A nossa sanidade teológica depende de sabermos optar entre Robert
Zemeckis e a Teologia Reformada - Uma leitura de "Deus é Soberano" de
A.W. Pink - Parte III
Não quero dar a ideia que a Teologia Reformada simplifica a questão. Aliás, quando converso sobre o assunto com cristãos não-calvinistas não me passa pela cabeça dizer que o calvinismo resolve com uma perna às costas a relação entre a vontade de Deus e a vontade do homem. Uma das virtudes do calvinismo é precisamente ele não fazê-lo. O calvinismo, ao optar por fazer eco do modo com o assunto é apresentado nas Escrituras, opta flagrantemente por lidar com um assunto difícil com a própria dificuldade que a Bíblia nos oferece. Ou seja, não há a presunção de mostrar a fórmula humana para manusear aquilo que está além do entendimento humano. E é aqui que gostaria que os meus companheiros não-calvinistas compreendessem o sarcasmo típico dos calvinistas perante aquilo que lhes parece a débil solução do livre-arbítrio.
O livre-arbítrio parece-nos sempre um chupa-chupa que uma criança recebe como prémio de ter passado uma hora sem pedir doces. É uma solução que pretende resolver dando mais do problema. Para ser filosoficamente consistente o livre-arbítrio teria de garantir que o arbítrio humano, para ser livre, estava colocado ao nível da sua potencialidade total. Onde podemos buscar a referência da potencialidade total do arbítrio? Ao seu criador, Deus. Deus é por natureza verdadeiramente livre. Ora, algum cristão ousará dizer que o arbítrio do homem é semelhante ao arbítrio de Deus, onde o arbítrio está no seu estado puro? Claro que não. Logo, e estou apenas a tentar ser minimamente lógico, o susposto livre-arbítrio humano necessita de algumas qualificações que esclareçam que o livre arbítrio não é assim tão livre, comparado com o arbítrio no seu estado puro, usado por Deus. Tendo em conta que o homem é livre debaixo de uma severa qualificação, que é a de ser por natureza pecador (o homem é inescapavelmente imperfeito), é natural que quem é filosoficamente mais exigente conclua simplesmente que o livre-arbítrio é um eufemismo para arbítrio condicionado. Kierkegaard só precisou de escrever isto uma vez para me convencer a ser calvinista.
Por outro lado, o livre-arbítrio não falha apenas em termos teóricos. Falha também em termos práticos. Crer no livre-arbítrio não faz necessariamente algo pela liberdade real de quem nele crê. Ser verdadeiramente livre não tem a ver com crer que se é livre, tem a ver com comportar-se livremente (os hospícios sempre receberam pessoas que se libertam nas suas convicções internas, absolutamente desprovidas de encaixe na realidade). Onde vai a Teologia Reformada encontrar a aplicação prática de uma vida vivida em liberdade? Ao autor da liberdade, claro. O livre-arbítrio do homem é um terreno tremido para que o homem aja livremente. O livre-arbítrio de Deus, esse sim, é um terreno firme para que o homem aja livremente. Como se manifesta esta liberdade na vida de quem crê que essa liberdade depende essencialmente de Deus? No modo como se aceita nas circunstâncias da nossa existência que elas se sujeitam ao Criador.
Quando eu acredito através da fé que Deus já predestinou a minha vida para ser salvo em Cristo, o pior que me pode acontecer pode ser, por exemplo e segundo a opinião actual de muita gente, morrer numa morte dolorosíssima. É óbvio que não desejo uma morte assim para mim. Mas se esse for o plano que Deus tem para mim, quando comparado com o valor absoluto da eternidade na sua comunhão, a ruína desse sofrimento torna-se relativa. Para o cristão aquilo que é para sempre coloca sempre em causa aquilo que é provisório. Logo, o melhor da outra vida não nos faz fugir do pior desta. Antes o seu oposto: o melhor da outra vida ilumina o pior desta. Os calvinistas quando confiam na delícia do outro lado da ressurreição, têm as maiores razões para se esforçarem nas coisas duras deste lado dela. Max Weber percebeu tudo ao contrário quando sugeriu que o empenho dos protestantes no trabalho era um modo de tentarem provar que estavam salvos. Quem crê na Teologia Reformada não quer trabalhar bem para provar que está salvo por Cristo. É mesmo o contrário. Quem crê na Teologia Reformada só pode querer trabalhar bem porque já foi salvo por Cristo. Se quisermos, a "ética protestante e o espírito do capitalismo" não são a causa da redenção, são a consequência. Existem como resultado dos calvinistas se comportarem de um modo absolutamente livre a partir do momento que sabem que Deus foi livre para os salvar. Os calvinistas estão livres para grandes ambições porque, sendo predestinados para tal, só têm de se comportar em conformidade (e se não foram, não há problema porque Deus salva pecadores que nunca foram ambiciosos).
Mas depois não é raro chegar uma acusação: se Deus já planeou tudo, somos marionetas de um destino no qual não temos participação real. Mas esta acusação só colhe se acharmos que o homem só é livre se for livre independentemente da acção de Deus. E qualquer cristão negará esse pressuposto (até para Roma, Pelágio continua a ser herético). Ou seja, qualquer cristão dirá que a liberdade do homem depende necessariamente da liberdade de Deus. A livre agência humana (aquilo que é defendido nas Escrituras, algo mais rigoroso que o livre-arbítrio) depende inteiramente da livre agência divina. Os calvinistas não se comportam como robôs, antes pelo contrário. Porque eles sabem que é por Deus ser livre que eles podem ser livres. Eles cometem esse crime contemporâneo de fazerem a liberdade depender de um argumento transcendente e não imanente (o Henrique Raposo, apesar de não ser ainda calvinista, tocou neste assunto num brilhante texto no Expresso, há semanas, em que disse que a Páscoa faz pela liberdade humana o que Kant não consegue). A partir do momento em que cremos num Deus que foi tão livre que até teve a ideia de nos criar no espaço e no tempo, nenhuma dessas limitações dissolve a liberdade inerente ao facto de criar. O tempo e o espaço não são dimensões que limitam Deus, são dimensões que nos limitam provisoriamente a nós. Mas essa limitação funciona a partir da liberdade de Deus e não a partir da finitude humana. Logo, a predestinação é o resultado cronológico de Deus ser livre e não do homem ser preso. Termos dificuldade com o facto do nosso futuro ser, de certo modo, passado para Deus mostra o quanto queremos amarrá-lo a um tempo do qual está livre. Rejeitar a predestinação é nesse sentido não um grito de liberdade humana mas uma agressão à própria liberdade divina.
(Continua.)
Não quero dar a ideia que a Teologia Reformada simplifica a questão. Aliás, quando converso sobre o assunto com cristãos não-calvinistas não me passa pela cabeça dizer que o calvinismo resolve com uma perna às costas a relação entre a vontade de Deus e a vontade do homem. Uma das virtudes do calvinismo é precisamente ele não fazê-lo. O calvinismo, ao optar por fazer eco do modo com o assunto é apresentado nas Escrituras, opta flagrantemente por lidar com um assunto difícil com a própria dificuldade que a Bíblia nos oferece. Ou seja, não há a presunção de mostrar a fórmula humana para manusear aquilo que está além do entendimento humano. E é aqui que gostaria que os meus companheiros não-calvinistas compreendessem o sarcasmo típico dos calvinistas perante aquilo que lhes parece a débil solução do livre-arbítrio.
O livre-arbítrio parece-nos sempre um chupa-chupa que uma criança recebe como prémio de ter passado uma hora sem pedir doces. É uma solução que pretende resolver dando mais do problema. Para ser filosoficamente consistente o livre-arbítrio teria de garantir que o arbítrio humano, para ser livre, estava colocado ao nível da sua potencialidade total. Onde podemos buscar a referência da potencialidade total do arbítrio? Ao seu criador, Deus. Deus é por natureza verdadeiramente livre. Ora, algum cristão ousará dizer que o arbítrio do homem é semelhante ao arbítrio de Deus, onde o arbítrio está no seu estado puro? Claro que não. Logo, e estou apenas a tentar ser minimamente lógico, o susposto livre-arbítrio humano necessita de algumas qualificações que esclareçam que o livre arbítrio não é assim tão livre, comparado com o arbítrio no seu estado puro, usado por Deus. Tendo em conta que o homem é livre debaixo de uma severa qualificação, que é a de ser por natureza pecador (o homem é inescapavelmente imperfeito), é natural que quem é filosoficamente mais exigente conclua simplesmente que o livre-arbítrio é um eufemismo para arbítrio condicionado. Kierkegaard só precisou de escrever isto uma vez para me convencer a ser calvinista.
Por outro lado, o livre-arbítrio não falha apenas em termos teóricos. Falha também em termos práticos. Crer no livre-arbítrio não faz necessariamente algo pela liberdade real de quem nele crê. Ser verdadeiramente livre não tem a ver com crer que se é livre, tem a ver com comportar-se livremente (os hospícios sempre receberam pessoas que se libertam nas suas convicções internas, absolutamente desprovidas de encaixe na realidade). Onde vai a Teologia Reformada encontrar a aplicação prática de uma vida vivida em liberdade? Ao autor da liberdade, claro. O livre-arbítrio do homem é um terreno tremido para que o homem aja livremente. O livre-arbítrio de Deus, esse sim, é um terreno firme para que o homem aja livremente. Como se manifesta esta liberdade na vida de quem crê que essa liberdade depende essencialmente de Deus? No modo como se aceita nas circunstâncias da nossa existência que elas se sujeitam ao Criador.
Quando eu acredito através da fé que Deus já predestinou a minha vida para ser salvo em Cristo, o pior que me pode acontecer pode ser, por exemplo e segundo a opinião actual de muita gente, morrer numa morte dolorosíssima. É óbvio que não desejo uma morte assim para mim. Mas se esse for o plano que Deus tem para mim, quando comparado com o valor absoluto da eternidade na sua comunhão, a ruína desse sofrimento torna-se relativa. Para o cristão aquilo que é para sempre coloca sempre em causa aquilo que é provisório. Logo, o melhor da outra vida não nos faz fugir do pior desta. Antes o seu oposto: o melhor da outra vida ilumina o pior desta. Os calvinistas quando confiam na delícia do outro lado da ressurreição, têm as maiores razões para se esforçarem nas coisas duras deste lado dela. Max Weber percebeu tudo ao contrário quando sugeriu que o empenho dos protestantes no trabalho era um modo de tentarem provar que estavam salvos. Quem crê na Teologia Reformada não quer trabalhar bem para provar que está salvo por Cristo. É mesmo o contrário. Quem crê na Teologia Reformada só pode querer trabalhar bem porque já foi salvo por Cristo. Se quisermos, a "ética protestante e o espírito do capitalismo" não são a causa da redenção, são a consequência. Existem como resultado dos calvinistas se comportarem de um modo absolutamente livre a partir do momento que sabem que Deus foi livre para os salvar. Os calvinistas estão livres para grandes ambições porque, sendo predestinados para tal, só têm de se comportar em conformidade (e se não foram, não há problema porque Deus salva pecadores que nunca foram ambiciosos).
Mas depois não é raro chegar uma acusação: se Deus já planeou tudo, somos marionetas de um destino no qual não temos participação real. Mas esta acusação só colhe se acharmos que o homem só é livre se for livre independentemente da acção de Deus. E qualquer cristão negará esse pressuposto (até para Roma, Pelágio continua a ser herético). Ou seja, qualquer cristão dirá que a liberdade do homem depende necessariamente da liberdade de Deus. A livre agência humana (aquilo que é defendido nas Escrituras, algo mais rigoroso que o livre-arbítrio) depende inteiramente da livre agência divina. Os calvinistas não se comportam como robôs, antes pelo contrário. Porque eles sabem que é por Deus ser livre que eles podem ser livres. Eles cometem esse crime contemporâneo de fazerem a liberdade depender de um argumento transcendente e não imanente (o Henrique Raposo, apesar de não ser ainda calvinista, tocou neste assunto num brilhante texto no Expresso, há semanas, em que disse que a Páscoa faz pela liberdade humana o que Kant não consegue). A partir do momento em que cremos num Deus que foi tão livre que até teve a ideia de nos criar no espaço e no tempo, nenhuma dessas limitações dissolve a liberdade inerente ao facto de criar. O tempo e o espaço não são dimensões que limitam Deus, são dimensões que nos limitam provisoriamente a nós. Mas essa limitação funciona a partir da liberdade de Deus e não a partir da finitude humana. Logo, a predestinação é o resultado cronológico de Deus ser livre e não do homem ser preso. Termos dificuldade com o facto do nosso futuro ser, de certo modo, passado para Deus mostra o quanto queremos amarrá-lo a um tempo do qual está livre. Rejeitar a predestinação é nesse sentido não um grito de liberdade humana mas uma agressão à própria liberdade divina.
(Continua.)