Uma Providência Agridoce
O que é mais cruel? Dizer que as maiores tragédias acontecem porque Deus tem um propósito bom nelas que nos é desconhecido, ou dizer que Deus é bom precisamente por não ter responsabilidade nas maiores tragédias? Como já se está a calcular, pessoalmente defendo que a segunda opção é a mais cruel. A primeira, sendo difícil para um mundo quase sempre convicto que tem à sua disposição as condições de avaliar o que é o melhor e o pior para si, pode ofender-nos precisamente pela afirmação clara que das coisas que acontecem no Universo quem percebe mesmo é Deus. Mas é uma perspectiva absolutamente coerente com a crença que há um Deus que é omnisciente e omnipotente. Defender que o mal é um resultado do livre-arbítrio não livra o pescoço do Criador da faca, apenas torna todos os acontecimentos mais absurdos e Deus menos poderoso.
Acreditar numa coisa destas não é nada de novo, ou, por outro lado, uma cena dos calvinistas. Basta estudar a História da Igreja. A acusação moderna contra a providência divina talvez se tenha tornado mais aguda, não necessariamente pelos seus méritos filosóficos, mas sobretudo pelos seus méritos emocionais. O que é que isto quer dizer? Quando os não-crentes se ofendem com a ideia do mal acontecer debaixo da supervisão de Deus, os argumentos tendem a ser gráficos. O abuso de crianças, a violação de mulheres, entre outras coisas que horrorizam justamente qualquer crente. De facto, o que é diferente no crente quando tendo em conta o descrente, e em relação a estes males que Deus permite, não é o facto do crente não se horrorizar com eles. Claro que o crente se horroriza com assassínios, estupros ou outros crimes hediondos. Basta ler a Bíblia para entender que ela não foi um livro saneado da indignação dos homens com o que Deus permite. Só um ignorante pode achar que as Escrituras fazem aparecer fé por fazerem desaparecer a maldade. A Palavra de Deus é um livro onde o que é abjecto surge em todo o seu perverso esplendor. Simplesmente esse esplendor não vence mas perde para o esplendor maior da misericórdia de Deus. Novamente, o que é diferente no crente quando tendo em conta o descrente, e em relação a estes males que Deus permite, é o facto do crente confiar que Deus está a cumprir alguma coisa boa mesmo quando o que vemos é apenas mal.
Por outro lado, o crente quando olha para toda a maldade do mundo, consegue não só reconhecê-la (que não é mesmo que relativizá-la), como ainda relembrar nela um auge. Que auge o crente encontra em toda a maldade do mundo? O auge foi a morte de Cristo, o pior mal de todos os que aconteceram no Universo. Ora, o cristão, como sabe que a morte de Cristo foi o pior mal de todos que aconteceram no Universo, ganha nesse mal uma lente para todos os outros. E se o cristão sabe que o pior mal de todos os que aconteceram no mundo foi a morte de Cristo, sabe ao mesmo tempo que, pelo impenetrável poder de Deus, o pior mal de todos os que aconteceram no mundo se tornou o maior bem de todos os que aconteceram no mundo. Logo, por definição um cristão é alguém que existe porque Deus tem a capacidade de tornar a pior tragédia na maior felicidade. A partir daqui toda a nossa capacidade de distinguir o que é bom do que é mau é transformada radicalmente. Do mesmo modo como um cristão sabe que Deus tem o poder de fazer do pior o melhor, o cristão confia que sempre que vir piores, melhores podem sair daí.
A Bíblia avisou-nos que os cristãos seriam odiados do mesmo modo que Cristo foi. Acreditar na providência divina é hoje patentemente uma experiência de sermos odiados. Porque é afirmar, contra tudo e contra todos, que o homem não pode querer compreender tudo e que há uma factura elevada a vir dessa incapacidade que se manifesta perante o sofrimento de pessoas à nossa volta. Com isto, claro está, o cristão no meio de uma tragédia não ganha uma prioridade em afirmar doutrina ("Deus está no controle!") mas em envolver-se na prática ("porque Deus está no controle e porque Deus não passou nos intervalos da chuva do sofrimento quando encarnou, eu enquanto cristão sou chamado a envolver-me no sofrimento dos outros aliviando-o"). Este foi o exemplo de Cristo e não tem como não ser o exemplo dos cristãos.
Esta longa introdução toda para aconselhar o livro de John Piper, "A Sweet & Bitter Providence". A história de Rute no Velho Testamento é uma história fácil de simpatizar por razões politicamente correctas. Afinal de contas é a história de uma pagã que é recebida no judaísmo, bem como de uma mulher (que é a mesma que é pagã) que se sacrifica além do que lhe era exigido (pela sua sogra). Mas a história de Rute também é fácil de antipatizar pela afirmação de coisas politicamente incorrectas. E é aí, como seria de esperar, que a coragem e a lucidez de John Piper nos ajudam especialmente. Noemi, sogra de Rute, é alguém que volta para Israel depois de morrer o seu marido e seus dois filhos. O que sobra da sua tragédia pessoal? Precisamente a sua fiel nora, Rute. Interessa salientar que Noemi declara que essa experiência de sofrimento lhe foi trazida por Deus. Assim, sem floreados. E John Piper ajuda-nos a entender que Noemi tem razão - Deus foi o responsável pelo sofrimento de Noemi. A maravilha é que a história não termina aí, mas desenvolve-se num enredo inesperado de persistência e esperança e, pasme-se!, confiança de que o Deus que trouxe o mal será o Deus que trará o bem. Este é tipo de happy ending que o livro de Rute tem e que toda a Bíblia também. Claro que inspira poucas comédias românticas.
Como é que Piper esclarece que os cristãos têm de ter carta de condução para estradas com curvas? "Life is not a straight line leading from one blessing to the next and then finally to heaven. Life is a winding and troubled road. Switchback after switchback. And the point of biblical stories like Joseph and Job and Esther and Ruth is to help us feel in our bones (not just know in our heads) that God is for us in all these strange turns. God is not just showing up after the trouble and cleaning it up. He is plotting the course and managing the troubles with far-reaching purposes for our good and for the glory of Jesus Christ." Como é que Piper explica que, apesar do aperto das curvas, podemos confiar em quem desenhou a estrada? "We ask: Can it really be that God governs the sinful acts of men to make them serve his wise purposes without himself being a sinner? Yes, he can. If he cannot, then there is no Christian gospel. The gospel is the good news that Christ died for our sins. “Now I would remind you, brothers, of the gospel... that Christ died for our sins in accordance with the Scriptures, that he was buried, that he was raised on the third day in accordance with the Scriptures” (1 Corinthians 15:1–4). Notice the repeated phrase “in accordance with the Scriptures.” That means that God planned it. God planned that Christ would die. There would be no gospel without the death of Christ. All the deeds that brought him to the cross were planned (...) There could be no crucifixion if there were no crucifiers."
Nem só de comédias românticas viverá o homem. A fé é uma matéria diferente. Porque é cozida num forno que queima e cosida na pele que se cicatriza. "To know that our Father in heaven has ordained our pain is not a comfortable truth, but it is comforting. That our pain has a loving and wise and all-powerful purpose behind it is better than any other view—weak God, cruel God, bumbling God, no God." Algum cristão está a querer tirar a senha para, sofrendo, ter uma fé maior? Claro que não. Mas sabe que se sofrer, a fé será o que o sustenta. É isto que nos vale o ódio do mundo e o amor de Deus. Amor? Claro. Isto é acerca do amor. "If we can keep our eyes on the cross of Christ, where God infallibly certified his love for us with no change possible (Romans 5:8; 1 John 3:16), then the pain he ordains for us will not undermine our sense of being loved."
O que é mais cruel? Dizer que as maiores tragédias acontecem porque Deus tem um propósito bom nelas que nos é desconhecido, ou dizer que Deus é bom precisamente por não ter responsabilidade nas maiores tragédias? Como já se está a calcular, pessoalmente defendo que a segunda opção é a mais cruel. A primeira, sendo difícil para um mundo quase sempre convicto que tem à sua disposição as condições de avaliar o que é o melhor e o pior para si, pode ofender-nos precisamente pela afirmação clara que das coisas que acontecem no Universo quem percebe mesmo é Deus. Mas é uma perspectiva absolutamente coerente com a crença que há um Deus que é omnisciente e omnipotente. Defender que o mal é um resultado do livre-arbítrio não livra o pescoço do Criador da faca, apenas torna todos os acontecimentos mais absurdos e Deus menos poderoso.
Acreditar numa coisa destas não é nada de novo, ou, por outro lado, uma cena dos calvinistas. Basta estudar a História da Igreja. A acusação moderna contra a providência divina talvez se tenha tornado mais aguda, não necessariamente pelos seus méritos filosóficos, mas sobretudo pelos seus méritos emocionais. O que é que isto quer dizer? Quando os não-crentes se ofendem com a ideia do mal acontecer debaixo da supervisão de Deus, os argumentos tendem a ser gráficos. O abuso de crianças, a violação de mulheres, entre outras coisas que horrorizam justamente qualquer crente. De facto, o que é diferente no crente quando tendo em conta o descrente, e em relação a estes males que Deus permite, não é o facto do crente não se horrorizar com eles. Claro que o crente se horroriza com assassínios, estupros ou outros crimes hediondos. Basta ler a Bíblia para entender que ela não foi um livro saneado da indignação dos homens com o que Deus permite. Só um ignorante pode achar que as Escrituras fazem aparecer fé por fazerem desaparecer a maldade. A Palavra de Deus é um livro onde o que é abjecto surge em todo o seu perverso esplendor. Simplesmente esse esplendor não vence mas perde para o esplendor maior da misericórdia de Deus. Novamente, o que é diferente no crente quando tendo em conta o descrente, e em relação a estes males que Deus permite, é o facto do crente confiar que Deus está a cumprir alguma coisa boa mesmo quando o que vemos é apenas mal.
Por outro lado, o crente quando olha para toda a maldade do mundo, consegue não só reconhecê-la (que não é mesmo que relativizá-la), como ainda relembrar nela um auge. Que auge o crente encontra em toda a maldade do mundo? O auge foi a morte de Cristo, o pior mal de todos os que aconteceram no Universo. Ora, o cristão, como sabe que a morte de Cristo foi o pior mal de todos que aconteceram no Universo, ganha nesse mal uma lente para todos os outros. E se o cristão sabe que o pior mal de todos os que aconteceram no mundo foi a morte de Cristo, sabe ao mesmo tempo que, pelo impenetrável poder de Deus, o pior mal de todos os que aconteceram no mundo se tornou o maior bem de todos os que aconteceram no mundo. Logo, por definição um cristão é alguém que existe porque Deus tem a capacidade de tornar a pior tragédia na maior felicidade. A partir daqui toda a nossa capacidade de distinguir o que é bom do que é mau é transformada radicalmente. Do mesmo modo como um cristão sabe que Deus tem o poder de fazer do pior o melhor, o cristão confia que sempre que vir piores, melhores podem sair daí.
A Bíblia avisou-nos que os cristãos seriam odiados do mesmo modo que Cristo foi. Acreditar na providência divina é hoje patentemente uma experiência de sermos odiados. Porque é afirmar, contra tudo e contra todos, que o homem não pode querer compreender tudo e que há uma factura elevada a vir dessa incapacidade que se manifesta perante o sofrimento de pessoas à nossa volta. Com isto, claro está, o cristão no meio de uma tragédia não ganha uma prioridade em afirmar doutrina ("Deus está no controle!") mas em envolver-se na prática ("porque Deus está no controle e porque Deus não passou nos intervalos da chuva do sofrimento quando encarnou, eu enquanto cristão sou chamado a envolver-me no sofrimento dos outros aliviando-o"). Este foi o exemplo de Cristo e não tem como não ser o exemplo dos cristãos.
Esta longa introdução toda para aconselhar o livro de John Piper, "A Sweet & Bitter Providence". A história de Rute no Velho Testamento é uma história fácil de simpatizar por razões politicamente correctas. Afinal de contas é a história de uma pagã que é recebida no judaísmo, bem como de uma mulher (que é a mesma que é pagã) que se sacrifica além do que lhe era exigido (pela sua sogra). Mas a história de Rute também é fácil de antipatizar pela afirmação de coisas politicamente incorrectas. E é aí, como seria de esperar, que a coragem e a lucidez de John Piper nos ajudam especialmente. Noemi, sogra de Rute, é alguém que volta para Israel depois de morrer o seu marido e seus dois filhos. O que sobra da sua tragédia pessoal? Precisamente a sua fiel nora, Rute. Interessa salientar que Noemi declara que essa experiência de sofrimento lhe foi trazida por Deus. Assim, sem floreados. E John Piper ajuda-nos a entender que Noemi tem razão - Deus foi o responsável pelo sofrimento de Noemi. A maravilha é que a história não termina aí, mas desenvolve-se num enredo inesperado de persistência e esperança e, pasme-se!, confiança de que o Deus que trouxe o mal será o Deus que trará o bem. Este é tipo de happy ending que o livro de Rute tem e que toda a Bíblia também. Claro que inspira poucas comédias românticas.
Como é que Piper esclarece que os cristãos têm de ter carta de condução para estradas com curvas? "Life is not a straight line leading from one blessing to the next and then finally to heaven. Life is a winding and troubled road. Switchback after switchback. And the point of biblical stories like Joseph and Job and Esther and Ruth is to help us feel in our bones (not just know in our heads) that God is for us in all these strange turns. God is not just showing up after the trouble and cleaning it up. He is plotting the course and managing the troubles with far-reaching purposes for our good and for the glory of Jesus Christ." Como é que Piper explica que, apesar do aperto das curvas, podemos confiar em quem desenhou a estrada? "We ask: Can it really be that God governs the sinful acts of men to make them serve his wise purposes without himself being a sinner? Yes, he can. If he cannot, then there is no Christian gospel. The gospel is the good news that Christ died for our sins. “Now I would remind you, brothers, of the gospel... that Christ died for our sins in accordance with the Scriptures, that he was buried, that he was raised on the third day in accordance with the Scriptures” (1 Corinthians 15:1–4). Notice the repeated phrase “in accordance with the Scriptures.” That means that God planned it. God planned that Christ would die. There would be no gospel without the death of Christ. All the deeds that brought him to the cross were planned (...) There could be no crucifixion if there were no crucifiers."
Nem só de comédias românticas viverá o homem. A fé é uma matéria diferente. Porque é cozida num forno que queima e cosida na pele que se cicatriza. "To know that our Father in heaven has ordained our pain is not a comfortable truth, but it is comforting. That our pain has a loving and wise and all-powerful purpose behind it is better than any other view—weak God, cruel God, bumbling God, no God." Algum cristão está a querer tirar a senha para, sofrendo, ter uma fé maior? Claro que não. Mas sabe que se sofrer, a fé será o que o sustenta. É isto que nos vale o ódio do mundo e o amor de Deus. Amor? Claro. Isto é acerca do amor. "If we can keep our eyes on the cross of Christ, where God infallibly certified his love for us with no change possible (Romans 5:8; 1 John 3:16), then the pain he ordains for us will not undermine our sense of being loved."