O evangélico apressado em citar Nietzsche
Quem estudou numa universidade de esquerda sabe quem é o patrão: Nietzsche. Eu sei porque estudei numa universidade de esquerda. Não que Nietzsche fosse de esquerda (essa é outra conversa e a História mostra-o proeminente também entre gente de direita) mas porque, tendo dado tão valente e talentosa pancada no mundo que a esquerda idealiza rejeitar, continua destacado no Panteão que zela pelo homem novo, livre das artimanhas opressoras do velho poder. O Século XX seguiu o mesmo embalo de Nietzsche, trazendo outros pensadores originais, mas que se limitam a prestar vassalagem. No campo da linguagem, que foi a minha praia na Faculdade, havia admiração por Foucault, Heidegger, Wittgenstein, Ricoeur, Derrida, apenas para uma mão cheia de exemplos, mas, lá está, o patrão era Nietzsche. Mesmo se falarmos nos seus parceiros de tamanho, Marx e Freud, que formam a trindade quase tão sagrada como a verdadeira e que vai pelo nome de autores da suspeita, o certo é que Nietzsche serve como nenhum outro os intentos de iniciação que um jovem universitário carece. Há frases para citar, uma dieta de cinismo pronta a consumir e até factos biográficos sumarentos. Basta ter em conta que Nietzsche morre louco e morrer louco é a santificação possível dos ateus. Porque morrer louco sugere aquele tipo de rejeição do mundo que, do mesmo modo que deslumbra os mártires, anima os sem-fé a deixarem esta vida numa queixa contra o Criador em quem não crêem. Apesar de todos os paradoxos da religião, quem não se dá bem com Deus afeiçoa-se a fazer pouco da sanidade mental, obliterando uma possível ligação última a um sentido para a existência. Um pouco por tudo isto terá de vir alguém com muito, muito impacto para retirar a chefia da loja a Nietzsche. Ele continua a ser o patrão.
Citar Nietzsche tornou-se um desporto popular e saiu há muito das paredes da Academia. Hoje até os cristãos evangélicos citam Nietzsche, o que dá uma imagem fidedigna da vulgarização do filósofo. Com isto quero expor a minha condenação aos evangélicos, sobretudo os jovens evangélicos, apressados em citar Nietzsche. O que me move? Parte é ajuste de contas com o meu passado, quando apressadamente citei Nietzsche; a outra parte é ajuste de contas com o futuro dos evangélicos, para que pensem duas vezes antes de o fazer. Sobretudo quando pressinto que há uma vaga nova de evangélicos que em vez de afirmar a fé apesar de Nietzsche (e nesse sentido pode ser útil para o testemunho público da fé citar Nietzsche), afirma a fé por causa de Nietzsche (tornando-o uma espécie de doutor abortivo da Igreja). Bem sei que um evangélico destes que se apressa em citar Nietzsche terá como intenção última tornar a sua fé relevante mas acaba por tornar a sua fé apenas ridícula. É aqui que quero chegar.
Primeiro quero dar-vos o meu próprio currículo no tema. Não sou leigo nestas matérias e tenho a minha frase preferida de Nietzsche.
"Os homens activos rebolam como rebola a pedra, em conformidade com a estupidez da mecânica." Passado algum tempo continuo a achar alguma pertinência nesta frase mas reconheço que hoje tento usá-la além do ressentimento típico de quem, não tendo a capacidade de pôr nada a funcionar, gosta de desprezar a eficiência alheia (boa parte do nihilismo é irritação contra o que resulta). Creio que saquei esta frase de um dos livros que mais me marcou na Faculdade, "Humano, Demasiado Humano". Cheguei a projectar a filmagem de uma curta-metragem que colocava uma rapariga com ar meio
beatnick a perder este volume numa bomba de gasolina da Amadora,
road-movie possível a estudante universitário da linha de Sintra. Por outro lado, ainda há um ano a minha banda, os Lacraus, editaram uma mixtape que colocava o Frederico na capa com um pedal de distorção a entrar-lhe pelo cortex cerebral a dentro. O conceito veio de uma frase de Flannery O'Connor que diz que por vezes é necessário amplificarmos aquilo que, sendo natural para os descrentes, é pecaminoso para os crentes mas se torna o único material de comunicação do Evangelho. Ou seja, a única maneira de redimir alguma coisa das ideias de Nietzsche é distorcê-las ao ponto em que se tornam obviamente grotescas até para os que com elas se encantam. Por essa razão há a circular pelo País umas quantas t-shirts, extraídas da capa da mixtape, desenhadas pelo traço impecável do Silas Ferreira mostrando o filósofo alemão numa ligação improvável com uma banda de rock formada por cristãos. Bota
overdrive nos miolos do Nietzsche!
Na minha perspectiva, a maneira certa de citar Nietzsche é assinalar a inteligência possível das suas frases salientando a falta de inteligência maior que foi não ser cristão. Isto porque me parece de elementar justiça esperar inteligência dos filósofos e um filósofo que despreza o cristianismo protagoniza um fenómeno de pouca inteligência. Será demasiado agressivo um cristão assumir que a sua fé também passa pelo uso do cérebro? Então Nietzsche não deve ser poupado do reconhecimento da justeza das críticas que fez aos religiosos do seu tempo ao mesmo tempo que se reconhece que ao querer matar Deus matou também o criador do pensamento. Tendo em conta a falta de fé de Nietzsche acredito que, no que diz respeito à tarefa de pensar, o filósofo reprovou. Os evangélicos que citam Nietzsche sem este cuidado ao quererem agasalharem-se intelectualmente com a roupa do patrão apenas mostram que o Rei vai nu. Parece-me então claro que a maior intenção dos evangélicos que citam Nietzsche não é encorajar o raciocínio (coisa que o citado não conseguiu na tarefa básica de reconhecer a existência de Deus) mas sobretudo chatear aquilo que vêem como o
status quo religioso (naturalmente avesso ao alemão). Chatear o
status quo religioso pode ser por vezes necessário mas não é forçoso que seja universalmente a coisa mais inteligente que se pode fazer.
Os evangélicos apressados em citar Nietzsche transmitem-me que não o sabem ler. Mostram-se tão ansiosos com o efeito que procuram que não colocam grande pensamento no que disse o filósofo. Tem sido frequente ler evangélicos, sobretudo brasileiros, a erigirem altares a um Nietzsche beatificado à força para os ajudar a distinguirem-se da incómoda multidão que é o evangelicalismo de Vera Cruz. Compreendo que não deve ser fácil ser evangélico no Brasil (embora ache mais difícil em Portugal) mas não é com armistícios forçados que a guerra acaba. Tornar Nietzsche num peregrino bem-aventurado além de caricato é não levar a sério qualquer palavra que escreveu. A menos que passemos a elogiar todas as pessoas que não compreendemos. Eu, que me vejo como um fraco mas assumido adversário religioso de Nietzsche, gostava de o ajudar livrando-o desta pieguice teológica. Tenhamos-lhe uma pinga de amor cristão.