sexta-feira, maio 30, 2014

Ortodoxia, a suprema transgressão

[Este foi o texto que serviu de base às minhas palavras ontem na Conferência sobre Chesterton na Universidade Católica]

Em primeiro lugar vale a pena mencionar o facto de ser um admirador de Chesterton que é um admirador calvinista. E vale a pena mencionar isto porque basta ler um pouco de Chesterton para entender que ele detestava o calvinismo. Num dia em que nos juntamos para celebrar Chesterton, não é desajustado dizer que o racionalismo enlouquecedor que ele colava ao calvinismo é precisamente aquilo do qual alguém se livra quando se torna calvinista (e devo esta breve provocação a uma reflexão do Pastor John Piper). Ou seja, a perspectiva estreita de que alguém só pode ser responsável pelas suas escolhas quando tem direito a uma auto-determinação absoluta é ironicamente uma verdadeira perspectiva racionalista estreita das quais Chesterton fugia. Mas não estou aqui para falar do calvinismo mas para falar de Chesterton. E, estando o bom Chesterton no Céu a esta hora, estou completamente convicto que ele já é lá aquilo que na terra não foi: um bom calvinista romântico.
Como bom poeta que era, Chesterton era um homem que capturava a concórdia dos que o liam no sítio onde ela se conquista: o coração. O seu domínio do paradoxo não era um truque de fuga à razão (como muitos dos seus detractores acham). Antes pelo contrário, era uma demonstração que não vale a pena querer pensar bem sem querer sentir bem. Claro que uma convicção destas se torna estranha numa sociedade como a nossa que se especializa em separar. Separar a alma do corpo. Separar o raciocínio do sentimento. Separar o que se diz do que se pensa. Separar o consciente do inconsciente. E por aí fora. E essa continua a ser uma das emoções de ler Chesterton. O seu talento não está na estafada tarefa de apresentar mais uma teoria que torna diferentes coisas que julgávamos juntas. A emoção de ler Chesterton é o arrepio de descobrirmos como novo algo que se reclama como mais velho que nós. Daí a conhecida metáfora que usava do homem que precisava de dar a volta ao mundo para regressar a casa. Chesterton ensina-nos que acharmos um lar é descobrirmos todo o universo.
Há uns anos escrevi um pequeno texto sobre a "Ortodoxia" a pretexto do seu centenário. Na altura dizia que não é possível convencer umas quantas cabeças sem que outras acabem inevitavelmente por rolar. Bernard Shaw, H.G Wells e W.B. Yeats foram alguns dos seus adversários, à época vitaminados pelos rigores cépticos que no final do Século XIX prometiam a vitória por falta de comparência mental do cristianismo. Chesterton sabia que não é possível crer sem confronto. Nesse sentido, e apesar do seu catolicismo romano (ainda não concretizado à altura da escrita da "Ortodoxia"), Chesterton era um verdadeiro Protestante. Aquilo em que cria também era visto através do que discordava dos outros (não foi por acaso que primeiro escreveu o "Heréticos" e só depois a "Ortodoxia"). Essa é a razão pela qual às vezes quase que temos verdadeira pena de quem sofre o alvo da pena do bom G.K. Gosto de compará-lo com alguém que veio depois e que foi fundamentalmente influenciado por ele - C.S. Lewis. Mas Chesterton nunca foi fundo na leitura do texto bíblico, como Lewis, porque polvorizar a incoerência lógica dos irreligiosos bastava-lhe. Numa época que se encanta com os méritos da religião desde que eles sejam inclusivos ao ponto de poder ser metido dentro da fé até aqueles que não querem nada com ela, Chesterton lembra que o cristianismo necessariamente confronta. E confronta todos. Aqueles que não crêem nele e até aqueles que o fazem. O Deus de Chesterton é saudavelmente perigoso.
Gostava de referir também a capacidade profética da "Ortodoxia" chestertoniana. E profética no sentido duplo de ser anúncio e antecipação. À modernidade do seu tempo Chesterton punha a boca no trombone para dizer que o racionalismo era um beco sem saída e sem razão. "O lógico louco procura tornar lúcidas todas as coisas, e consegue torná-las misteriosas. O místico permite que uma coisa seja misteriosa, e tudo o resto se torna lúcido." Àquilo que se pode chamar pós-modernidade Chesterton adivinhou-a certeiramente. "O novo céptico é de tal maneira humilde, que duvida de ser sequer capaz de aprender." Passei uma licenciatura de quatro anos a ser doutrinado nesta tese (gasta-se muito tempo num estabelecimento de ensino para aprender a desaprender).
Por último, e já que falo de transgressão, gostava de me meter com o entronizado papa da matéria. O único, o intocável, o sagrado Friederich Nietzsche. A descrição que Chesterton faz de Nietzsche é uma verdadeira prova de que o amor cristão também se aprecia em combate. "Nietzsche sempre fugiu às questões, e fê-lo empregando metáforas físicas, qual alegre poeta de segunda linha." Esta frase não é apenas uma boca. O sétimo capítulo da Ortodoxia, "A Revolução Eterna", desmonta de um modo, diríamos, pré-pós-moderno, os frágeis pilares da crença no progresso humano. A "Ortodoxia" é hoje uma derradeira transgressão porque a infracção que comete, às mãos de Chesterton, é trazer-nos um trans de transcendência. Chesterton deve ser celebrado também porque nos permite a celebração no sítio onde ela é proibida: o comum. Tal como o Criador que, como uma criança, não se cansa de se alegrar na brincadeira repetitiva de mandar levantar o sol, Chesterton sabe que a repetição da vida dos homens funciona como renovação. As coisas comuns não são comuns porque Deus é cansativo. As coisas podem ser comuns porque Deus é criativo. Quem acredita nisto sabe que a aventura pode aparecer a qualquer momento da nossa vida. E vive alegre por causa disso. A alegria - o segredo aparentemente escondido do cristianismo. Tornemo-lo público à boleia de Chesterton.

quinta-feira, maio 29, 2014

Agenda
Numa semana especialmente ocupada é em cima da hora mas ainda vale a pena. Daqui a pouco às 16h estarei na Universidade Católica celebrando Chesterton. Venham!


quarta-feira, maio 28, 2014

Ouvir
A ameaça às vezes é o modo de Deus de dar futuro a um presente onde não encontramos saída. Parece algo hostil ao início, mas quando se concretiza apercebemo-nos que foi por amor.
O sermão de Domingo passado aqui (clicar em cima de aqui).

sexta-feira, maio 23, 2014

Cartaz


quinta-feira, maio 22, 2014

Agenda
Amigos de Leiria e Coimbra, na próxima quarta-feira, 28 de Maio, eu e o meu companheiro Manuel Fúria vamos:

- dar música no Restaurante Chico Lobo às 13h (Praça Rodrigues Lobo em Leiria)
- dar música na Feira Cultural de Coimbra às 17h30 (na banca do CLC)
- e às 20h30 vou estar na Associação Académica de Coimbra a falar de "Relacionamentos e outros mistérios" (à boleia do livro que escrevi sobre casamento).


Em breve vou colocar aqui o cartaz janota que o Silas Ferreira prepara. Agendem!

quarta-feira, maio 21, 2014

A Ana dos Cabelos Ruivos roubou o meu coração das mãos do Conan
Uma parte da minha geração, que já cresceu razoavelmente abandonada em frente ao televisor (ainda alguém usa a palavra televisor?), reage ao facto tentando uma alternativa para os seus filhos. Na Família Cavaco isto significa que nos sentimos saudavelmente postos em causa para não permitir que a televisão ganhe ascendência na rotina das nossas crianças. É fácil que assim aconteça porque as vitórias da tv são por inércia - uma criança não precisa de ser educada a gostar de tv, é só deixá-la em frente a ela e o gosto vai acontecer. Logo, a nossa iniciativa é dar tv qb, e colocar muita ênfase num qb que seja o mínimo possível. Enquanto família ainda temos muito para progredir (os miúdos ainda vêem demasiada tv, na minha opinião) mas já chegámos a alguns sítios interessantes. Um deles é vermos televisão em momentos em que ela se liga para a vermos conscientemente, não apenas para entretê-los enquanto nós pais queremos fazer outra coisa. O momento destes que é mais significativo é o hábito de, depois do jantar e do culto doméstico, nos sentarmos a ver uma série de animação. Ora, as séries de animação que escolhemos para vermos com os nossos miúdos são séries de animação que nós, pais, vimos quando éramos miúdos. Até agora as séries vistas (algumas delas mais do que uma vez) foram "Conan, o Rapaz do Futuro", "Heidi", "Marco", D'Artacão" e o "Tom Sawyer".
Se tivesse de escolher apenas uma destas séries escolheria, não sem dificuldade, o Conan. Ainda antes de Miyazaki ter sido canonizado pela crítica já o cenário pós-apocalíptico tinha penetrado irreversivelmente na minha imaginação. Prédios engolidos pelo mar, torres calcorreadas pelo lado de fora face ao abismo, subterrâneos com passagens secretas para cemitérios abandonados, e por aí fora. O que o Conan fez dentro da minha cabeça em poucos anos de infância já nada na maturidade o consegue desfazer. Ficou e não sai. Por isso, o Conan é o Conan e não vale a pena tentar fazer-lhe frente. Mas a verdade é que ontem uma menina fez-lhe. E acho que lhe tirou o título de campeão da melhor série de animação de sempre. É verdade. O Rapaz do Futuro parece ter sido vencido por uma rapariga do passado. E quem é ela?
Ana dos Cabelos Ruivos é seu nome. Eu já tinha visto uns quantos episódios da Ana dos Cabelos Ruivos. Creio que no início da adolescência. Na minha memória, mais do que a Ana propriamente dita, tinha ficado a música do genérico. Por isso, quando começámos com os miúdos a ver a série há uns meses é que fui finalmente introduzido à sua fascinante (e muitas vezes exasperante) personalidade. Basicamente, Ana é uma orfã que no final do século XIX canadiano vai parar ao Frontão Verde, uma pequena quinta que pertence a dois irmãos já de alguma idade, Matilde e Matias. O plano inicial é que esta quinta precisava de um rapaz que ajudasse no trabalho duro e não de uma menina, por isso toda a série é marcada pelo modo como a chegada inadequada se transforma em presença providencial. Nesse sentido, nos cinquenta episódios não acontece assim tanta coisa cá fora porque as maiores coisas estão a acontecer dentro das personagens. E é isto que permite que uma série que não me tinha marcado tanto quando era novo me marque tanto quando já sou mais velho. A torrente de aventuras incríveis do Conan de repente foi ensombrada pela serena mudança das personagens da Ana.
A Ana dos Cabelos Ruivos é a genuína inadequada. Não tem família que a explique, fala tanto que cansa quem dialoga com ela, põe em causa o que lhe dizem ao mesmo tempo que aprende depressa, escolhe imaginar na hora de concentrar-se, afirma-se pessoalmente quanto mais ignora as convenções, entre outros exemplos. A série evolui de apresentar desencontros após desencontros (a família do Frontão Verde que primeiramente não a quer, as meninas da Classe de Escola Dominical da Igreja que a acham extravagante, a vizinhança que a considera inoportuna) para encontros derradeiros que reconhecem a menina como o orgulho colectivo. E tudo isto acontece à medida que os anos se passam, tão rotineiros como a vida de qualquer espectador da série. Este é um dos grandes triunfos de "Ana dos Cabelos Ruivos": o que se mostra no ecrã é tão corriqueiro quanto a nossa própria existência. A personagem Ana é inadequada não porque possui semi-super-poderes (como o Conan) mas porque acumula experiências de frustração com os outros à sua volta (como todos nós).
Mas olhemos para o segundo triunfo da série, um pouco distinto do primeiro. O que acontece de extraordinário em "Ana dos Cabelos Ruivos", e como já mencionei, é o que acontece dentro das personagens. Ou seja, a Ana, o Matias e Matilde acabam pessoas diferentes daquelas que começaram. E é este renascimento que não é assim tão frequente em séries de animação. Grande parte das séries de animação segue uma personagem que, contra tudo e contra todos, leva a sua avante (olá Marco! olá Conan! Olá D'Artacão! Olá Tom Sawyer!). "Ana dos Cabelos Ruivos" é a série que acaba com as personagens centrais em desistência da suas personalidades iniciais (incluindo a própria Ana que, preservando as suas características, termina a acção em entrada na maturidade). Sei que vou um bocado longe em termos de análise religiosa mas permitam-me: "Ana dos Cabelos Ruivos" é um romance animado notável porque é uma história de conversão dos seus heróis.
A marca da conversão é sobretudo reconhecida em Matias. Matias é o homem que faz do cuidado da quinta uma oportunidade de reclusão. Faz lembrar um pouco o avô da Heidi. Não vai à Igreja e considera os pregadores uma espécie de charlatães. Nada dado a grandes conversas, acaba por ser a voz mais audível da transformação espiritual que Ana traz ao Frontão Verde. Num episódio maravilhoso (o 41, o meu preferido!), Ana recita o capítulo treze da Primeira Carta de Paulo ao Coríntios trajando um vestido de gala que Matilde tinha acabado de providenciar para a época que se aproximava no colégio real para onde, a custo de muito trabalho, Ana tinha entrado. Esse momento é fulcral porque na mente de Matilde e Matias demonstra o quão equivocados estavam em relação àquela menina que tinham recebido há uns anos. Com dificuldade em lidar com a emoção de ver aquela que era agora uma jovem elegante e eloquente que tinha revolucionado a vida daqueles irmãos, Matias retira-se da sala onde Ana entoa o texto bíblico. Sai para a rua e atira uma inesperada quase-oração: "Não sei o que se passa. Nunca foi o meu costume ir à missa para rezar. Não sou capaz de acreditar numa palavra do que o Pastor diz lá do púlpito. Mas de uma certa forma (...) tenho a impressão que Ele lá no alto fez de propósito. Como se Ele soubesse que precisávamos dela para não esquecermos como é gostar de alguém. Sem ela continuaríamos a ser o que éramos: dois velhos solitários. A Marília e eu devemos-lhe mais do que ela a nós e Ele já sabia que isto iria ser assim. Ele tinha a sua mão no jogo, isso tenho a certeza." Não sei qual é a vossa resistência, mas eu dificilmente aguento uma cena destas sem lágrimas. Isto é aquilo para o qual fomos criados: sermos transformados em amor por um Deus que sabe o que faz.
A série termina com as palavras da própria Ana. Escreve uma carta a uma amiga que funciona para o espectador como um testamento. A Ana dos Cabelos Ruivos explica que a sua crença é a do reconhecimento da beleza das coisas. Nessa beleza encontra-se a verdade última que permite o mais extraordinário que é possível aos seres humanos: que eles sejam transformados por dentro por causa daquilo que é maravilhoso fora deles. Tomem as minhas palavras como palavras que são também de um pastor evangélico. É difícil encontrar uma série de animação com verdades cristãs maiores que estas. Confesso: a Ana dos Cabelos Ruivos roubou o meu coração das mãos do Conan.


terça-feira, maio 20, 2014

Ouvir
O nosso louvor tem de incluir o lamento pelo mal que fazemos para não cairmos no mesmo tipo de indiferença espiritual que os ouvintes de Joel.
O sermão de Domingo passado aqui (clicar em cima de aqui).

segunda-feira, maio 19, 2014

E depois ainda
E já que estávamos na Praça de Espanha, aciganámos o juri do The Voice numa versão do "Dentes de Lobo" com direito a Heróis do Mar.


sexta-feira, maio 16, 2014

"Crazy Busy" de Kevin DeYoung
Vale a pena atarefar-me de aconselhar-vos este livro acerca de quão atarefados andamos. Kevin DeYoung colocou algum tempo de lado da sua atarefada agenda para escrever "Crazy Busy". Diz a frase debaixo do título: "A (mercifully) short book about a (really) big problem." Acabei de o ler e veio na altura certa. É fácil pavonear-nos no muito trabalho que temos mas acho que a ênfase mais certeira é na tolice com que o fazemos. A questão não é apenas quantitativa apenas mas sobretudo qualitativa. Até que ponto é que a nossa sobre-ocupação não é deixar de fazer coisas mais vitais?
Um exemplo pessoal: passei meia década no Facebook. Durante esse tempo houve crises distintas no modo como me (in)satisfazia com a rede social. Apliquei métodos distintos de regras de utilização (apenas ir uma vez por dia, não ir ao Domingo), desisti dessas regras (o telemóvel que permite actualizações a qualquer hora), ponderei acabar de vez com a brincadeira, e acabei em modo de detox parcial (uma página de autor sem interacção com perfis de outras pessoas). Claro que se pode dizer com algum cinismo que deixar o Facebook é "the ultimate Facebook move". E mais: de que vale deixar o Facebook se se acaba de entrar no Instagram? Onde quero chegar com este exemplo pessoal é que as minhas angústias filosóficas com o ecrã azul se tornaram uma amostra das minhas angústias com o Planeta Azul. De cada vez que nos preocupamos com o tempo no relógio que temos no pulso preocupamo-nos com a vida que ainda nos resta no corpo. Soa exagerado, eu sei. Mas o exagero é uma categoria que descreve bem o modo como me relaciono com a internet no particular e com a questão das minhas ocupações no geral.
A qualidade do nosso tempo foi no último século transformada com o acesso a uma quantidade nunca antes possível. DeYoung explica: "Because we can do so much, we do do so much. Our lives have no limits." Estas foram palavras que li de um modo profético num momento em que me tenho vindo a aperceber que viver bem é necessariamente escolher o que não viver. Enquanto não tivermos uma visão daquilo para o qual não queremos estar disponíveis, vamos, pelo menos, enfrentar dois grandes problemas: o primeiro que é estar à altura do que nos convencemos erradamente que somos capazes de fazer; o segundo que é perceber que, por trás de tanta ambição com aquilo que julgamos ser capazes de fazer, está uma visão equivocada e inflacionada do nosso próprio valor. Viver ocupado pode ser um modo de maquilharmos com actividade aquilo que na nossa alma não trabalha. "Busyness can cover the rot in our souls."
Deixem-me dar outro exemplo. Este vem de um amigo meu, o Manuel Rainho. O Manuel dizia-me há uns tempos que é ridículo comportarmo-nos uns com os outros a partir das possibilidades tecnológicas. Não é difícil enviar um convite por correio electrónico a alguém que não conhecemos pessoalmente. Ora, se a resposta demora ou, pura e simplesmente, nunca acontece, sentimo-nos ofendidos. Essa ofensa não vem de qualquer base real de um relacionamento concreto com a pessoa a quem escrevemos (até porque nunca a conhecemos). Essa ofensa vem de uma base técnológica que é, havendo a possibilidade operacional de um e-mail obter resposta e perante o facto disso não acontecer, concluirmos que temos uma razão para a nossa indignação. Eu nunca tinha visto as coisas deste modo mas o Manuel ajudou-me. De facto, um ser humano tem toda a legitimidade para não responder a um convite que é feito por outro que não conhece porque, em último grau, a base de um relacionamento entre pessoas não depende da tecnologia entre elas mas da humanidade com que elas interagem. Temos toda a autoridade moral para continuarmos agarrados à regra de não falar com estranhos (e com isto não sugiro que temos necessariamente de fazer assim mas que o podemos fazer sem nos sentirmos mal - by the way, tento responder aos convites que me fazem mas nem sempre consigo). Por que é que se torna difícil compreender isto? Porque estamos tão atolados naquilo que nos é possível fazer tecnicamente que não questionamos uma vida que seja fundamentada noutro alicerce.
"Crazy Busy" é um livro que liberta. "We do too many things because we say yes to too many people. (...) You're only indispensable until you say no." Esta tem sido a triste história da minha vida. Dizer sim quando devia dizer sim e dizer sim quando devia dizer não. Kevin DeYoung ajudou-me a perceber que a base para esta disponibilidade constante não é forçosamente a importância que os outros têm para nós mas a demasiada importância que temos para nós próprios. Não queremos admitir que somos pessoas limitadas. Por isso comportamo-nos com a presunção da nossa capacidade ser infinita. "Jesus didn't try to do it all. And yet he did everything God asked him to do. (...) The person who never sets priorities is the person who does not believe in his own finitude. (...) God does expect us to say no to a whole lot of good things so that we can be freed up to say yes to the most important things he has for us." Livre de dizer não - quem diria que isso se tornaria uma notícia tão positiva?
Outra das questões que me tocou forte foi o modo errático como confiamos naquilo que nos parece omnipresente: a informação. "The biggest deception of our digital age may be the lie that says we can be omni-potent, omni-informed, and omni-present. We cannot be any of these things. We must choose our absence, our inability and our ignorance - and choose wisely. The sooner we embrace this finitude, the sooner we can be free." Desde que alterei a minha presença do Facebook tornou-se imediata a minha ignorância acerca de acontecimentos à minha volta. Esse, que pode parecer um preço negativo, tem-se revelado positivo. Porque a liberdade é por natureza uma escolha que rejeita outras. E viver bem com o facto de que para ganhar ali é preciso perder acolá. Por outro lado a nossa não-exposição a tudo aquilo que as pessoas à nossa volta decidem partilhar ajuda-nos a não cair num equívoco perigoso. Esse equívoco é confundir o conhecimento real de uma pessoa com a exposição às coisas que ela põe na net. Dito de outro modo, se houve lição que 2013 me deu foi compreender que eu vou conhecer as pessoas não pela capacidade que tenho de estar 24 horas exposto ao que elas publicam nas redes sociais ou aos sms que trocamos. Vou conhecer as pessoas sobretudo quando sei das respostas que elas dão aos factos que ainda não têm a coragem de publicar. Essa tem sido uma moral da história que enquanto Pastor me ajuda a ser saudavelmente desconfiado de vidas demasiado online. And don't get me wrong, eu sou uma pessoa que tem a vida razoavelmente escarrapachada na web. Mas ando numa fase de desintoxicação.
Leiam este livro. Aprendam a dizer não. Liguem-se e sintam-se livres de se desligarem. "The antidote to busyness of soul is not sloth and indifference. The antidote is rest, rhythm, death to pride, acceptance of our own finitude and trust in the providence of God."

[Obrigado ao Tiago Falcoeiras que me emprestou o livro e que já escreveu sobre ele aqui (clicar em cima de aqui)]
[A minha mulher traduziu parte de um capítulo aqui (clicar em cima de aqui)]

quarta-feira, maio 14, 2014

Os gafanhotos de Joel



É virem à Lapa!
[O trabalho videográfico é da Sara Falcoeiras.]

terça-feira, maio 13, 2014

Ouvir
O sermão de Domingo passado terá sido o mais curto que já preguei na Lapa (nem meia-hora!). Chama-se "O Gafanhoto, bicho do arrependimento." Fala da capacidade única que Deus tem de fazer do castigo justo pelos nossos pecados passados, um caminho futuro de perdão. Ouçam-no aqui (clicar em cima de aqui).

segunda-feira, maio 12, 2014

E depois
Eu e os meus amigos mostrámos ao júri do The Voice como é que ele devia cantar as suas próprias canções.

sexta-feira, maio 09, 2014

Se é para mudar, é p'ra perder
Não há nenhum exagero em dizer que "Muda que muda" é das melhores canções da música popular portuguesa das últimas décadas. Eu e uns quantos estamos obviamente ansiosos pelo regresso sério do Coração aos discos (o "Mais louvação, menos murmuração" do disco da Xungaria no Céu foi só um aperitivo). Nessa canção dá para brincar aos Talking Heads enquanto se dizem umas coisas formidáveis sem que nos apercebamos, receio. A minha linha preferida diz: "Se é para mudar, é p'ra perder." E tenho pensado mais nela porque na Igreja começámos a estudar o livro de Joel.
Claro que na prática estas linhas servem para, mais uma vez, vos convidar a virem ouvir a pregação da Palavra na Lapa. O livro de Joel tem-nos levado a entender o modo como a fé cristã encara o castigo pelo pecado passado como um caminho para o futuro. Dizer isto não é tentar um paradoxo de algibeira. Mas é compreender que a ambição que Deus tem em nós se vê no modo como nos faz perder primeiro para que possamos ganhar depois. Há muitas coisas boas por Deus ser contra as nossas coisas más. O contrário disto é a indiferença. E raramente saem boas canções da indiferença. Just say yes: à canção e à visita à igreja.

quinta-feira, maio 08, 2014

Hoje, 8 de Maio de 2014
Criaturas secas: vós que apenas experimentais o mar em fugazes visitas durante o Verão não sabeis o que vos está desnecessariamente vedado. Habitamos um País onde o mergulho breve pode ser praticado durante todo o ano sem prejuízos para a saúde (comprovo-o com os meus últimos quatro anos). Não sabeis também que o mar, como nós seres humanos, tem uma personalidade que se altera durante as estações. Não, isto não é sobre as recentes ondas gigantes. Isto é sobre a temperatura do oceano, variável e caprichosa. Embora estavelmente variável e caprichosa. O facto é que os meses em que mais custa entrar na água não são os do Inverno. No Inverno não custa tanto entrar na água porque a pessoa tem tanto frio despida dentro de água como despida fora dela. A Primavera, sim, é exigente. Porque a temperatura subiu fora mas dentro ainda não. Já no Outono é quando custa menos porque a água, demorando sempre mais a mudar, acolhe-nos hospitaleira quando a temperatura do ar já desceu. No Verão... bem, no Verão, tendes uma ideia.
Esta introdução toda apena para vos informar que hoje, 8 de Maio de 2014, a água começou a ficar mais quente. Se notícias destas não nos derem alegria é sinal que o nosso maior problema não é balnear. É espiritual mesmo.

quarta-feira, maio 07, 2014

"As Primeiras Coisas" de Bruno Vieira Amaral
Há um desprazer possível ao falar sobre o prazer que é ler "As Primeiras Coisas" do Bruno Vieira Amaral. Esse desprazer é o facto de ser absolutamente irrelevante gostarmos do livro quando o livro já foi gostado pelo mundo inteiro. Ninguém vai tirar méritos literários de elogiar "As Primeiras Coisas" em Maio de 2014 porque já foi elogiado por todos durante 2013. No entanto, e felizmente, o prazer de ler alguma coisa vai muito além de termos sido os primeiros a fazê-lo. Há um prazer óbvio em descobrir um grande livro. Mas o prazer não se perde quando se lê um livro que já é um clássico. Com a velocidade acelerada dos nossos dias não é absurdo chamar clássico às "As Primeiras Coisas".
Há uma qualificação necessária que devo fazer que torna a leitura de "As Primeiras Coisas" especial para mim. Conheço o Bruno mas não estive com ele mais do que poucas vezes. Já o lugar onde está a acção de "As Primeiras Coisas", baseado numa adaptação fictícia de um sítio real, é-me mais conhecido. Esse lugar não só é objectivamente real como é subjectivamente real para mim. O Bairro Amélia não existiria sem o Vale da Amoreira, mesmo ali ao lado do Barreiro. O Vale da Amoreira tornou-se um lugar familiar para mim quando a minha irmã Sara casou com o Nuno que cresceu no Vale da Amoreira. Não familiar em termos de o conhecer muito bem. Mas familiar em termos de ter uma ligação de amizade com ele. E há mais. É que, como pode ser expectável das características de um bairro, a vida do Bruno Vieira Amaral cruza-se com a vida do meu cunhado Nuno. Logo, quando leio as histórias do Bairro Amélia estou a cruzar-me com algumas histórias que já conheço envolvendo até personagens baseadas em algumas pessoas que conheço também. Quando li "As Primeiras Coisas" estava a ler mais do que um livro. Também estava a ler um livro sobre amigos.
O título do livro vem de uma passagem bíblica e a fé bíblica atravessa as páginas de "As Primeiras Coisas" (não num sentido confessional). Sobretudo o refrão de um dos cânticos que mais entoei durante a minha adolescência, "Esta paz que eu sinto em minha alma". A parte desse cântico citada no livro diz: "Esta paz que eu sinto em minha alma/ Não é porque tudo me vai bem/ Esta Paz que eu sinto em minha alma/ É porque sei que Deus é fiel." Estou a escrever de memória mas, pelo menos, mais de três vezes pontua a narrativa. O quanto mais esse refrão atravessa a acção do Bairro Amélia, parece que mais o narrador da acção usa as palavras dessa refrão para contrapôr ao que está a acontecer. Nas páginas de "As Primeiras Coisas" as personagens em boa parte vão sendo progressivamente vencidas pelas circunstâncias. Ora, as personagens serem progressivamente vencidas pelas circunstâncias é uma escola literária do seu próprio mérito e abundantemente representada no nosso país. Mas o interessante é que apesar do Bruno Vieira Amaral alinhar, de certo modo, nesse exército de escribas meio realístico-depressivos, há um nervo nele que se destaca da restante multidão. Claro que podemos dizer que "As Primeiras Coisas" encerra uma reflexão pessimista sobre a existência humana mas "As Primeiras Coisas" não padece da chatice típica da maior parte das reflexões pessimistas sobre a existência humana. Sobretudo porque o narrador não se satisfaz no tom auto-comiserativo que geralmente sela o género.
As últimas páginas de "As Primeiras Coisas" soaram-me a cinema. E ao melhor do cinema americano, quando dá eco à vontade humana inconformada com o estado insatisfatório da nossa felicidade (não é por acaso que o estado americano foi o primeiro a ter o descaramento a juntar um projecto nacional à felicidade individual dos seus cidadãos). É este tipo de ousadia que permite que um livro acabe em clímax, como aqui acontece. E diria um clímax quase heróico, tão mais inesperado porque o livro nunca assenta num encadeamento de acontecimentos que peça um último acto que resolva a acção. A dinâmica que o Bruno Vieira Amaral colou à sua história é notável. Porque trabalha fora dos moldes aos quais estamos habituados para que um movimento de progresso seja reconhecido em páginas escritas. O livro começa num registo confessional do seu narrador por causa de acontecimentos na sua vida. Mas imediatamente desacelera para um registo parado de personagens individuais. Ora, no final, essa lista de personagens (monotonamente organizadas alfabeticamente) dá lugar a um fecho que regressa ao narrador. O que não se esperava é que, depois de semelhante catálogo disperso (mas não assim tanto) preencher o miolo do volume, houvesse a capacidade do final tornar tudo acerca da vida do narrador, num gesto de resistência ao rumo inclemente do destino colectivo. "As Primeiras Coisas" é um livro excelsamente individualista. O nervo está na esperança.
O ribombar dos tambores não foi em vão. "As Primeiras Coisas" bem pode ser um passo em frente não só numa carreira individual que já não quererá passar despercebida mas também um passo em frente numa genuína nova geração de escritores portugueses. As coisas que valem a pena do nosso passado literário estão a ser aqui honradas porque estão a ser escritas de um modo novo, como se fossem as primeiras coisas.

Para o Joaquim Vieira.


terça-feira, maio 06, 2014

Ouvir
Lemos profetas do Velho Testamento porque nos mostram que Deus é tão ambicioso connosco que, querendo o nosso melhor, confronta-nos com o mal que fazemos.
O primeiro sermão da série sobre Joel pode ser ouvido aqui (clicar em cima de aqui).

segunda-feira, maio 05, 2014

Há uns anos fiz uma audição para o The Voice
O Reininho curtiu.


sexta-feira, maio 02, 2014

A nossa sanidade teológica depende de sabermos optar entre Robert Zemeckis e a Teologia Reformada - Uma leitura de "Deus é Soberano" de A.W. Pink - Parte V
Voltemos a Robert Zemeckis. Com frequência as questões acerca do ponto de intersecção da vontade de Deus com a vontade do homem descambam para o "Regresso ao Futuro". A isto corresponde a crença comum que no futuro existe duas ou mais possibilidades concretizáveis mediante os passos decididos agora. O problema é que na Bíblia a vida do homem nunca aparece em modo Dungeons & Dragons. Se escolheu a terceira hipótese, avance para a página 32. É certo que as Escrituras apresentam muitas condicionais. Basta pensar nos livros proféticos do Velho Testamento, em que a hipótese do povo obedecer ao profeta pode suspender o castigo de Deus. Mas todas esta presença de condicionais é constantemente iluminada pela esperança apocalíptica, de que Deus retirará no final os propósitos aos quais se dispôs no início. Pink, novamente: "Se a escolha divina foi determinada desde a eternidade, perdurará por toda a eternidade." Não há um milímetro dos acontecimentos da história do mundo que coloque em causa que Deus vai tirar dele a lição que preparou logo ao início.
Na prática isto previne-nos das angústias típicas de homens em curto-circuito de crises cronológicas. Como é que se vê este curto-circuito de crises cronológicas? Em dilemas como: como seria  minha vida se tivesse antes casado com a Marília em vez da Matilde? Será que naquele dia que me atrasei e apanhei o comboio para o Rossio das 8h27 e não das 8h15 escangalhei o plano perfeito que Deus tinha para mim? Será que tenho uma hipótese, por minimamente cósmica que seja, de voltar ao plano que, na encruzilhada de há vinte anos que escolhi pela direita, escolher agora ir pela esquerda? Creio que este tipo de curto-circuito de crises cronológicas pode gerar boas histórias para cinema e literatura. Lá está, o "Regresso ao Futuro" continua a ser notável (e, ironicamente, a produzir novas confusões temporais com o anúncio falso da esperadíssima chegada dos hoverboards). Mas teremos muita dificuldade em forçar esse chão fértil de ficção nas páginas das Escrituras. Por muito que custe à nossa mente copernicana, o centro da Palavra é a acção de Deus nos homens e não tanto a acção dos homens em Deus (e com isto não nego que a Palavra mostra a sensibilidade óbvia de Deus a nós).
É também por assumirmos que a história mais importante não é a nossa mas a de Deus que somos impedidos de pegarmos na crença na predestinação para fazer uma lista de quem é salvo e de quem não é. Colocando isto de um modo muito compacto: a Teologia Reformada não manda ninguém fazer listas de salvos e de perdidos. A Teologia Reformada, porque lê a Bíblia, manda fazer o que a Bíblia manda: pregar aos perdidos para que eles se salvem. Quando ouço um calvinista condicionar a eficácia da sua pregação à luz de que os seus ouvintes não estão predestinados a serem salvos, tenho a certeza de que estou na presença de um calvinista que despreza a Palavra de Deus. Claro que um pregador calvinista não pode convencer quem não foi predestinado por Deus para ser salvo. Mas para o pregador calvinista essa não é uma tarefa da sua lavra mas da lavra de Deus. O pregador calvinista tem de pregar, pregar e pregar. O pregador calvinista não tem fundamento na Bíblia para, à luz da predestinação, deixar de fazer o que a Bíblia manda. Nós pregamos a todos. Deus salva quem quer. Temos de saber distinguir competências. Isto é algo com o qual até um arminiano pode concordar, creio. Porque no final, Deus é a personagem principal. Nós não. Ele salva. Nós apenas pregamos a salvação.
Quero terminar explicando que não me move uma campanha contra o livre-arbítrio. Ainda nesta manhã, lendo as "Institutas", fui relembrado que o livre-arbítrio existiu em nós nos nosso estado original. Deus criou-nos com livre-arbítrio. Deus criou-nos com a liberdade de não pecar ao mesmo tempo que nos deu a liberdade para pecar. Se é difícil de compreender? Claro que é. Por isso cremos nos méritos da fé e não nos méritos da compreensão. Permanece ainda por ser-nos revelado o mistério de saber por que razão Deus escolheu permitir que o homem pudesse pecar. Não sabemos porque Deus não nos deu a perseverança de termos a vontade de não pecar, quando tínhamos esse poder de não pecar. Antes, tivemos a vontade oposta ao poder que nos era dado. Somos pecadores porque tínhamos o poder de não pecar mas tivemos a vontade de o fazer. A responsabilidade do pecado é inteiramente nossa. Porque Deus não nos obrigou a pecar. O que sabemos, não sendo tudo, é o que precisamos para nos mantermos sóbrios na Palavra. Devemos viver a fractura entre vontade e poder debaixo da direcção do Espírito Santo, que é capaz de juntar aquilo que nós fomos capazes de separar.
O que nos é mais útil reconhecer, enquanto cristãos, não são as possibilidades externas da cronologia mas as possibilidades internas do nosso coração. Na prática isto significa que nos preocuparemos mais com a possibilidade de no presente escolhermos coisas erradas e não tanto em saber como seria o futuro se tivéssemos escolhido coisas mais certas. Porque quando assumimos a inteira responsabilidade pelo mal que praticamos ficamos mais inclinados para nos deslumbrarmos com a capacidade de Deus reparar o que nós quebrámos. E ficamos também mais inclinados para nos deslumbrarmos com a capacidade que Deus tem de tirar bem do mal que permite, ao invés de sonharmos com um mundo perfeito onde nenhum mal existe. Novamente lembremos a frase de Agostinho: "Está mais de acordo com Deus tirar bem do mal que não permitir que o mal exista." Afirmar que Deus é soberano não é afirmar que Deus é um Rei que se impõe sobre republicanos. Receio que muitas vezes a defesa da doutrina bíblica soe assim ao nossos ouvidos que nunca viveram numa monarquia. A soberania de Deus serve para nos recordar que o facto de Deus criar o homem sujeito a limites de espaço e de tempo não impede Deus de levar o homem para uma eternidade ilimitada. Quando recordamos isto recordamos também que semelhante aventura só está ao alcance do Deus que é capaz da façanha. O homem, não sendo a personagem principal, só tem de agradecer ao protagonista. Não foi pouco que foi feito por ele. Terá um tempo sem fim para lhe mostrar essa gratidão.

quinta-feira, maio 01, 2014

A nossa sanidade teológica depende de sabermos optar entre Robert Zemeckis e a Teologia Reformada - Uma leitura de "Deus é Soberano" de A.W. Pink - Parte IV
É verdade que o fatalismo pode ser um calvinismo apodrecido. Mas o calvinismo não sugere o fatalismo porque aquilo que faz um cristão ser calvinista é aquilo que impede um calvinista de ser fatalista: a Bíblia aberta. Mais do que existir para nos tirar a dúvida, a Bíblia existe para nos dar a vida. O que é que isto quer dizer? Que o bom calvinista assume que não entende inteiramente como se articula a vontade divina com a vontade humana. Mas isso não o estremece. A.W. Pink esclarece sobre a acusação típica de que o calvinista não evangelizará por causa de Deus ter escolhido previamente os seus. "Não pregamos o evangelho porque cremos que o homem possui 'livre-arbítrio', e, portanto, é capaz de receber a Cristo. Mas nós o pregamos porque esse foi o mandamento que recebemos. E porque, embora o evangelho seja uma loucura para os que se perdem, «para nós que somos salvos é poder de Deus (1 Coríntios 1:18)»." A evangelização não é uma tarefa que dependa fundamentalmente da compreensão que temos dela mas é uma tarefa que depende fundamentalmente de lhe obedecermos como mandamento de Cristo. Dou um exemplo contemporâneo.
Onde é que a evangelização tem morrido no último século? Sobretudo no cristianismo liberal. E porquê? Porque o cristianismo liberal ao rejeitar, entre outras crenças ortodoxas, a existência do Inferno, deixa de precisar de evangelizar porque evangelizar é absurdo se ninguém se perde. Ora, o que o cristianismo liberal mostra é que só obedecerá às palavras de Jesus se entender as palavras de Jesus. Quando deixa de as entender, deixa de lhes obedecer. Na prática, e como já muitos antes disseram, o problema do cristianismo liberal do século XIX, XX e XXI é o mesmo problema do cristianismo liberal do século II, III e IV - é gnóstico. Por ser gnóstico, dependente da gnose (da compreensão humana) deixa de ser uma fé para passar a ser uma filosofia. O problema está em que Jesus morto e ressuscitado não é um filosofia que depende da nossa adesão humana, é um acto divino que reclama a nossa pertença.
O ressurgimento calvinista de agora é óbvio que também se compreende sociologicamente. Porque uma época de busca por humildade epistemológica volta a estar mais inclinada para conviver melhor com o mistério. A predestinação é a prova da aceitação do mistério. E o lembrete que o terreno para a acção cristã não é a compreensão das palavras de Jesus mas a obediência a elas. Por isso Jesus, no seu último discurso antes da sua morte, explicou aturadamente aos discípulos que amá-lo era fazer o que ele dizia (do capítulo 14 ao 17 do Evangelho de João). O cristianismo liberal, com tanto amor para lá e para cá, esquece de o praticar na simplicidade das palavras do Mestre: temos de evangelizar para salvar os perdidos, e não temos de parar de evangelizar porque arranjámos uma maneira de todos serem salvos.
O calvinista convive melhor com a ideia de que o que Jesus manda fazer deve ser feito mesmo que não entendamos perfeitamente todos os passos dessa obediência. Aliás, geralmente obedecer implica fazer alguma coisa independentemente de compreendermos totalmente o que fazemos. Por isso é que é preciso obedecer. O calvinista percebe melhor que o facto da liberdade de Deus condicionar a nossa não é uma obstrução mas uma oportunidade. A oração ganha mais pertinência por causa disso. Porque o mais importante não é convencermos Deus a fazer aquilo que nós desejamos, mas, através da oração, o nosso coração ser transformado de acordo com o de Deus. Pink ajuda: "A verdadeira oração é a comunhão com Deus, de tal maneira que surgem pensamentos comuns à mente dele e à nossa. O que necessitamos é que ele nos encha o coração com os pensamentos dele; e então os desejos dele serão os nossos, a fluir em direcção a ele. Aqui, pois, está o ponto de encontro entre a soberania de Deus e a oração cristã: se pedimos alguma coisa segundo a sua vontade,e ele ouve-nos, se não lhe pedimos assim, não nos ouve (Tiago 4:3)."