Ortodoxia, a suprema transgressão
[Este foi o texto que serviu de base às minhas palavras ontem na Conferência sobre Chesterton na Universidade Católica]
Em primeiro lugar vale a pena mencionar o facto de ser um admirador de Chesterton que é um admirador calvinista. E vale a pena mencionar isto porque basta ler um pouco de Chesterton para entender que ele detestava o calvinismo. Num dia em que nos juntamos para celebrar Chesterton, não é desajustado dizer que o racionalismo enlouquecedor que ele colava ao calvinismo é precisamente aquilo do qual alguém se livra quando se torna calvinista (e devo esta breve provocação a uma reflexão do Pastor John Piper). Ou seja, a perspectiva estreita de que alguém só pode ser responsável pelas suas escolhas quando tem direito a uma auto-determinação absoluta é ironicamente uma verdadeira perspectiva racionalista estreita das quais Chesterton fugia. Mas não estou aqui para falar do calvinismo mas para falar de Chesterton. E, estando o bom Chesterton no Céu a esta hora, estou completamente convicto que ele já é lá aquilo que na terra não foi: um bom calvinista romântico.
Como bom poeta que era, Chesterton era um homem que capturava a concórdia dos que o liam no sítio onde ela se conquista: o coração. O seu domínio do paradoxo não era um truque de fuga à razão (como muitos dos seus detractores acham). Antes pelo contrário, era uma demonstração que não vale a pena querer pensar bem sem querer sentir bem. Claro que uma convicção destas se torna estranha numa sociedade como a nossa que se especializa em separar. Separar a alma do corpo. Separar o raciocínio do sentimento. Separar o que se diz do que se pensa. Separar o consciente do inconsciente. E por aí fora. E essa continua a ser uma das emoções de ler Chesterton. O seu talento não está na estafada tarefa de apresentar mais uma teoria que torna diferentes coisas que julgávamos juntas. A emoção de ler Chesterton é o arrepio de descobrirmos como novo algo que se reclama como mais velho que nós. Daí a conhecida metáfora que usava do homem que precisava de dar a volta ao mundo para regressar a casa. Chesterton ensina-nos que acharmos um lar é descobrirmos todo o universo.
Há uns anos escrevi um pequeno texto sobre a "Ortodoxia" a pretexto do seu centenário. Na altura dizia que não é possível convencer umas quantas cabeças sem que outras acabem inevitavelmente por rolar. Bernard Shaw, H.G Wells e W.B. Yeats foram alguns dos seus adversários, à época vitaminados pelos rigores cépticos que no final do Século XIX prometiam a vitória por falta de comparência mental do cristianismo. Chesterton sabia que não é possível crer sem confronto. Nesse sentido, e apesar do seu catolicismo romano (ainda não concretizado à altura da escrita da "Ortodoxia"), Chesterton era um verdadeiro Protestante. Aquilo em que cria também era visto através do que discordava dos outros (não foi por acaso que primeiro escreveu o "Heréticos" e só depois a "Ortodoxia"). Essa é a razão pela qual às vezes quase que temos verdadeira pena de quem sofre o alvo da pena do bom G.K. Gosto de compará-lo com alguém que veio depois e que foi fundamentalmente influenciado por ele - C.S. Lewis. Mas Chesterton nunca foi fundo na leitura do texto bíblico, como Lewis, porque polvorizar a incoerência lógica dos irreligiosos bastava-lhe. Numa época que se encanta com os méritos da religião desde que eles sejam inclusivos ao ponto de poder ser metido dentro da fé até aqueles que não querem nada com ela, Chesterton lembra que o cristianismo necessariamente confronta. E confronta todos. Aqueles que não crêem nele e até aqueles que o fazem. O Deus de Chesterton é saudavelmente perigoso.
Gostava de referir também a capacidade profética da "Ortodoxia" chestertoniana. E profética no sentido duplo de ser anúncio e antecipação. À modernidade do seu tempo Chesterton punha a boca no trombone para dizer que o racionalismo era um beco sem saída e sem razão. "O lógico louco procura tornar lúcidas todas as coisas, e consegue torná-las misteriosas. O místico permite que uma coisa seja misteriosa, e tudo o resto se torna lúcido." Àquilo que se pode chamar pós-modernidade Chesterton adivinhou-a certeiramente. "O novo céptico é de tal maneira humilde, que duvida de ser sequer capaz de aprender." Passei uma licenciatura de quatro anos a ser doutrinado nesta tese (gasta-se muito tempo num estabelecimento de ensino para aprender a desaprender).
Por último, e já que falo de transgressão, gostava de me meter com o entronizado papa da matéria. O único, o intocável, o sagrado Friederich Nietzsche. A descrição que Chesterton faz de Nietzsche é uma verdadeira prova de que o amor cristão também se aprecia em combate. "Nietzsche sempre fugiu às questões, e fê-lo empregando metáforas físicas, qual alegre poeta de segunda linha." Esta frase não é apenas uma boca. O sétimo capítulo da Ortodoxia, "A Revolução Eterna", desmonta de um modo, diríamos, pré-pós-moderno, os frágeis pilares da crença no progresso humano. A "Ortodoxia" é hoje uma derradeira transgressão porque a infracção que comete, às mãos de Chesterton, é trazer-nos um trans de transcendência. Chesterton deve ser celebrado também porque nos permite a celebração no sítio onde ela é proibida: o comum. Tal como o Criador que, como uma criança, não se cansa de se alegrar na brincadeira repetitiva de mandar levantar o sol, Chesterton sabe que a repetição da vida dos homens funciona como renovação. As coisas comuns não são comuns porque Deus é cansativo. As coisas podem ser comuns porque Deus é criativo. Quem acredita nisto sabe que a aventura pode aparecer a qualquer momento da nossa vida. E vive alegre por causa disso. A alegria - o segredo aparentemente escondido do cristianismo. Tornemo-lo público à boleia de Chesterton.
[Este foi o texto que serviu de base às minhas palavras ontem na Conferência sobre Chesterton na Universidade Católica]
Em primeiro lugar vale a pena mencionar o facto de ser um admirador de Chesterton que é um admirador calvinista. E vale a pena mencionar isto porque basta ler um pouco de Chesterton para entender que ele detestava o calvinismo. Num dia em que nos juntamos para celebrar Chesterton, não é desajustado dizer que o racionalismo enlouquecedor que ele colava ao calvinismo é precisamente aquilo do qual alguém se livra quando se torna calvinista (e devo esta breve provocação a uma reflexão do Pastor John Piper). Ou seja, a perspectiva estreita de que alguém só pode ser responsável pelas suas escolhas quando tem direito a uma auto-determinação absoluta é ironicamente uma verdadeira perspectiva racionalista estreita das quais Chesterton fugia. Mas não estou aqui para falar do calvinismo mas para falar de Chesterton. E, estando o bom Chesterton no Céu a esta hora, estou completamente convicto que ele já é lá aquilo que na terra não foi: um bom calvinista romântico.
Como bom poeta que era, Chesterton era um homem que capturava a concórdia dos que o liam no sítio onde ela se conquista: o coração. O seu domínio do paradoxo não era um truque de fuga à razão (como muitos dos seus detractores acham). Antes pelo contrário, era uma demonstração que não vale a pena querer pensar bem sem querer sentir bem. Claro que uma convicção destas se torna estranha numa sociedade como a nossa que se especializa em separar. Separar a alma do corpo. Separar o raciocínio do sentimento. Separar o que se diz do que se pensa. Separar o consciente do inconsciente. E por aí fora. E essa continua a ser uma das emoções de ler Chesterton. O seu talento não está na estafada tarefa de apresentar mais uma teoria que torna diferentes coisas que julgávamos juntas. A emoção de ler Chesterton é o arrepio de descobrirmos como novo algo que se reclama como mais velho que nós. Daí a conhecida metáfora que usava do homem que precisava de dar a volta ao mundo para regressar a casa. Chesterton ensina-nos que acharmos um lar é descobrirmos todo o universo.
Há uns anos escrevi um pequeno texto sobre a "Ortodoxia" a pretexto do seu centenário. Na altura dizia que não é possível convencer umas quantas cabeças sem que outras acabem inevitavelmente por rolar. Bernard Shaw, H.G Wells e W.B. Yeats foram alguns dos seus adversários, à época vitaminados pelos rigores cépticos que no final do Século XIX prometiam a vitória por falta de comparência mental do cristianismo. Chesterton sabia que não é possível crer sem confronto. Nesse sentido, e apesar do seu catolicismo romano (ainda não concretizado à altura da escrita da "Ortodoxia"), Chesterton era um verdadeiro Protestante. Aquilo em que cria também era visto através do que discordava dos outros (não foi por acaso que primeiro escreveu o "Heréticos" e só depois a "Ortodoxia"). Essa é a razão pela qual às vezes quase que temos verdadeira pena de quem sofre o alvo da pena do bom G.K. Gosto de compará-lo com alguém que veio depois e que foi fundamentalmente influenciado por ele - C.S. Lewis. Mas Chesterton nunca foi fundo na leitura do texto bíblico, como Lewis, porque polvorizar a incoerência lógica dos irreligiosos bastava-lhe. Numa época que se encanta com os méritos da religião desde que eles sejam inclusivos ao ponto de poder ser metido dentro da fé até aqueles que não querem nada com ela, Chesterton lembra que o cristianismo necessariamente confronta. E confronta todos. Aqueles que não crêem nele e até aqueles que o fazem. O Deus de Chesterton é saudavelmente perigoso.
Gostava de referir também a capacidade profética da "Ortodoxia" chestertoniana. E profética no sentido duplo de ser anúncio e antecipação. À modernidade do seu tempo Chesterton punha a boca no trombone para dizer que o racionalismo era um beco sem saída e sem razão. "O lógico louco procura tornar lúcidas todas as coisas, e consegue torná-las misteriosas. O místico permite que uma coisa seja misteriosa, e tudo o resto se torna lúcido." Àquilo que se pode chamar pós-modernidade Chesterton adivinhou-a certeiramente. "O novo céptico é de tal maneira humilde, que duvida de ser sequer capaz de aprender." Passei uma licenciatura de quatro anos a ser doutrinado nesta tese (gasta-se muito tempo num estabelecimento de ensino para aprender a desaprender).
Por último, e já que falo de transgressão, gostava de me meter com o entronizado papa da matéria. O único, o intocável, o sagrado Friederich Nietzsche. A descrição que Chesterton faz de Nietzsche é uma verdadeira prova de que o amor cristão também se aprecia em combate. "Nietzsche sempre fugiu às questões, e fê-lo empregando metáforas físicas, qual alegre poeta de segunda linha." Esta frase não é apenas uma boca. O sétimo capítulo da Ortodoxia, "A Revolução Eterna", desmonta de um modo, diríamos, pré-pós-moderno, os frágeis pilares da crença no progresso humano. A "Ortodoxia" é hoje uma derradeira transgressão porque a infracção que comete, às mãos de Chesterton, é trazer-nos um trans de transcendência. Chesterton deve ser celebrado também porque nos permite a celebração no sítio onde ela é proibida: o comum. Tal como o Criador que, como uma criança, não se cansa de se alegrar na brincadeira repetitiva de mandar levantar o sol, Chesterton sabe que a repetição da vida dos homens funciona como renovação. As coisas comuns não são comuns porque Deus é cansativo. As coisas podem ser comuns porque Deus é criativo. Quem acredita nisto sabe que a aventura pode aparecer a qualquer momento da nossa vida. E vive alegre por causa disso. A alegria - o segredo aparentemente escondido do cristianismo. Tornemo-lo público à boleia de Chesterton.