Para além dos aperitivosEste ano comemora-se o centenário do movimento pentecostal moderno. Foi em 1906 que, num bairro pobre de Los Angeles, William Seymour, um pregador negro, provocaria aquilo que ficou conhecido como o reavivamento da Rua Azusa. Não posso deixar de me lamentar, com o típico paroquial umbiguismo que me caracteriza, que ninguém neste país dê pela efeméride. Dirão que é coisa de agenda sub-religiosa sem impacto social. E terei de explicar que não, que o mundo Ocidental como o conhecemos foi transformado pelo movimento pentecostal moderno.
O pentecostalismo é a família cristã que registou maior movimento no século passado. Acima de católicos e qualquer grupo específico protestante. Dos Estados Unidos rapidamente se espalhou a todo o mundo, avassalando a África e América Latina e chegando mesmo à alguma Ásia. Permanece nos nossos dias como o grupo religioso em maior crescimento. Forget Islam.
O pentecostalismo tornou-se o melhor cristianismo pós-moderno. Exaustos da batalha do século XIX entre o pensamento científico e a apologética religiosa, os crentes já não se ulceravam com as discrepâncias entre os evangelhos. O que queriam mesmo era sentir no meio do seu previsível quotidiano uma sombra mínima daqueles relatos. O pentecostalismo devolveu o sobrenatural a um cristianismo massacrado por Darwin. Facilmente se abdica de pormenores hermenêuticos quando se pode falar na língua dos anjos. Naturalmente se abdica de rigores medicinais quando o pastor nos pode curar em pleno culto. Consequentemente se esquece o mundo quando Jesus está para chegar muito breve. O pentecostalismo é o mais inesperado kierkegaardianismo popular.
Claro que sobretudo à Europa custa que tantos brancos tenham sido seduzidos por uma religião de pretos. Claro que sobretudo à Academia Teológica custa que tantas igrejas tenham preferido o êxtase à doutrina. Claro que sobretudo à cristandade aristocrata custa que a fé cresça à custa das classes baixas. Mas todos têm de engolir o vigor carismático. É dele o século XX religioso.
Só uma razão apócrifa que pessoalmente me prova a importância do pentecostalismo muito para além das suas fronteiras denominacionais. Sem pentecostalismo não existiria rock'n'roll. Para que o rock fosse a música do diabo foi preciso que o pentecostalismo o tornasse muitos anos antes o louvor a Deus (a lição é simples: o diabo só copia, não inventa nada. As pessoas que se arrepiam com Diamanda Gálas nunca estiveram num culto pentecostal. Nunca ouviram alguém falar em línguas, nunca viram os corpos no chão em convulsões, nunca se juntaram ao caudal colectivo das lágrimas). A música popular é um pentecostalismo sem divino. A próxima vez que passaram por uma Assembleia de Deus baixem a vossa cabeça impenitente em gratidão. O sexo e as drogas permanecerão sempre como meros aperitivos.