John
Boa parte da literatura de ficção das últimas décadas dedica-se a exorcizar o Século XX. Isto tem provocado uma confusão frequente entre o ofício de escritor e o de sacerdote. Começamos a ansiar pelo exorcismo literário derradeiro - aquele que nos exorcizará de todos os exorcistas.
“Regressa, Coelho” de John Updike, editado em 1971, surge nesta espessa emergência americana de sobreviver aos mil e novecentos. É o segundo de uma série que se iniciara dez anos antes a partir da figura de Harry “Coelho” Angstrom, um cidadão médio como só os americanos sabem ser (no fundo foram eles que inventaram a espécie). Estamos no fim da década de 60 onde há homens a pisar a Lua, brancos e pretos às turras e esposas a trocar os lares por amantes pacifistas.
Como reage Coelho ao seu casamento em demolição, à sua mãe cancerosa, ao seu filho queixoso? Reage reagindo, no conforto imediato que o reaccionarismo oferece. Defendendo a guerra do Vietname, suspeitando dos negros, apiedando-se de Nixon. Não é inesperado que este programa se salde na mais pragmática passividade absoluta. Assim, o seu patriotismo contrasta com a falta de respeito por si próprio. A América torna-se um país que aceita defender sem que ouse habitá-lo. Qualquer fidelidade que proclame revela-se apenas um intervalo para não ter de dar razão aos seus detractores. O que resta da Nação de Harry “Coelho” Angstrom? Um autocolante da bandeira na traseira do automóvel, simultaneamente sumido e persistente.
É esta América da qual quer fugir que lhe vai entrar pela casa adentro. Perfeitamente metaforizada na chegada abrupta de novos hóspedes: uma menor rica em delírios narcóticos e um preto veterano do Vietname com pulmões cheios de marijuana e slogans emancipatórios. Nunca se sabe o que vem substituir uma esposa que bate com a porta.
Updike domina o ofício sacerdotal da escrita assombrada fin-de-siécle: vão-se os demónios, ficam os medos. Esta é também uma história de sexo, fogo e um país à deriva. Se o Século XX não foi isto, não foi coisa alguma.
Publicado numa Time Out do ano passado.
Agora vou ali ler o segundo Updike da minha vida e já volto.
Boa parte da literatura de ficção das últimas décadas dedica-se a exorcizar o Século XX. Isto tem provocado uma confusão frequente entre o ofício de escritor e o de sacerdote. Começamos a ansiar pelo exorcismo literário derradeiro - aquele que nos exorcizará de todos os exorcistas.
“Regressa, Coelho” de John Updike, editado em 1971, surge nesta espessa emergência americana de sobreviver aos mil e novecentos. É o segundo de uma série que se iniciara dez anos antes a partir da figura de Harry “Coelho” Angstrom, um cidadão médio como só os americanos sabem ser (no fundo foram eles que inventaram a espécie). Estamos no fim da década de 60 onde há homens a pisar a Lua, brancos e pretos às turras e esposas a trocar os lares por amantes pacifistas.
Como reage Coelho ao seu casamento em demolição, à sua mãe cancerosa, ao seu filho queixoso? Reage reagindo, no conforto imediato que o reaccionarismo oferece. Defendendo a guerra do Vietname, suspeitando dos negros, apiedando-se de Nixon. Não é inesperado que este programa se salde na mais pragmática passividade absoluta. Assim, o seu patriotismo contrasta com a falta de respeito por si próprio. A América torna-se um país que aceita defender sem que ouse habitá-lo. Qualquer fidelidade que proclame revela-se apenas um intervalo para não ter de dar razão aos seus detractores. O que resta da Nação de Harry “Coelho” Angstrom? Um autocolante da bandeira na traseira do automóvel, simultaneamente sumido e persistente.
É esta América da qual quer fugir que lhe vai entrar pela casa adentro. Perfeitamente metaforizada na chegada abrupta de novos hóspedes: uma menor rica em delírios narcóticos e um preto veterano do Vietname com pulmões cheios de marijuana e slogans emancipatórios. Nunca se sabe o que vem substituir uma esposa que bate com a porta.
Updike domina o ofício sacerdotal da escrita assombrada fin-de-siécle: vão-se os demónios, ficam os medos. Esta é também uma história de sexo, fogo e um país à deriva. Se o Século XX não foi isto, não foi coisa alguma.
Publicado numa Time Out do ano passado.
Agora vou ali ler o segundo Updike da minha vida e já volto.