O que creio que me aconteceu no dia 19 de Setembro de 2013Uma parte dos que amam Blaise Pascal inveja-lhe tanto a inteligência como o que trazia no forro do seu casaco. Pascal passou por uma experiência mística que registou num papel que fazia questão de trazer sempre consigo, precisamente na peça de roupa que simultaneamente lhe tirava o frio e lhe fornecia calor espiritual. Hoje, que estupidamente dissociamos o vigor intelectual da fé, dava-nos muito jeito essa mistura de credo e trapos, de documentos pessoais de confiança em Deus naquilo que vestimos diariamente. O Memorial de Pascal, como foi chamado esse texto ortodoxo e febril, é cobiçado por mim desde que soube da sua existência. Porque também sinto falta de recordar horas que na minha vida se destacaram na confiança que coloco em Deus Pai, Filho e Espírito Santo. Até hoje não tenho nada que possa ser comparado com o manuscrito de Pascal mas o que me aconteceu no dia 19 de Setembro de 2013 animou-me.
Na semana passada estive na Conferência Fiel. A Conferência Fiel é um encontro anual de quatro dias organizado pela Editora Fiel. A Editora Fiel é uma casa publicadora de literatura evangélica, de linha Reformada. Depois de alguns anos de pouco impacto nos leitores, durante as décadas de 80 e 90 demasiado encantadas com o movimento neo-pentecostal, a Editora Fiel revigorou-se nos últimos dez anos com o ressurgimento calvinista e tem atraído muita gente, mesmo fora dos que se identificam com esta orientação doutrinária. O irmão Edvânio veio do Brasil para Portugal para se ocupar do trabalho da Fiel em Portugal e o investimento na publicação de novos e bons títulos que chegam dos estrangeiro e na Conferência anual é notória. Esta foi a segunda Conferência Fiel que frequentei e as expectativas eram grandes sobretudo pela presença do Paul Washer, pregador baptista sensação no Youtube.
Com o Paul Washer veio o Franklin Ferreira, Pastor brasileiro autor da primeira Teologia Sistemática escrita em Português. O Franklin impressiona pela sua erudição e simpatia, combinação rara num miúdo de 43 anos. As suas palestras incidiram sobretudo sobre a vocação pastoral e foram um bálsamo para um meio evangélico que talvez esteja demasiado rendido ao pragmatismo (é bom termos pastores mas convém que os pastores não esqueçam como a Bíblia lhes enquadra a vocação). Impressionou-me também no Franklin o equilíbrio entre a sensibilidade à tradição história e a procura por uma dependência carismática. Temos de conhecer bem os dois milénios de Cristianismo e conhecer ainda mais o Espírito Santo. Não foi casual que o momento que mais me marcou, aquele que aconteceu na manhã do dia 19 de Setembro de 2013, tenha sido antecedido pelo Franklin Ferreira a falar de avivamento.
O meu objectivo ao falar do que creio que me aconteceu no dia 19 de Setembro de 2013 não é tratar com detalhe do instrumento humano que foi usado, o Paul Washer. Tentarei escrever especificamente sobre o Paul Washer noutra ocasião. Gostava de falar agora sobre o que foi possível através dele. O Paul Washer tinha como tema das suas palestras "O Verdadeiro Evangelho" (que era o tema geral da Conferência Fiel). Devo dizer que o tema facilmente pode irritar, pelo uso da palavra verdadeiro que tende a soar arrogante aos nossos ouvidos pluralistas. O que interessa sublinhar é que quando o Paul Washer prega sobre o evangelho acaba necessariamente por dissociar-se da maior parte das pregações que vêm do seu País, os Estados Unidos. Nesse sentido, não é fácil ouvir o Washer porque ele não hesita em desvalorizar (desvalorizar é eufemismo, neste caso é pura e simplesmente condenar) a rotina do grande meio evangélico norte-americano. Na pregação do Washer a afirmação de que, agora sim, vamos ouvir o que o Cristianismo é acaba por ser um pressuposto. Isto naturalmente tem-lhe granjeado muitos ódios e não o torna um pregador que nos apeteça ouvir sempre (pelo menos no meu caso). Para tentar ilustrar isto com uma comparação: Paul Washer é o anti-Tim Keller. Não porque divergem na doutrina mas na medida em que atrai ouvintes pela estranha manobra de se lhes mostrar aparentemente indiferente (e, apenas para salvaguardar confusões: da única vez que o ouvi a referir-se ao Tim Keller, numa conversa privada que tinha com alguns ouvintes, fê-lo de um modo fraterno). Washer está-se nas tintas para que o seu discurso soe interessante. Criou uma reputação de ser uma versão contemporânea dos velhos sermões de fogo e enxofre. O sucesso do Paul Washer talvez passe pelo modo Tarantino como é ouvido pelos miúdos. É perigoso e isso acaba por atrair uma geração cansada de pregadores ansiosos por tornarem a fé acessível a todos.
Nessa última manhã da Conferência o Paul Washer dedicava-se ao tema da Propiciação. Dizia que o assunto era dos mais escandalosamente ignorados entre cristãos e que isso é inadmissível. Basicamente expôs a Propiciação a partir de Romanos 3:23-26 e resumiu-a como o sacrifício que permite justiça, que possibilita que Deus possa perdoar pessoas que são culpadas. Na prática significa que Jesus não morre primariamente para nos salvar dos nossos pecados mas que Jesus morre para nos salvar do próprio Deus (
sinners in the hands of an angry God, anyone?). Porque a ira de Deus com o nosso pecado é tal que não temos como pagar-lhe a dívida. Só o próprio Deus nos pode salvar de Deus. E fá-lo em Jesus. Isto não faz de Deus um monstro esquizofrénico mas apenas conclui aquilo que a Bíblia afirma: um Deus justo não pode ser indiferente à injustiça. O preço de tornar gente má em gente justificada foi grande e manifestou-se na vida do próprio Cristo, Deus encarnado. Nada disto era novo para mim, antes pelo contrário. Esta é a noção que tenho da salvação da minha alma, colocada pelas Escrituras em termos de algo que foi feito por mim e não em termos de algo que eu posso fazer por mim próprio (por isso chamo Jesus de Salvador e não de
personal trainer). Mas naquela manhã relembrar estas coisas foi diferente.
Há no meio evangélico, e por conta das tais últimas duas décadas demasiado neo-pentecostais, uma tendência para valorizar momentos particulares na nossa relação com Deus na medida em que esses momentos registam suposta informação nova em relação ao Deus com que nos relacionamos. É essa obsessão, típica de uma geração mais fã de noticiário do que discernimento, que faz com que charlatães sejam recebidos nas igrejas de braços abertos porque alegadamente trazem revelações recentes da parte de Deus. Nem sempre os cristãos evangélicos se apercebem que esse expediente de nova revelação é um meio perverso de manipulação e domínio, porque em boa-fé nenhum crente quer desprezar o que Deus diz e a credulidade é o terreno do auto-iluminado. Com isto não quero dar a ideia que não creio que Deus se revela pessoalmente, além das Escrituras. Ou melhor, devo dizer antes e apenas que nenhuma revelação pessoal pode sobrepôr-se à revelação de Deus na Bíblia (os cristãos de Bereia são descritos na Bíblia como mais nobres que os de Tessalónica porque ouviram a palavra dos Apóstolos com avidez e exame no cânone velho-testamentário). E a razão pela qual escrevo acerca do dia 19 de Setembro de 2013 é precisamente porque senti que Deus falou poderosamente comigo.
"Deus falou poderosamente comigo" é um cliché entre evangélicos. O que quer dizer? Ou, pelo menos, o que quer dizer em relação à experiência que tive? No final do sermão do Paul Washer estava comovido. Estava comovido eu e grande parte das cerca de duas centenas presentes. Na minha adolescência era normal que os finais das reuniões da noite dos Acampamentos Baptistas de Verão fossem pontuados por muita choradeira. Tendemos nos anos seguintes a termos alguma dificuldade com aquilo que nos parece excesso de emoção adolescente mas a verdade é que algumas das decisões mais importantes que tomei na vida foram entre muito ranho e transposições de sol para mi menor. O que me aconteceu naquela manhã não foi igual mas em alguns aspectos parecido. Não regressei à puberdade mas pelo menos estive num lugar semelhante em que concordarmos com o que ouvimos produz um forte efeito em nós, visivelmente expresso nas nossas emoções. Talvez sejamos uma cultura tonta a prolongar indefinidamente a adolescência por não percebermos que algumas das melhores coisas que nos aconteceram lá não estão vedadas à idade adulta. O Tiago que por acreditar que Deus o salvou chorava desalmadamente aos 14 anos pode e deve continuar a chorar com a alma toda aos 35 pela mesmíssima razão. É certo que é provável que aconteça mais raramente. Mas também por isso será mais precioso.
Mas não expliquei o que me aconteceu no dia 19 de Setembro de 2013. E acho que não o vou conseguir fazer bem porque nem eu sei bem. Sei que senti as verdades em que creio há quase trinta anos de um modo intenso. Sei que essas verdades, não sendo informação nova para mim, me deram sentimentos novos. Sei que senti que devo falar aos outros acerca disso porque acima de despejar os meus arrebatamentos emocionais sobre a população está a origem deles - o Senhor Jesus salvou-me e isso é aquilo que garantidamente é o mais importante que tenho para comunicar nesta vida. Sei que este texto dá um pífio memorial, se comparado com o original do Blaise. Ainda por cima está um início de Outono ameno que não convida a usar agasalho. Se morresse agora ninguém encontraria um documento literário decente na minha roupa. Mas deixaria um esqueleto que no dia 19 de Setembro foi especialmente animado pela fé que me servirá para toda a eternidade.