Trinta e duas coisas que gostei de ler e cinco coisas que não gostei de ler na Encíclica "Luz da Fé" de Francisco I
O Papa foi ao Brasil e eu fui ao Papa. Nem ele nem eu fazemos turismo. Na sua primeira Encíclica, Francisco I pega no que já lhe havia sido deixado por Bento XVI e eu gostava de saber melhor o que fez um e o que fez o outro (até para tentar distinguir com mais rigor a diferença entre eles). Aponto as coisas que gostei de ler e as outras. Espero que seja útil para os outros como me foi útil ler "Luz da Fé".
1. Francisco escreve
"aos bispos, aos presbíteros e aos diáconos, às pessoas consagradas e a todos os fiéis leigos". Como não os qualifica restritos à Igreja Católica Romana, senti que me podia encaixar no grupo. Primeiro ponto a favor de Francisco: a simpatia de escrever-me sem que eu pedisse que me escrevesse.
2. Francisco critica a arrogância moderna de achar que a fé
"já não serve para os novos tempos, para o homem tornado adulto, orgulhoso da sua razão." É efectivamente difícil querermos ser humildes epistemologicamente ao mesmo tempo que achamos a fé uma imaturidade intelectual.
3. Francicso diz que a fé é
"olhos novos" para uma
"luz duma memória basilar - a vida de Jesus" e
"luz que vem do futuro - dado que Cristo ressuscitou". A fé é a melhor inteligência porque é ver mais além.
4. Francisco sabe que
"o Senhor não é o Deus de um lugar, nem mesmo o Deus vinculado a um templo sagrado específico, mas o Deus de uma pessoa, concretamente o Deus de Abraão, Isaac e Jacob" e que por isso há
"um posto singular ocupado por Abraão". Não é possível gostar do cristianismo sem gostar do judaísmo.
5. Francisco, ao jeito de Tim Keller, condena a idolatria:
"o ídolo é um pretexto para se colocar a si mesmo no centro da realidade, na adoração da obra das suas próprias mãos." Talvez o Papa tenha lido os "Falsos Deuses".
6. Francisco valoriza o Velho Testamento porque
"todas as linhas do Antigo Testamento se concentram em Cristo: Ele torna-se o «sim» definitivo a todas as promessas." Toca a lê-lo.
7. Francisco sabe que é possível os homens abafarem Deus numa transcendência que não se relaciona connosco.
"A nossa cultura perdeu a noção desta presença concreta de Deus, da sua acção no mundo." A encarnação de Cristo garante que
"Deus é capaz de cumprir a felicidade que promete."
8. Francisco afirma a importante doutrina da união a Cristo.
"Na fé, Cristo não é apenas Aquele em quem acreditamos, a maior manifestação do amor de Deus, mas é também Aquele a quem nos unimos para poder acreditar."
9. Francisco diz que filhos de Deus são aqueles que acreditam nele.
"Aquele que acredita, ao aceitar o dom da fé, é transformado numa nova criatura, recebe um novo ser, um ser filial, torna-se filho no Filho."
10. Francisco reconhece que a salvação é pela fé. Parece um verdadeiro Reformado.
"Aquilo que São Paulo rejeita é a atitude de quem se quer justificar a si mesmo diante de Deus através das próprias obras; esta pessoa, mesmo quando obedece aos mandamentos, mesmo quando realiza obras boas, coloca-se a si própria no centro e não reconhece que a origem do bem é Deus."
11. Francisco sustenta que a confissão da fé depende do Espírito:
"fora da presença do Espírito é impossível confessar Jesus como Senhor." Quase que sinto o cheiro de Genebra no ar.
12. Francisco propõe que o homem se conheça a si mesmo teocentricamente:
"o crente aprende a ver-se a si mesmo a partir da fé que professa."
13. Francisco corajosamente aponta as presunções do pragmatismo actual:
"Na cultura contemporânea, tende-se frequentemente a aceitar como verdade apenas a da tecnologia: é verdadeiro aquilo que o homem consegue construir e medir com a sua ciência; é verdadeiro porque funciona, e assim torna a vida mais cómoda e aprazível (...) A verdade grande, aquela que explica o conjunto da vida pessoal e social, é vista com suspeita."
14. Francisco confirma que leu 1 Coríntios 13:
"É neste entre entrelaçamento da fé com o amor que se compreende a forma de conhecimento própria da fé (...) Se o amor não tivesse relação com a verdade, estaria sujeito à alteração dos sentimentos e não superaria a prova do tempo." Amar não é bom porque é fácil. Amar é bom porque é verdadeiro.
15. Francisco valoriza a escuta da qual fala Romanos 10:17:
"A escuta ajuda a identificar bem o nexo entre o conhecimento e o amor." Ouvir a Bíblia é importantíssimo. E isto tem consequências no que se vê.
16. Francisco lembra que a fé é intelectualmente vigorosa:
"O encontro da mensagem evangélica com o pensamento filosófico do mundo antigo constituiu uma passagem decisiva para o Evangelho chegar a todos os povos e favoreceu uma fecunda sinergia entre fé e razão." Os cristãos têm dois mil anos de experiência para mostrar à Academia.
17. Francisco observa que este currículo não se arma em esperto:
"o crente não é arrogante; pelo contrário, a verdade torna-o humilde, sabendo que, mais do que possuirmo-la nós, é ela que nos abraça e possui." Quase que ouço alguém na congregação gritar
"unconditional election!"
18. Francisco mostra que o Deus invisível é visível:
"O caminho do homem religioso passa pela confissão de um Deus que cuida dele e que se pode encontrar. Que outra recompensa poderia Deus oferecer àqueles que o buscam, senão deixar-se encontrar a si mesmo?" Dating business.
19. Francisco esclarece que a teologia não é exclusivo dos doutores mas é necessária para todos os crentes:
"a teologia está ao serviço de todos os cristãos, visa humildemente preservar e aprofundar o crer de todos, sobretudo dos mais simples."
20. Francisco sublinha a urgência da Igreja:
"É impossível crer sozinhos. A fé não é só uma opção individual que se realiza na interioridade (...), verifica-se sempre dentro da comunhão da Igreja."
21. Francisco valoriza o Baptismo:
"No Batismo, o homem recebe também uma doutrina que deve professar e uma forma concreta de vida que requer o envolvimento de toda a sua pessoa."
22. Francisco esclarece que o Baptismo é imersão na água:
"através da imersão na água, o Batismo fala-nos da estrutura encarnada da fé." Francisco fala como um verdadeiro Baptista.
23. Francisco puxa as orelhas dos pais cristãos para a tarefa de darem uma educação verdadeiramente cristã:
"Os pais são chamados não só a gerar filhos para a vida, mas a levá-los a Deus." E mais tarde:
"é importante que os pais cultivem práticas de fé comuns na família, que acompanhem o amadurecimento da fé dos filhos."
24. Francisco refresca-nos a memória para uma Eucaristia (comunhão na Ceia do Senhor) que é passado e futuro:
"o passado, como um evento de morte e ressurreição, mostra a sua capacidade de se abrir ao futuro, de antecipar a plenitude final."
25. Francisco diz que acreditar em coisas é ser coisas:
"Aquele que confessa a fé sente-se implicado na fé que confessa."
26. Francisco não despreza os Dez Mandamentos:
"igualmente importante é ainda a ligação entre a fé e o Decaólogo."
27. Francisco escreve que a Igreja é uma esposa:
"A integridade da fé foi associada também à imagem da Igreja virgem, com o seu amor esponsal fiel a Cristo."
28. Francisco aproxima-se do fim do seu raciocínio com algo essencial: a igreja
"fala sempre em obediência à Palavra originária, sobre a qual se baseia a fé, e é fiável porque se entrega à Palavra que escuta, guarda e expõe." A Bíblia é o fundamento do que sabemos acerca de sermos cristãos. Isso dá-nos muito trabalhinho.
29. Francisco admira a arquitectura do cristianismo porque o cristianismo constrói boas cidades:
"o Deus fiável dá aos homens uma cidade fiável."
30. Francisco já olhou para a curva que vem a seguir e sabe que boas intenções só não chegam:
"Na Idade Moderna, procurou-se construir a fraternidade universal entre os homens, baseando-se na sua igualdade; mas, pouco a pouco, fomos compreendendo que esta fraternidade, privada do referimento a um Pai comum como seu fundamento último, não consegue subsistir."
31. Francisco prevê que os tempos sejam difíceis para quem afirme a sua fé publicamente:
"Porventura vamos ser nós a envergonhar-nos de chamar a Deus «o nosso Deus»? Seremos por acaso nós a recusar-nos a confessá-lo como tal na nossa vida pública, a propor a grandeza da vida comum que Ele torna possível?" Mas não há alternativa.
32. Francisco admira a fé também por ela muitas vezes ser difícil:
"é na fraqueza que sobressai e se descobre o poder de Deus que supera a nossa fraqueza e sofrimento (...) O cristão sabe que o sofrimento não pode ser eliminado, mas pode adquirir um sentido." Claramente alguém no Vaticano anda a traduzir os sermões da Lapa para o Papa.
Agora as coisas que não gostei de ler.
1. Francisco desvaloriza a fé quando a relativiza num aparente gesto de simpatia com os que não a têm:
"a fé tem a ver também com a vida dos homens que, apesar de não acreditarem, desejam-no fazer e não cessam de procurar (...) Quem se põe a caminho para praticar o bem, já se aproxima de Deus, já está sustentado pela sua ajuda." Crendo eu na graça comum, acessível aos que não crêem, acho no entanto útil dizer que este tipo de afirmações aparecem sem referência de textos bíblicos (coisa que Francisco faz constantemente ao longo da Encíclica) e parecem sobretudo doirar a pílula: criam um nevoeiro grande o suficiente para meter colectivamente na fé quem não o faz individualmente.
2. Francisco, que correctamente tinha chamado à Igreja aquilo que a Bíblia lhe chama ("esposa", ver ponto 27), chama-lhe aquilo que a Bíblia nunca lhe chama ("Mãe"). Ora "mãe" é uma coisa que provavelmente devemos chamar a quem manifestamente o é, correndo o risco de nos fazermos filhos de quem não nos gerou. É uma tradição romana que parece simpática mas que acrescenta o que a Bíblia nunca deu. À luz da Palavra temos terreno firme para chamarmos mãe à Igreja? Não.
3. Francisco abandona o que é seguro dizer sobre o Baptismo (ver pontos 21 e 22) para acrescentar dizer o que não tem fundamento bíblico:
"A estrutura do Batismo, a sua configuração como renascimento no qual recebemos um nome novo e uma vida nova, ajuda-nos a compreender o sentido e a importância do Batismo das crianças." Really? How come?
4. Francisco estabelece a sua convicção na sucessão apostólica como uma
"garantia da ligação com a origem." E quem define a sucessão apostólica? A própria Igreja Católica Romana ou a Palavra à qual supostamente o magistério obedece (ver ponto 28)? A sucessão apostólica é o facto da Igreja Católica Romana fielmente contar para si Papas desde há dois mil anos ou a fidelidade que os homens da Igreja devem à Palavra revelada?
5. Francisco encerra a sua Encíclica com, rufar de tambores, aquilo que lhe parece lógico para encerrar o assunto da sua fé cristã: Maria. Só com muita ingenuidade me poderia surpreender com este facto. Se Raztinger, que era um Papa pouco dado à mamã não arriscava deixar de trancar os seus raciocínios com esta coerção intelectual mariana, o que haveríamos de esperar de um católico romano sul-americano? Tragam os violinos que Francisco vai mais longe e termina naquilo que tragicamente continua a descrever grande parte do coração católico romano: a reza a Maria. Tanto trabalho que Cristo teve para que Roma sentisse sempre a necessidade desta cereja no topo.
Posto isto, as trinta e duas coisas que gostei de ler e as cinco coisas que não gostei de ler na Encíclica "Luz da Fé" de Francisco I são razão mais que suficiente para convidar todos os católicos romanos fiéis a aprofundarem o que o seu Papa diz de biblicamente firme e questionarem o resto. A fraternidade na fé também vive disto.