o mundo na Primavera parece-me apressar as coisas para um clímax prematuro. Setembro dá-nos a tranquilidade de descer. O frio que está pela frente é mais pedagógico, para que quando o calor apareça de novo saibamos tê-lo como uma dádiva e não com indiferença."
Há uns Domingos o texto do sermão foi o Salmo 90 e reflectimos sobre a importância espiritual de saber contar os dias. Este tem sido um assunto muito presente ultimamente. Ainda mais agora que começámos a caminhada para o Advento. Para o cristão o tempo não é uma realidade neutra mas uma realidade que abraça o espiritual, e que é transformada por ele. É impossível viver neste mundo sem que digamos coisas acerca de nós através do modo como organizamos o tempo. Também é por isto que a preguiça é um pecado grave nas páginas da Bíblia (a preguiça trata o tempo como se não fosse tempo). E também é por isto que não descansar é um pecado grave nas páginas da Bíblia (não descansar trata o tempo como se não fosse tempo).
O Reino do Sul portou-se mal. Mas o Reino do Norte portou-se muito pior. Sem querer edificar teorias exageradas acerca do assunto, diria que aqueles que têm o coração mais inclinado para Deus (como David, e portanto parte da sua dinastia) provavelmente não querem viver o ano começando com facilidades. Há que começar com a exigência do Outono e do Inverno. A Primavera e o Verão são um louvor experimentado pelo trabalho que os antecedeu. Organizar o calendário também é matéria de adoração.


terça-feira, dezembro 02, 2014

Da audiência para o lar
Os puritanos são acusados de desenvolver pouco a doutrina da adopção. Será justo? É fácil achar que estes homens, com toda a reputação de frieza, não teriam grande vocação para assuntos que enfatizassem relações tão quentes como as de um pai e seu filho. Mas isto não é verdade, como veremos. Podemos confiar que os puritanos não eram pais a custo.
Existe uma coisa chamada ordo salutis. Está no latim, como dá para calcular. Quer dizer a ordem da salvação. Como tem sido dito nestes textos sobre os puritanos, eles eram especialistas em horas e cálculos. Não foram eles que inventaram estas coisas. Sempre existiram na cristandade. Significa que nesta ordem da salvação o Protestantismo tradicionalmente a coloca assim: primeiro a regeneração; segundo a justificação; terceiro a adopção; e quarto a santificação. Muito sucintamente, na regeneração temos uma nova natureza, na justificação temos um novo estado, na adopção temos uma nova posição (ou estatuto), e na santificação temos um novo carácter. Joel Beeke e Mark Jones escrevem: "Adoption is a richer blessing than justification because it brings us from courtroom into the family." Aquilo que parece distante, na expressão latina da ordo salutis, é um fenómeno de ternura: um cristão é uma criatura que sem dúvida passa pelo tribunal divino. Mas termina aconchegada na cama do melhor quarto da casa pelo juiz que agora é pai e lhe dá as boas noites.
A santificação é a prática dessa nova identidade de filhos de Deus por adopção que somos. A adopção não é esgotada nos aspectos forenses da justificação, antes acresce aspectos familiares à justificação. Deus não adopta ninguém porque tem de o fazer. Deus adopta alguém porque o quer fazer, porque ama esse alguém gratuitamente. Isto é tão mais importante porque os cristãos reformados enfatizam que não somos todos filhos de Deus. Somos todos criaturas dele. Mas filhos são apenas aqueles que são adoptados por Deus através da morte e ressurreição do Filho de Deus. Se todos fôssemos filhos de Deus isso dizia mais da indiferença de Deus connosco, do que de um amor verdadeiro que é intencional e concreto. O amor não é por inércia mas por iniciativa.
É importante perceber a adopção porque na adopção está toda a Trindade em acção: Deus Pai escolhe-nos e dá-nos privilégios de filho; Deus Filho ganha o direito a esses dons pela sua morte expiatória; e Deus Espírito Santo transforma-nos de filhos da ira em filhos de Deus. A filiação que a adopção permite deve ser o estado definidor de qualquer cristão. O cristão torna-se um embaixador da família de Deus nesta vida. O cristão tem de viver como alguém que honra o nome da sua família porque a sua família é a de Deus. É isto que torna especialmente sério o pecado da falta de amor por um irmão na fé. Quando não amamos um irmão na fé afirmamos que o Pai também não o ama. Porque demonstramos, sendo filhos do nosso pai, que o temperamente da nossa família é o do não-amor. A Bíblia diz que o mundo reconhecerá que somos cristãos quando nos amamos uns aos outros. Esta verdade tem tudo a ver com a questão da adopção.
É por sermos filhos de Deus que temos direito a herdar a criação divina. A natureza não é nossa mãe mas a herança que o nosso Pai nos deixou.
Como qualquer filho, temos responsabilidades com o nosso Pai. Os filhos muitas vezes fazem asneira na ausência do pai. Mas este Pai que é Deus nunca está ausente. Logo, temos outro enquadramento para o mal que fazemos. Este Pai tem maneiras de tratar os nossos erros como os nossos pais da terra não. Isso faz com que aspectos como a submissão a este Pai não sejam vistos como um peso mas como um alívio. A presença deste Pai torna-se sobretudo como algo que se quer saborear.















[Escrito a partir do capítulo "The Puritans On Adoption", do calhamaço "A Puritan Theology" de Joel Beeke e Mark Jones.]

segunda-feira, dezembro 01, 2014

Ouvir
Uns acham-se melhores porque desprezar a festa do Natal é um crime; outros acham-se melhores porque participar da festa é uma hipocrisia. Ambos caem no erro que é fazerem de si próprios o centro da estação. O nascimento de Cristo é acerca de Cristo.
O sermão de ontem aqui (clicar em cima de aqui).