"Diário de Preces" de Flannery O'Connor
Se os protestantes tivessem altares em casa, o meu T3 de Nova Oeiras
teria certamente um nicho para Santa Flannery O'Connor, patrona dos
candidatos a escritores com ânsias desmedidas. Desde 2010 que ela
plantou um lugar sólido no meu coração e já não consigo lê-la
imparcialmente (a rigor, ninguém lê imparcialmente). Já não leio a
Flannery, sigo a Flannery. Ela diz e o meu coração escuta. O que não
significa uma infalibilidade porque, por exemplo neste livro, “Diários
de Preces” que serve de razão para este texto, custa-me a referência à
Senhora do Perpétuo Socorro. Mas pronto, é a Flannery.
Quando
comecei a ler “Diário de Preces” comentei para a minha mulher: “tens de
ler isto até porque parece mesmo que estamos a ouvir a Ana dos Cabelos
Ruivos a orar.” Alguns recordarão que aqui há mais ou menos um ano
escrevi como a Ana dos Cabelos Ruivos tinha destronado o Conan, o Rapaz do Futuro
no podium dos meus heróis infantis. Pois bem, a Flannery O'Connor que
ora em “Diários de Presces” é, nos seus vinte e poucos anos,
impressionantemente parecida com a Ana dos Cabelos Ruivos com pouco mais
de dez. E isto não é chamar imatura à Flannery mas antes reconhecer que
a oração é sempre um processo de permanecermos infantes. Vejam a
declaração final do livro:
“Hoje demonstrei ser uma glutona - ávida de bolinhos e pensamentos eróticos. Nada mais resta dizer acerca de mim (pág. 49).”
A
partir do momento em que Jesus nos ensina a orar dando-nos a obrigação
de chamar Pai a Deus, fica tudo dito: o nosso lugar é o das crianças
dependentes dos seus progenitores. Talvez o que afaste mais as pessoas
da oração não seja tanto o aparente tédio do processo, mas mais uma
recusa, ainda que inconsciente, de nos colocarmos numa posição de
dependência. Quem gosta de se afirmar como sujeito ao cuidado de
terceiros? A verda é que não há oração sem que isso aconteça. Logo, há
um
pathos infantil que pertence a qualquer prece,
pathos
esse que neste livro é completamente honrado. Que Flannery pareça
acriançada é a melhor garantia que temos que ela está mesmo a orar.
“Neste momento sou um queijo, faz de mim uma mística, imediatamente (pág. 48).”
Há
uma embirraçãozinha protestante minha com um pormenor do título. “A
Prayer Journal” é traduzido como “Diários de Preces” e, de facto, não se
pode dizer que seja uma tradução incorrecta. Mas diria que, sendo uma
tradução mais tipicamente romana (e Flannery era romana!), não faz
justiça a um carácter mais dinâmico que a oração pede, e que creio que é
mais bem defendido em países de cultura protestante (e Flannery, sendo
romana, era de uma cultura reformada!). “A Prayer Journal” seria num
contexto protestante traduzido simplesmente como “Diário de Oração”.
“Diário de Preces” acentua mais o lado da coisa que se faz (fiz uma
prece), ao passo que “Diário de Oração” acentua mais uma coisa que é
feita por necessidade (mais do que fazer uma prece, oro). Um diário de
oração não é, neste sentido, muito diferente de um planeamento do que se
compra para comer. Orar deve ser menos uma coisa que fazemos, e que
caracteriza a nossa lista de actividades, e mais uma coisa da qual
dependemos para fazer outra qualquer. O
“orai sem cessar” do Apóstolo Paulo em 1 Tessalonicenses 5:17 tem a ver com isto.
Flannery ajuda-nos a perceber que a oração é entrarmos num circuito divino. Como? A determinada altura, Flannery ora assim:
“Não
Te conheço, meu Deus, porque eu própria Te encubro. Por favor, ajuda-me
a arredar-me do caminho. (…) Mesmo ao orarmos, és Tu que tens de orar
em nós.” A oração não é fundamentalmente acerca de nós que oramos,
mas acerca do Deus a quem oramos. É esta certeza que nos ajuda nos
momentos em que não temos vontade para orar. Se a oração fosse acerca da
nossa vontade, não só raramente oraríamos, como tínhamos de obliterar a
parte
“seja feita a Tua vontade” do Pai Nosso.
Num
contexto mais romano as pessoas que se emocionam muito com a comunhão
com Deus são chamados místicos. Num contexto reformado esta
diferenciação soa sempre um bocado artificial. Porque à luz das
Escrituras não há eternidade que não seja acerca da comunhão com Deus e,
basicamente, ou um cristão deseja Deus ou não é cristão. O céu será um
inferno para um cristão pouco excitado com a presença divina. Imaginem
passar o resto da vida (que ainda por cima não acaba!) com alguém com
quem não temos assim tanto interesse em estar. Por isso uma das
necessidades básicas da oração é precisamente reconhecer que o nosso
desejo por Deus ainda é demasiado fraco e que precisa de ser acordado.
Temos de desejar o desejo por Deus. Flannery ora isto magistralmente:
“Concede-me
a graça de aguardar com impaciência o momento em que Te verei cara a
cara e de não precisar de outro estímulo senão esse para Te adorar.” Eu digo amém!