Aguardela entre a espada e a parede
[Escrevi este texto para a newsletter da Flur aqui há um par de semanas.]
Vivo ao lado de um Centro Comercial que já foi importante. Vivo em Oeiras e esse Centro Comercial chama-se Palmeiras. Antes do advento dos multiplexes, estes sítios eram um luxo. O Palmeiras é parente do Fonte Nova, para dar um exemplo menos suburbano. Ora, no Palmeiras há todo o tipo de iniciativas que visem impedir a sua decadência (valeria a pena recuperar o seu cinema, por exemplo). Uma dessas iniciativas é uma feira do livro que, volta e meia, ocupa a sua praça central.
Essa feira do livro tem preços imbatíveis. Andei a oferecer Flannerys O'Connors e Evelyns Waughs aos meus amigos à custa disso. E também dá para comprar outros livros que, se não fosse um preço estupidamente baixo, provavelmente nunca compraria. Comprei "Morrer na Praia do Futuro" sobre o crime macabro de Luis Militão Guerreiro que levou a vida de seis empresários portugueses (que livro!). Mas divago. Queria chegar a outro lugar: "Esta Vida de Marinheiro" de Ricardo Alexandre, sobre a vida de João Aguardela.
Na minha memória há um concerto no Parque Central da Amadora, algures entre 1994 e 1995, em que os Sitiados provocaram um
mosh pit medonho que juntava brancos, pretos, metálicos, xungaria, skins e punks, entre outros. Lembro-me que eu e o meu amigo Emanuel Conde aperfeiçoámos uma técnica de sobreviver na molhada que era abraçarmo-nos e usarmos as pernas como hélices que impedissem aproximações mais hostis. Funcionava. E funcionava sobretudo tendo em conta que um concerto de Sitiados era selvagem. Era gloriosamente selvagem.
Desde essa altura que passei a admirar João Aguardela. Desde essa altura e desde que a minha irmã gémea comprou o "E Agora?", o segundo álbum dos Sitiados. Os Sitiados ajudaram a criar em mim uma trégua entre o meu punk militante da adolescência e a convicção que o futuro tinha de vir de mãos dadas com a música da nossa tradição (nunca teria gravado o meu primeiro disco a solo, "Fados Para O Apocalipse Contra A Babilónia", sem isso). Fiquei triste quando Deus chamou tão cedo o João Aguardela em 2007. Como um bom fã, gostava de o ter conhecido para lhe dizer da importância que ele teve para mim (uma vez vi-o com a Sandra, sua companheira de música e de vida, na Loja do Cidadão mas faltou-me a coragem).
O Aguardela tinha um credo que também confesso. Esse credo sugere que a música é tão mais interessante quanto stressada entre a espada e a parede. O que é que isto quer dizer? O coração do Aguardela não fervia pelos músicos habilidosos e que transmitem domínio da sua arte. O Aguardela dizia mesmo que a música portuguesa a partir dos anos 90 era desinteressante porque os músicos portugueses aprenderam a tocar tão bem como os músicos estrangeiros (e, consequentemente, a imitá-los na perfeição). Passaram a ser músicos aburguesados.
Se olharmos para o Aguardela, vemos que o seu credo não era só teoria. Os Sitiados nunca quiseram aperfeiçoar o seu trad-rock para se colocarem como versão local dos Pogues. Fizeram esquisitices com a electrónica, borrifaram-se para novos êxitos, acabaram quando acharam que não tinham mais nada de interessante para dar. A seguir, o Aguardela meteu-se no Megafone (uma coisa que, nunca me tendo dado muita pica, ainda assim me inspirou - o Aguardela fez uma coisa que também fiz que era deixar às escondidas os meus discos nas prateleiras de fado da Fnac quando não os conseguíamos distribuir comercialmente). O Aguardela ainda foi à Linha da Frente e à Naifa, coisas a que não prestei muita atenção mas que foram contra-a-corrente num contexto global de conformação e tédio.
Uma música entre a espada e a parede é uma música que não finge que antes de nós não veio ninguém. É uma música que nos aperta porque nos permite criatividade a partir de um princípio que não estamos sozinhos. É uma música que, se calhar, antes de celebrar génios, celebra entalados. Celebra músicos que andam às voltas com o antigo e com o novo, sem isenções espácio-temporais - somos daqui e estamos aqui agora. Nesse sentido, uma música entre a espada e a parede é, paradoxalmente, uma música mais comunitária. É com essa paz que cumprimento todos os músicos e amantes de música - shalom!