Livros (Tolentino, Henry James, Packer e Martyn Lloyd-Jones)
Em nenhuma parte a Bíblia nos diz que temos de ser amigos de toda a gente. Diz uma coisa distinta, que devemos amar os nossos inimigos. Na prática significa que somos chamados a amar pessoas que não gostamos. A ironia é que a influência da Bíblia ajudou a que o amor se tornasse uma palavra incontornável, mesmo para os que não crêem em religião alguma. E essa ironia continua no facto de, ao vivermos numa cultura tão marcada pela ideia de amor (nenhuma outra no mundo é tão obcecada pelo tema), parecer que de repente a amizade se tornou uma coisa de segunda categoria. O livro de José Tolentino Mendonça, "Nenhum caminho será longo", parte desta estranheza.
"Cada vez menos se sabe do que falamos quando falamos de amor (...) Quase por automatismo adoptamos o vocabulário do amor, que corre o risco de se tornar uma gramática sonâmbula." E parte muito bem, com a tarefa de acordar os que dormem em pé.
O inglês é mais pegajoso que o português no que diz respeito ao uso da palavra amor. No inglês ama-se uma pizza tão facilmente como se ama um filho. No português mede-se mais antes de dizermos amor, o que não é sinónimo de se amar menos em português do que se ama em inglês. A maneira como se usa a palavra amor talvez funcione como termostato espiritual de uma língua, ou pelo menos de um temperamento. E essa avaliação ganha mais pertinência se juntarmos ao debate a amizade. Até porque o contexto das chamadas redes sociais tem banalizado a palavra amigo. O livro do José Tolentino Mendonça põe-nos a pensar na importância das palavras bem como na importância do que sentimos a partir delas. Vale muito, muito a pena.
A Assírio & Alvim pertence agora à Porto Editora mas, graças a Deus, o Manuel Rosa continua tão irrequieto quanto antes. Viva a Documenta! Viva a Sistema Solar! A mesma excelência de edição permanece, indo dos mesmos rigores de catálogo, passando pela irrepreensibilidade gráfica e acabando no critério da escolha dos autores.
"O Mentiroso" de Henry James é um livro pequeno e crocante. É verdade que a crocância de Henry James apela a mastigações mais lentas porque o que interessa é o que acontece dentro das personagens e não tanto o que acontece fora delas. Mas James entusiasma-me onde nunca Proust me entusiasmou, talvez porque não faça da interioridade (detesto a palavra) um pretexto para a meta-história - simplesmente aí coloca a acção (
bottom-line: a escrita de James tem uma acção que até pode ser interna, mas está lá). "O Mentiroso" mete um pintor a ter de lidar com uma antiga apaixonada que entretanto se casou. Agora cabe-lhe pintar o retrato do tal marido. Tudo pode dar certo neste livro e dá mesmo.
Os Puritanos são os maiores, capítulo trezentos e noventa e um. No meu último aniversário a minha mulher ofereceu-me dois volumes dos Puritan Papers. Os Puritan Papers reúnem o material de umas palestras anuais em que participavam teólogos protestantes ingleses eminentes como J.I. Packer e Martyn Lloyd-Jones. Os temas eram sempre familiares à memória dos puritanos (e isto durante a década de 60 onde as modas andavam noutra) mas não só. Os dois volumes que li trataram de assuntos como Calvino e o Calvinismo, arminianismo, presbiterianismo, a Igreja de Inglaterra e sua história, a relação do protestantismo com o passado, e a vida de alguns pregadores célebres como Whitefield, Spurgeon, entre outros. A leitura é diversa e a virtudes desta colecção é dupla por mostrar os afectos de quem escreve e apresentar os assuntos que são escritos. Eu, que já era fã de Packer e Lloyd-Jones, tive uma introdução deles a temas com os quais não estou assim tão familiarizado. Sobretudo Packer tem uma análise tremenda para em pouco conseguir expor as linhas-mestras sobre os assuntos em reflexão. Aprende-se muito com os Puritan Papers.