As Origens Teológicas da Modernidade
Só o título "The Theological Origins of Modernity" promete. Michael Allen Gillespie, para mim um perfeito desconhecido, apresenta uma tese que em Portugal pode ganhar mais impacto pelo facto de parecer estranha. Não sendo eu um leitor atento e dedicado da nossa imprensa, escassos nomes me ocorrem que gastem tempo a pensar na relação entre a Religião e a Modernidade. A multidão alinha pela ideia de que entre estas duas dá sempre divórcio e que a História encarrega-se de mostrar que mal a Modernidade vingou a Religião foi remetendo-se à sua suposta insignificância. Os únicos que vão quebrando este consenso preguiçoso são o Vasco Pulido Valente e o Rui Ramos. O Pacheco Pereira não se alheia totalmente da questão mas falha ao avaliá-la com uma perspectiva demasiado materialista. Por outro lado a nova geração ainda precisa de ler mais religião para mostrar real propriedade quando fala sobre o assunto (mesmo a minha trindade sagrada presente no Mexia, no Lomba e no Pereira Coutinho. O Raposo tem feito um percurso diferente e pode inverter a tendência).
Basicamente Michael Allen Gillespie vem devolver ao debate teológico o seu papel de causa do que veio a chamar-se Modernidade.
Simples as that. As nossas conquistas cívicas do Estado Moderno são devedoras das discussões dos homens que acreditavam. Imaginem o que está aqui em causa: Gillespie estilhaça a montra que anuncia que a liberdade é sobretudo um produto do cepticismo. E não o faz enquanto crente mas enquanto estudioso. Por isso prefere olhar para História em vez de apelar a méritos prematuros da contemporaneidade. Logo na introdução Gillespie explica que a Modernidade é a primeira época a deslumbrar-se consigo própria.
"Em eras passadas e noutros lugares, as pessoas definiram-se a si próprias em termos da sua terra ou lugar, da sua raça ou grupo étnico, das suas tradições ou deuses, mas não explicitamente em termos do tempo (...) Entender-se a si próprio como novo [cunhando o termo Modernidade para definir a época em que vivemos] é entender-se a si próprio como auto-gerado." Com tanto deslumbramento em circuito interno é útil procurar na História uma perspectiva menos parcial.
O livro de Gillespie explica que a Modernidade é o resultado da discussão cristã mais antiga: como se articula a soberania divina com a vontade do homem? Como hoje as pessoas metem no Facebook: "está numa relação" e "é complicado". A partir daqui apreciamos várias duplas no ringue, herdando todas elas a dinâmica que opôs Agostinho a Pelágio. Agostinho clarificava que o Pecado Original é uma condição de todos e Pelágio defendia que o homem, de algum modo, também construía a sua própria salvação. A maneira como esta luta é essencial para o Cristianismo tem a ver com a utilidade ou não do próprio Cristo. De uma maneira muito simplificada: se o homem não depender absolutamente de Deus, Jesus não veio fazer nada. O problema nasce no final da Antiguidade Clássica, no surgimento do Cristianismo, mas marca toda a Idade Média. Reproduzindo a modalidade combativa teremos Ockham e o Nominalismo contra Aristóteles e a Escolástica (um assunto para o qual eu vergonhosamente estava adormecido), Lutero contra Erasmo (aqui já estava mais à vontade e este capítulo é soberbo, apesar de algumas incompreensões de Gillespie em relação ao pensamento Reformado), e, finalmente, Hobbes contra Descartes. O registo dos combates entre a soberania divina e a vontade humana são a cronologia perfeita para compreendermos a Modernidade. À medida que a discussão contribuiu para a desagregação da própria Idade Média, passa também de um núcleo puramente teológico para um social, mais abrangente. Se no início a discussão é acerca da identidade de Deus (Deus Temperamental e Caprichoso versus Deus Árbitro Razoável) no final já é antropológica (aquilo que os homens podem ou não fazer a partir dos atributos divinos e de que maneira isso lhes permitirá uma sociedade que sobreviva às Guerras Religiosas que varrem a Europa desse tempo). Mesmo quando se fala de política dos homens continua-se a falar de religião.
Michael Allen Gillespie quer ser útil. Acredita que um dos maiores problemas é a ineficácia do Ocidente em compreender aquilo que o ameaça.
"Uma vez que não compreendemos a maneira como o nosso passado Cristão moldou o individualismo e humanismo no coração do liberalismo, não compreendemos por que o Islão radical olha para o nosso mundo liberal como ímpio e imoral." Este é também um livro que recua no tempo para tentar ajudar-nos agora. Além de produtivo Gillespie é criativo e sólido:
"O processo de secularização ou desencantamento que veio a ser visto como idêntico à Modernidade foi de facto algo diferente do que pareceu, não a vitória esmagadora da razão sobre a infâmia, para usar o famoso termo de Voltaire, não a morte de Deus que Nietzsche proclamou, e não a contínua e distante retirada do deus absconditus que Heidegger apontou, mas a transferência gradual dos atributos divinos para os seres humanos (uma vontade humana infinita), o mundo natural (a causalidade mecânica universal), as forças sociais (a vontade geral, a mão oculta), e a história (a ideia de progresso, desenvolvimento dialéctico, a astúcia da razão)." Ou seja, a tese de Michael Allen Gillespie é que a Modernidade não é o relato dos homens a desmascararem Deus mas a roubarem-lhe a personalidade.
Como crente não consigo evitar um prazer especial em ler este livro e recomendá-lo. Diferentemente de Gillespie, que não escreve como cristão, eu leio-o assim. Claro que por isso me empolgo com a tareia de Agostinho em Pelágio e de Lutero em Erasmo. Outros espectadores vêem o combate de outro modo. E isso faz parte da
era moderna. Podemos não concordar com os vencedores. Mas só olharmos para quem luta já é um êxito considerável.
P.S. Um abraço ao Pedro Barroso que providencialmente me emprestou este livro.