sexta-feira, fevereiro 27, 2004

Para o fim de Março a grafonola orgulhar-se-á
Um inventário em construção
Muitas coisas me fazem ser um transgressor miserável às leis de Deus. Umas poucas atenuam a minha ausência de virtudes. Hoje, a saber, enumero três:
- ter um pai que na altura certa me deu umas chapadas certeiras
- ter querido ser metálico aos 14 anos
- não ter lido em excesso na infância
A lista prosseguirá.
Dois homens
De um lado o homem trazido por D.H. Lawrence que deve olhar para o céu para agradecer a bênção de existir. Do outro, o pecador dos evangelhos que por se sentir indigno nem sequer consegue levantar os olhos para o horizonte.
A distância do chão ao céu
Estive em Marrocos em 1996. Fui com outros evangélicos numa quase-secreta missão proselitista. O objectivo era orar para que a fé cristã criasse condições de crescimento naquela terra muçulmana-ao-arrepio. Mas não me interessa agora esse lado da questão.
Não é possível sair de um sítio daqueles com a planta do cinismo que por aqui se cultiva. A miséria e a ausência de liberdade são grandes demais. Não há charme num lugar em que a pessoa vale pouco.
Foi preciso a terra tremer para me recordar de Marrocos.

quinta-feira, fevereiro 26, 2004

O véu
Uma vez Heidegger disse a Jean Guitton: "Se quereis progredir em filosofia como na religião, fazei-vos interrogar por uma criança. Não podereis responder-lhe sempre, mas ela far-vos-á descobrir a verdade: porque o verdadeiro está sempre oculto. A criança elimina o véu".
Breve retrato num acampamento de jovens baptistas
O rapaz com os dentes cariados dirige o tempo de louvor. Fala em excesso e tem decoradas as frases feitas que costuma ouvir nos discos brasileiros de música evangélica. Escolhe os cânticos mais pindéricos. Os que levam as pessoas a dar as mãos e a dizer frases como "com ousadia vou mover no sobrenatural".
Ele tem problemas respiratórios e com a sua imagem. Parece que fuma às escondidas. Faz aquelas madeixas louras habituais da classe média suburbana.

quarta-feira, fevereiro 25, 2004

Muitos parabéns ao Jim
Os Marretas fizeram um ano!
Azul Limão
A minha querida Papoila zangou-se. A coisa do aborto vira-a do avesso. Uma mulher nunca fica bonita a fumar nem a defender o homicídio intra-uterino. Providencialmente, a Maria Limonada chegou para reabilitar Eva.
Vara Verde
O pastor João Serafim Regueiras é um amigo. Quando regressou da guerra do Ultramar fez as cantigas mais decentes da história dos baptistas portugueses (aqui conseguem sacar uma). Tem um blogue. Como bom pregador que é, não nos arrelia com sermões em ricochete. Limita-se a transcrever palavras de Jesus. Leitura diária.

sexta-feira, fevereiro 20, 2004

Até que a festa pagã passe
Crescer num lar protestante significa ter fortes recalcamentos com o Carnaval. Nunca fui decentemente mascarado para a escola. Cowboys com coletes de lã não convencem ninguém.
No grande ecrã
Vejo o trailer da "Paixão de Cristo", de Mel Gibson. Quando reparo que traduzem grace como beleza percebo melhor o porquê de rodar o filme em aramaico e latim.
Na rádio III
Novamente no rádio. Apanho um programa sobre a amamentação. Pelas razões óbvias, presto um pouco de atenção. Assim que a parte técnica dura começa, mudo de estação. A maternidade enquanto trabalho profissional não me interessa.

quinta-feira, fevereiro 19, 2004

Confissão de quinta-feira
Esta gente está à espera que eu morra para comprar os meus discos.

quarta-feira, fevereiro 18, 2004

Na rádio II
Apanho outra estação onde uma voz brasileira diz que aquele que pratica a vontade do Senhor tem o direito de reivindicar junto dele o fim de todos os problemas. Como o leitor antecipará, os evangélicos estão acostumados a estas ladainhas da teologia da prosperidade. É difícil, quando se acredita em Deus, não colocá-lo ao nosso serviço. Todo o cristão tem um lado mafioso. Cabe à fé enxotar o Al Capone que se deita à sombra de cada alma.
Na rádio
Na rádio assisto a um programa sobre poesia. Parece que após a tentativa de Nietzsche dar cabo de Deus a poesia conquistou nas classes civilizadas o único chão sagrado. Eu, que sou um homem da religião, sinto-me aqui claramente deslocado. A entrevistadora mede cuidadosamante as palavras. O levita no Santo dos Santos não hesitaria tanto. O entrevistado tem uma fala narcotizada. Apercebo-me que isso lhe confere estatuto, por isso faz questão de a arrastar muito, numa espécie de mantra gaguejante. Não se pode usar o termo "declamar". Mas sim "dizer". Faz-se muita questão. A coisa continua. Menciona-se o nome de Herberto Hélder e de Mário de Cesariny. Num tom de voz cada vez mais baixo. Numa solenidade grave. Quase que se adivinha uma hóstia perto de tão aquietados lábios.
Os missionários da literatura nunca me persuadiram a levantar o braço no apelo. Nunca entendi o sentido da expressão "versos que nos salvam". Sei que isso é mentira. Para esta fé permaneço um infiel.
Sobre a judiaria
Nuno, creio que o Vincent e o David, o José e o Fernando escreveram essencialmente tudo o que merecia ser dito. Copio por eles. Acrescento apenas uma nota infantil. Se eu sustentasse a tese de que todos os pedófilos portugueses tinham nascido em Vila Franca de Xira, creio que o Estado não a deveria censurar. A mim restava torná-la verosímil. O que Gibson faz com o filme não me parece em nada semelhante (embora haja potencial cinematográfico na minha premissa ribatejana). Os judeus são prejudicados nos Estados Unidos por uma digestão pouco racional do Holocausto. Mas, como dizem os Bengelsdorffs, isso já são outros quinhentos.
Esta semana
Tenho uma nova banda preferida: The Slackers.

terça-feira, fevereiro 17, 2004

O último
O Nuno Guerreiro da imprescindível Rua da Judiaria pede a alguns cristãos um comentário em relação à problemática do filme de Mel Gibson. Já todos entregaram o teste. Está quase, está quase...
Obsessão
O Pedro ascendeu aos Céus. E agora? Fazemos como os de Tessalónica e vamos para os telhados esperar o seu regresso? Ou renegamos a fé?

segunda-feira, fevereiro 16, 2004

Do Bengelsdorff ao Sören
O Vincent escreve sabiamente: "As doenças dos tempos modernos, como a adolescência, as neuroses, os traumas psicológicos em vidas normais, psicoses, anorexias, depressões, esgotamentos, foram o maior furo comercial do século XX". Logo a seguir leio o Kierkegaard que o ajuda: "Seu desgosto, sua preocupação, seu desespero, tudo simples egoísmo - como essa angústia do pecado, à qual é a própria angústia que conduz, porque ela é amor-próprio que quer orgulhar-se de si, sem ser pecado...".
Lição
No dia em que me ia vangloriar de atingir o 17º lugar no ranquingue do Technorati, o valor mais alto de há muitos meses, descubro que desapareci inexplicavelmente da lista. "Deus resiste aos soberbos, mas dá graça aos humildes" (Tg 4:6).

sexta-feira, fevereiro 13, 2004

God Bless America
Parece que já circulam rumores de adultério sobre John Kerry, o candidato democrata. E se muitos se preocupam em atribuir aos Republicanos a hipótese de um truque baixo por aqui não existe a maior sombra de preocupação moralista.
Uma das provas do avanço civilizacional dos americanos é a profusão de presidentes com vidas sexuais hiperactivas. Não tenho a mínima dúvida que isto é herança de uma cultura protestante. Enquanto que os europeus vivem na sombra casta do matrimónio com o estado, os ianques não estão para brincadeiras. Estado sim, mas não assim tanto.
Calvino anda por aqui. O trabalho é um reflexo da graça de Deus não um castigo pela transgressão do Éden. Os estimados governantes do Velho Continente são cumpridores de penitência em temporária inactividade dos instintos. Os americanos sabem que ao lado de uma bênção habita sempre uma mulher dissoluta.

quinta-feira, fevereiro 12, 2004

Dias abençoados
Os meus ateus preferidos festejam o dia de S. Darwin. Aqui o baptista que não falha um culto de Domingo admite a sua incompleta beatitude. Às vezes a agenda foge-lhe da vista e esquece os feriados religiosos.
Quando se tenta chegar ao Céu
Ouço o melhor disco dos anos noventa: "Time Out Of Mind" do Dylan. They tell me everything is gonna be all right but I don't know what "all right" even means.
Golo
O Maradona (com M pequeno) tem um texto sobre as armas de destruição maciça que deve ser lido.

quarta-feira, fevereiro 11, 2004

Categorias teológicas
Segundo o weblog do Christianity Today a história dos petizes e do lago de enxofre que o Francisco refere terá sido um pouco diferente: a pequena Brandy de sete anos admoestou um colega por ele ter usado o nome de Deus em vão. Algo como "juro por Deus". Num país de protestantes, pouco dados a juras, a menina avisou-o que se o colega não se pusesse a pau ainda ia parar ao inferno. Outra alminha, ao ouvir a conversa, delatou a pequena apóstola por ter usado a palavra "hell", que naquele contexto é um palavrão. A Brandy ganhou um dia de suspensão.
Creio que o inferno é o estado de separação de Deus. Mas confirma-se a bizarra actualização do conceito: a interrupção da instrução é o hades da sociedade pós-cristã.
Nota quotidiana
Ao som do primeiro álbum da Missy Elliot inicio a leitura de "Do Cidadão" de Hobbes. Não é nenhuma metáfora. É uma noite de terça-feira.
Um reminiscência aguda
A Dona Viviana foi a primeira esposa do pastor que tive (esta é uma categoria importante para os baptistas). Com uma carreira na saúde pública, aplicou-me na infância uma injecção que ainda hoje lembro com dor. Ela usou de todo o cuidado e dedicação possíveis. Inversamente proporcionais à minha coragem no convívio com agulhas.
A Dona Viviana, que conta entre as suas virtudes o facto de ser a mãe dos Bengelsdorffs, é actualmente uma leitora atenta de blogues. Entre os quais, este. Faço votos de que aqui nada lhe possa cair em desgosto. Afinal, para quem já teve de me espetar com pedagogia a nádega amedrontada, tudo o resto se resumirá a assistir à criança deliciada com o chupa-chupa.

terça-feira, fevereiro 10, 2004

O que dizem os outros III
Apercebi-me através dos Canhotos que o aniversário do Padre António Vieira foi na semana passada. Sempre desconfiei de curas que caem nas boas graças de comunas, mas neste caso abro uma óbvia excepção.
O que dizem os outros II
O Alexandre Andrade, autor de outro dos meus blogues de eleição, reage ao termo "ateu" que usei há uns meses. Num texto muito bem escrito, como é costume dele. Vão ler. Se algo de "edificante" me ocorrer entretanto, tentarei comentar.
O que dizem os outros
O Nuno Miguel Guedes, do impecável Tradução Simultânea, perguntava que teria eu a dizer sobre a morte no estádio. Usando uma expressão de evangélicos, "nada de edificante". E consegui manter-me calado sobre o assunto. Este discípulo aqui está a fazer sérios progressos.

segunda-feira, fevereiro 09, 2004

Sábado III
Sábado à noite estou na igreja numa reunião de jovens. Não abrimos a Bíblia. Vamos comer pizzas. Peço ao António que agradeça pelo alimento. Inesperadamente, arranca com uma oração em crioulo. Está feliz. É a primeira vez que o ouço a falar na sua língua quotidiana. O pão comum que reabilita Babel.
Sábado II
Com a Gata Sombra ao colo, passo um par de horas da tarde de sábado a ouvir o Dylan. Leio-lhe as histórias, estudo-lhe a cronologia. O volume 1-3 das "Bootleg Series" apresenta-se como uma espécie de evangelho apócrifo com a vantagem de ter ilustrações.
Sábado I
No sábado de manhã ensaio umas corridas na praia de Santo Amaro. Uma visão capta-me o olhar. Três adolescentes de patins esbanjam aquela luxúria-em-projecto que só existe na puberdade. Simultaneamente, fumam. À vista do mar e, provavelmente, às escondidas dos pais.

sexta-feira, fevereiro 06, 2004

Uma prece
Foi uma semana complicada. Postando à distância. A ver se a coisa entra nos eixos. Bom fim-de-semana!

quinta-feira, fevereiro 05, 2004

Quinta-Feira escorregadia
Na segunda circular, numa suave transgressão do limite de velocidade, ouço o António Variações convidar-me a uma promiscuidade envergonhada. "Tu que buscas companhia e eu que busco quem quiser". Para podermos estar debaixo da graça temos de, pelo menos um bocadinho, querer estar fora da lei.
Depois da ética
Muitos amigos se queixam que tenho perdido tempo demais a falar sobre religião. Reconheço. Passo à estética.
Aproveito para informar que o melhor programa da televisão portuguesa é o "Preço Certo Em Euros".

terça-feira, fevereiro 03, 2004

Outro poste aberto
Caro CC, não me fiz de vítima. E até gosto quando me chamam herege. Mas de vez em quando não consigo resignar-me à minha direita imobilista.
Um abraço.
Tu sabes, Bob, que somos apressados
Fools rush in where angels fear to tread.
Guitton, quando dizes isso sinto um calor no estômago
"Esta nossa época tende a confundir a liberdade com a libertação que não é mais do que uma das condições da liberdade, a mais importante sem dúvida, mas também a mais fácil para o instinto".

segunda-feira, fevereiro 02, 2004

O patriota romano chocado
Reparei que alguns estimados bloguistas católicos aproveitaram a boleia do Barnabé para se atirarem aqui ao protestante de serviço. Some things never change. Perdoem-me o pecado do anglicismo.
Exegese para aquele com nome de discípulo IV
Acabo.
No texto que lhe sugeria (Mc.14:7), os discípulos indignavam-se com o desperdício monetário da mulher que lavava a cabeça de Jesus com tão dispendioso bálsamo. O André acerta quando diz que aqui interessa a "generosidade extraordinária, sem preço, incompreendida por quem pratica uma caridade apenas ritual". Mas Jesus foi certamente indelicado com os pobres. Não é bonito dizer que mendigos há muitos e para sempre promovendo tão injusta distribuição de riquezas para proveito próprio. O acto da mulher na sua crua aparência será sempre estouvado e ostensivo. Mas com isto lido eu bem. Resta saber se o André também.
Exegese para aquele com nome de discípulo III
Coisa grandiosa é esta: a de que alguns creiam que a Bíblia sugere modelos de virtude! Segundo tal raciocínio, os pobres ocupariam esta função: o facto de serem materialmente desapossados garantia-lhes uma qualidade espiritual intrínseca. Ora, até a Bíblia que fala de povo escolhido não chega tão longe na lógica de lugares marcados para o paraíso.
Tenho para comigo que conheço pouca coisa mais obscena que esta: falar em nome dos pobres quando não se o é. E apercebo-me com tristeza que os grandes apóstolos da correcta distribuição do arroz são frequentemente aqueles que já o devotaram para a copa das criadas.
Não nasci pobre. Ainda menos rico. Sou um suburbano feliz e com não-raras crises de sábado à tarde. Não conheço o meu estimado interlocutor André. Mas como bom carente da salvação que sou, desenho um estereótipo. E nos meus delírios bloguísticos, não existe audácia suficiente para colocá-lo ao lado dos pobres. Mas isto não será, certamente um argumento. Quando muito, uma atitude.
Exegese para aquele com nome de discípulo II
Deste lado da margem o evangelho não necessitou de ser reduzido à caridade com os pobres. A Bíblia é, neste aspecto, perfeitamente democrática - bate em mendigos e milionários. Porque deixa claro que todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus (Rm 3:23).
A assunção arrotada pela ignorância do costume vislumbra com um suor frio condescendente que coisa bela é tratar bem dos pobrezinhos. Segundo esta cartilha, o Messias terá sido um agente teórico de uma nova distribuição social das riquezas. Jesus efectivamente falou contra a riqueza, mas na medida em que não é possível um coração dividido. A tal história de não se poder servir a dois senhores (Mt. 6:24). Segundo este raciocínio, nos mesmos lençóis se deita alguém cujo seu amor aos carecidos supera o amor a Jesus. Mas isto, os filhotes dos claustros marxistas já não conseguem ver.
Exegese para aquele com nome de discípulo
O André chama-me à exegese. Tentarei estar à altura do desafio.
O século XIX foi o papão em cima do telhado das mentes modernas. O pânico foi tal que na fé muitos julgaram que a sobrevivência estaria na fuga eterna dos monstros anti-científicos das Escrituras. Ou seja, já que muitos sucumbiam ao embaraço intelectual de uma Bíblia com coxos a andar, pragas de gafanhotos, multiplicações de pães e tablettes de demónios, trate-se de inventar um cristianismo user-friendly. Este vagalhão varreu protestantes e, como é costume, uns tempos mais tarde, católicos.
Uma das soluções da estação foi deslocar o discurso religoso para o humanismo. Faziam-se as pazes com Darwin e com Marx. A escapar à moda subsistiram as igrejas mais fragmentárias da Reforma. Os radicais. Aquilo que, de alguma forma, deu origem ao que hoje chamamos de evangélicos. Ora, os evangélicos nunca tiveram vergonha na cara. É um dom de Deus. Desde pretos da Rua Azusa a académicos de Oxford, criou-se uma espécie de gente que se manteve a olhar para as Escrituras sem temer pelas ferocidades do animal.
Como o André calcula, é desta margem que este aplicado oponente lhe escreve.
Um lugar
Espero que a Sociedade Bíblica de Portugal se lembre de mim. É que pelos lados do Barnabé a manuscritura da Palavra já começou há algum tempo. Os melhores profetas são sempre os relutantes.