Stott, Updike, Tolentino
- O facto de John Stott ter partido o ano passado sem que nunca tivesse lido um dos seus livros revelou-se produtivo. Pelo menos três já foram num espaço relativamente curto de tempo. O último foi "Cristianismo Autêntico" (Basic Christianity), um breve volume sobre os aspectos centrais da fé escrito no final dos anos 50. Stott dedicou muita da sua vida aos universitários e isso explica uma cultura de interpelação aos estudantes que marca o movimento evangélico das últimas décadas para a qual o autor foi uma contribuição muito significativa (se não mesmo a maior). A minha percepção ao ler "Cristianismo Autêntico" é essa, a de uma palestra numa universidade britânica durante a década de 60. E digo isto sem qualquer paternalismo cronológico. Este livro merece ser lido por quem se interessa por Jesus e deseja uma amostra geral mas firme do que os evangélicos crêem. Não é literariamente encantador nem especialmente criativo, talvez porque na sua época era mais importante emagrecer a fé cristã aos seus essenciais, saindo do espectro da ainda dominante religiosidade nominal. As obras apologéticas mais populares de hoje (como o "The Reason For God" de Tim Keller, por exemplo) procuram mostrar mais nuance e piscar o olho à literatura dita secular para contrariar a alienação intelectual ainda atribuída aos evangélicos. Mas sem homens como Stott não teríamos aqui chegado. Um clássico.
- "Coelho Enriquece" de John Updike dispensa grandes apresentações. Reconheço que o meu puritanismo ganha raízes mais profundas. Updike é imenso mas o efeito perverso do talento que investe nas descrições sexuais realmente perturba-me. Sei que provavelmente serei o único a dar parte de fraco nestas matérias mas hoje de bom grado obliterava nos génios literários contemporâneos o oleamento das juntas sensuais. Porque antes de leitor sou cristão e a maneira como vejo não precisa de ficar refém do existencialismo lúbrico dos
soixante-huitards. E isto não tem nada a ver com censura ao erotismo que da última vez que abri a minha Bíblia ainda lá estava Cantares de Salomão. Simplesmente "Coelho Enriquece" não precisava de minúcias ginecológicas para ser o portento que é. Faltava um Diácono Remédios à nossa crítica e eu não me importo de ser o tal a dizer "não havia necessidade".
- "Pai Nosso Que Estais na Terra" do Tolentino de Mendonça. Tolentino
did it again. Se eu tenho tudo para embirrar com o slogan promocional da capa ("O Pai Nosso aberto a crentes e não-crentes") a verdade é que não posso deixar de reconhecer o feito. O Tolentino consegue-o. Fala da oração que Jesus ensinou aos Seus discípulos de um modo que, pelo menos, tem tudo para criar curiosidade nos que não são discípulos. Seguindo a tradição que continuou no recente "Tesouro Escondido", aqui estão novamente a sugestão e a profundidade. O Pai Nosso é um dos assuntos mais batidos de dois mil anos de fé cristã e o Tolentino consegue pôr-nos a reflectir com a frescura da primeira vez. Se a obra do Tolentino já é absolutamente incontornável no que de melhor Portugal tem hoje para oferecer, é razoável esperar uma geração nova que se dedique a aprender com ele.