segunda-feira, junho 29, 2015

O Paradoxo da Felicidade

Em Portugal quando se ouve de um pastor evangélico brasileiro a abrir uma igreja nova pensa-se normalmente em uma igreja nova com brasileiros lá dentro. Na gíria são as igrejas étnicas, que bem ajudam a dar algum ânimo ao facto de a maioria das igrejas evangélicas portuguesas estar em decadência. Não fosse a proliferação destas novas igrejas (que, em abono da verdade, tanto depressa abrem como depressa fecham) e os números de protestantes no país estariam a cair.

No ano passado estive em Paris (na Conferência do City To City) e conheci uns quantos pastores brasileiros a abrir igrejas novas em países como a França e a Itália. Por defeito, o meu cálculo foi pensar em igrejas de brasileiros em França e na Itália. Mas, voilá!, apanhei uma surpresa: não tendo a vida facilitada por falarem a mesma língua (como em Portugal), nos outros países europeus os jovens pastores brasileiros estão a abrir igrejas que se enchem com as pessoas do país onde estão. Não são igrejas de emigrantes. São igrejas de franceses e italianos.

O caso que mais me surpreendeu foi o do Pr. René Breuel. O Pr. René Breuel terá a minha idade (trintas e muitos) e, com a sua mulher Sarah e os seus dois filhos, abriu há um par de anos uma igreja no centro de Roma. É uma igreja que não é pequena para os parâmetros europeus: cerca de uma centena de pessoas. É uma igreja que faz mais do que reciclar evangélicos fartos das suas igrejas de origem - é uma igreja a crescer com pessoas que se convertem ao cristianismo através do seu testemunho. É uma igreja de gente nova, com uma linguagem solta do evangeliquez e uma frontalidade ganhadora acerca do que é fundamental no evangelho. É uma igreja italiana pastoreado por um brasileiro que tem tudo para ser o sonho de um português.

Há duas semanas pude finalmente conversar pela primeira vez com o René. Ele passou-me um livro que escreveu (ele já escreveu outro além desse) e eu passei-lhe o livro que escrevi. O livro que passei a ter nas mãos e que li em três dias chama-se “O Paradoxo da Felicidade”. E é um livro muito bom. É um livro que parece pegar no género estafado de “seja feliz em cinco passos” mas que o subverte dando-nos o que o cristianismo crê acerca do assunto. Vou tentar descrever muito basicamente a tese do livro.

Todas as pessoas têm fome de ser felizes e o pior erro é fingir que já comemos quando os nossos dentes ainda não trincaram nada - Deus fez-nos de facto para sermos felizes (até porque Deus é feliz). Mas que tipo de felicidade devemos perseguir? Não podemos procurar a felicidade dos modelos comuns porque os modelos comuns querem vestir os fregueses sem lhes tirarem as medidas. “Eles não levam em conta a natureza entortada da nossa alma, encurvada pelo pecado, e não conseguem evitar a lógica egocêntrica na qual funcionamos.” Ou seja, o apetite antropológico (um homem querer ser feliz) é sabotado pela imperfeição do sistema digestivo (nenhum homem é perfeito). O problema não é querermos ser felizes, o problema é sermos imperfeitos. Procurarmos uma felicidade que ignora a nossa imperfeição é acabarmos ainda mais cheios da última.

“A felicidade é um efeito indirecto.” Somos felizes como consequência e não como causa. “Somos alegres não quando estamos obcecados com o nosso estado emocional, mas quando, imersos em alguma actividade, relacionamento ou causa, nos entregamos à vida em autoesquecimento.” É aqui que entendemos o paradoxo da felicidade. Os cristãos ao imitarem Cristo doam-se como ele o fez na cruz, redimindo a realidade num gesto de amor que se sacrifica. “O paradoxo de Jesus expressa assim a verdade básica por trás da existência humana e da nossa busca por felicidade: salvamos nossa vida quando a perdemos, ganhamos quando damos.” Podemos acabar surpreendidos pela felicidade porque nos esquecemos dela.

Há mais coisa boa no livro (destacaria a parte que trata da questão do sofrimento: “A maneira como compreendemos a felicidade hoje, então, se está divorciada da bondade e do sofrimento, está também divorciada da realidade”) e valia a pena que ele estivesse disponível no mercado português. Creio que é possível encomendá-lo pelo site do René. É um texto que tanto serve pessoas que já declaram fé, como as outras, e que funciona como boa introdução ao cristianismo. Começa na questão da felicidade no geral para culminar na única felicidade possível que é Cristo.

No final terminei convicto que o René e a sua família têm de vir gastar mais tempo em Portugal, partilhando da experiência deles de injectar energia sul-americana ao cristianismo europeu amolecido. A Chiesa Evangelica San Lorenzo tem muito para dar além da Itália.

terça-feira, junho 16, 2015

Ouvir
Longe de Cristo sou uma contrafacção de mim próprio. O sermão de Domingo passado, sobre o 9º mandamento ("não mentirás") pode ser ouvido aqui (ou aqui: http://www.igrejadalapa.pt/?q=media/podcasts/o-nono-mandamento).


segunda-feira, junho 15, 2015

Revitalização de Igrejas

[Estou a frequentar a Conferência Ibéria XXI promovida pela rede City To City, da Igreja Presbiteriana Redeemer em Manhattan. Este texto serviu de orientação para a minha participação na conversa sobre revitalização de igrejas, num painel com o Pr. Josué da Ponte e com o Pr. Felipe Assis, moderado pelo Manuel Rainho e pelo Pr. Pedro Silva. Está a ser muito bom. Dura até Quarta-Feira na Igreja da Casa da Cidade, perto de Moscavide - juntem-se a nós!]

Aquilo que acontece na igreja que sirvo, a Igreja da Lapa (nome oficial: Segunda Igreja Evangélica Baptista de Lisboa), pode ser visto como a revitalização de uma igreja. É uma parte do que lá acontece, de facto. Nesse sentido, o nosso exemplo pode ser bom para ilustrar um dos assuntos que nos junta nesta Conferência Ibéria XXI. Quero por isso partilhar alguns dos aspectos que me parecem centrais na nossa experiência, para que ela possa ser útil a todos os que aqui nos juntamos. Vou fazê-lo organizando a minha partilha em quatro tipos de revitalização possíveis de observar no nosso percurso.

Devo abreviar o que aconteceu nos últimos sete anos. Em Outubro de 2007 eu e a Rute fomos enviados pela Igreja Baptista de Moscavide, à qual pertencíamos, para ocupar as instalações de uma pequena igreja que não estavam a ser usadas desde o início dos anos 90. Uma pequena sala na cave com um pequena casa-de-banho e mais uma pequena sala no rés-do-chão eram o que restava da antiga Igreja Baptista de São Domingos de Benfica. Como esta igreja tinha pertencido à Associação de Igrejas Baptistas Portuguesas, a Direcção desta Associação tinha decidido manter-se pagando o aluguer para usar estas instalações como escritório. Na prática isto significava que a sala do rés-do-chão era usada para reuniões e organização de envio de material pedagógico da AIBP, e que o salão de culto, na cave, permanecia enquanto espaço museu. Tudo tinha ficado como tinha sido deixado. Parecia Pompeia. Deu-se a erupção do vulcão e o pó era o único guardião da memória do que até então tinha acontecido.

Eu e a Rute, como enviados missionários da igreja, acabámos logo aí a fazer uma espécie de revitalização da igreja – o primeiro tipo de revitalização de igrejas de que vos quero falar. É a espécie mais fácil. Porque revitalizámos a igreja sem termos de revitalizar as pessoas que lá estavam antes porque nenhuma dessas pessoas se juntou a nós. Mas revitalizar sem vidas concretas não conta. Começámos então de outra maneira, contando com apenas mais uma família, além da nossa, comprometida com essa tarefa de começar uma igreja nova. Em alguns meses contávamos com cerca de 15 pessoas nas reuniões. Acelerando um pouco o relato, o primeiro plano de autonomia da igreja foi adiado e, em vez de renascermos enquanto Igreja Baptista de São Domingos de Benfica em 2011, fizémo-lo em Janeiro de 2012. Éramos doze membros e uma congregação de cerca de 30, 40 pessoas.

Sobre as características dessa comunidade é importante dizer que, tirando um caso, não havia conversões. Éramos um mosaico no que diz respeito à proveniência evangélica (pequena maioria de baptistas, o segundo grupo mais expressivo era de pentecostais e havia alguns vindos dos irmãos) mas um grupo homogéneo de pessoas que se relocalizavam ali. É verdade que a igreja era nova. Mas os seus membros não eram novos na fé. Foi preciso esperar uns meses para que baptizássemos a segunda pessoa que se tinha convertido através do nosso trabalho. Creio que é importante referir isto porque quando se fala em igrejas novas em Portugal receio que na maior parte das vezes (pelo menos na minha observação) seja preciso explicar que a novidade delas é à custa da velhice das outras. Explico. Falar numa igreja nova é fantástico se partirmos do princípio que essa igreja nova significa novas conversões. Mas falar numa igreja nova não é assim tão fantástico quando essa igreja nova se desenvolve à custa de realojar aqueles que estão insatisfeitos com as suas igrejas velhas.

É a minha opinião que uma boa parte das igrejas evangélicas novas em Portugal não são puramente igrejas novas mas igrejas revitalizadas à distância. Explico. Se eu abro uma igreja que serve para ser a igreja nova de pessoas que ao chegarem lá tiveram de sair das suas igrejas velhas, é como se eu estivesse a revitalizar essas igrejas velhas, ainda que ninguém me tenha dado autorização. Quantas das igrejas novas representadas neste encontro são realmente igrejas de novas conversões? Talvez a parte mais considerável seja igrejas novas que relocalizaram velhos membros. A minha tese é que essa é uma espécie de revitalização, ainda que não consentida formalmente. Esta é a segunda espécie de revitalização que quero falar – a revitalização real mas não consentida, que creio já estar a acontecer em Portugal e que não deve ser o nosso objectivo primordial. Não sou contra ela de modo algum. Mas é o que me faz não querer ter um discurso triunfal sobre a minha igreja nova. Antes pelo contrário. Algumas das melhores coisas que acontecem na minha igreja são à custa das piores coisas das outras igrejas. Nesse sentido, em Portugal há muito trabalho de revitalização para fazer mesmo que nunca seja assumido como tal.

Avançando no tempo, devo registar o período de revitalização de igreja mais formal que efectivamente aconteceu. Este é o terceiro tipo de revitalização que quero mencionar e que passa por uma revitalização real e procurada. Em 2014 a Igreja Baptista de São Domingos de Benfica deixou de existir para se juntar à Segunda Igreja Baptista de Lisboa. A Segunda Igreja Baptista de Lisboa passava uma crise longa e estava reduzida a uma dúzia de pessoas num salão onde podem caber duas centenas. Como a história ainda está a ser escrita devo ser cuidadoso. Mas falaria três aspectos para caracterizar a revitalização da 2IBL leva a acabo pela Igreja Baptista de SDB.

Em primeiro lugar, foi mais fácil a 2IBL ser revitalizada porque já quase que não havia 2IBL. Já não havia vaidade a que se pudesse agarrar para se dar ao luxo de regatear o seu futuro. Era ser ajudada por nós ou fechar a porta. Digo isto porque olho para várias igrejas que já precisam de ser revitalizadas mas que ainda não largaram aquilo que impede uma verdadeira revitalização: o seu orgulho. Na minha denominação então, este é um problema sério. Para revitalizar é preciso assumir que a vida já quase se foi embora. Isto é muito complicado de ser assumido. Em segundo lugar, foi mais fácil a 2IBL ser revitalizada porque não foi um Pastor que chegou mas uma igreja com ele. Quando SDB começou a ajudar a 2IBL a maioria esmagadora das pessoas presentes nesse encontro era de SDB. No próprio funcionamento congregacional que temos isso permite que os atritos mais facilmente sejam vencidos por uma dinâmica que não pertence a um Pastor sozinho mas a uma efectiva comunidade nova. Em terceiro lugar, foi mais fácil a 2IBL ser revitalizada porque essa revitalização não acontece apenas exteriormente na igreja mas interiormente na fé dos crentes. O que começou a acontecer logo em SDB foi uma espécie de reconversão. E é aqui que quero terminar com uma nota mais pessoal.

Nesta nota pessoal falo do quarto tipo de revitalização – aquela que tem de acontecer dentro de nós. Quando começámos o trabalho em SDB tínhamos o sonho de abrir uma igreja nova. Receber pessoas e pregar-lhes a Palavra. Ocupar o púlpito com uma mensagem que ressoasse nos ouvintes. Encher a pequena igreja. A verdade é que lentamente todas essas coisas aconteceram. Mas no processo de se materializarem esses sonhos, entendemos também que esses sonhos não estavam necessariamente colocados no fundamento certo. Não é por Deus permitir que um sonho nosso se concretize, que esse sonho passa a ser certo. É possível querer ser pastor com a intenção errada. É possível querer revitalizar uma igreja com a intenção errada. À medida que uma igreja se desenvolve, rapidamente entendemos que os momentos de aclamação não são a regra mas a excepção. Para Moisés as lutas mais persistentes da sua missão de libertar o povo serão com os libertados, também para um pastor as lutas mais persistentes são com a igreja pastoreada. Este desabafo serve para dizer: poderemos ter a certeza que estamos a revitalizar uma igreja quando o evangelho nos está a revitalizar a nós. É um processo longo mas seguro. Temos de permanecer constantemente nos fundamentos na nossa fé para que alguma coisa nova possa ser construída. Não podemos sonhar com arranha-céus quando os alicerces estão em mau estado. Não levarão a mal a minha opinião de que os alicerces das igrejas evangélicas em Portugal precisam urgentemente de ser revistos. Se calhar, vamos chegar à conclusão que a igreja que julgávamos estar em condições de revitalizar outras é a primeira a precisar de revitalização. Que Deus nos ajude nesse trabalho!

quinta-feira, junho 11, 2015

Ver
Ontem foi um dia de muita alegria. Voltarei a ele mais tarde se Deus permitir. Para já gostava de vos mostrar o novo vídeo de apresentação da igreja (que podem verificar ai em baixo). Como ontem a Igreja da Lapa celebrou o seu 86º aniversário, aproveitámos também para renovar o seu site. Verifiquem aqui: http://igrejadalapa.pt/. O Senhor tem sido generoso no talento que que deu ao Hugo Moura e ao Tiago Ferreira, para a produção do vídeo e do site. Espalhem estas ligações.


terça-feira, junho 09, 2015

Ouvir
É um alívio Deus ser a favor da propriedade privada. Mas é ainda melhor Deus ir além da propriedade privada e chamar-nos a sermos contra a pobreza. O exemplo de Jesus ilumina-nos para colocar o 8º mandamento (não roubarás) em prática numa atitude de serviço e sacrifício.
O sermão de Domingo passado pode ser ouvido aqui (e downloadado aqui: http://igrejadalapa.pt/?q=multimedia/podcasts/o-oitavo-mandamento).


segunda-feira, junho 08, 2015

Brasil Knows Best - uma entrevista que dei ao Scream & Yell


De Portugal, conheça Tiago Cavaco

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por Bruno Capelas

Não é todo dia que se vê um roqueiro citar os Bad Brains e as cartas de São Paulo em uma mesma canção. Mas Tiago Cavaco, um dos principais nomes do rock português da atualidade, sempre esteve um pouco à margem dos que o cercaram. Criador da FlorCaveira (www.florcaveira.com), selo independente que desde 1999 ostenta o lema “Religião e Panque Roque” e lançou artistas como B Fachada, Samuel Úria e Pontos Negros, Cavaco é um roqueiro e letrista de mão cheia. Seu último lançamento, “Sou Imortal Até Que Deus Me Diga Regressa” (2015), é uma grande prova de seu fino trato com a palavra – dom que também exerce todos os domingos ao pregar na Igreja Batista da Lapa, na zona oeste de Lisboa, no qual é pastor.
Dono de títulos provocativos como “Ainda Não É Tempo de Morrer” ou “Sugiro a Minha Sepultura para Capital da Cultura”, Cavaco explica a ligação do rock com a fé de uma maneira simples – talvez com a facilidade de quem já teve de dissertar sobre o tema muitas vezes. “A minha vida é melhor quando ouço o The Clash dizendo que não vai desistir. Com isto, não quero defender que é evidente que o rock pede fé, mas que não será assim tão forçado dizer que o rock pode pedir esperança”, diz ele em entrevista por email, depois de ter se empolgado com a recente reportagem com o pesquisador Tiago Monteiro sobre a música portuguesa.
Para se entender a carreira de Tiago Cavaco, formado em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa, uma das mais modernas de Portugal, é preciso passar por uma pequena aula de nomes. Desde 1999 ele faz discos com a FlorCaveira, inicialmente com o nome artístico Guillul (que significa “cavaco” em hebraico). “Ficou difícil quando a maioria passou a conhecer o Tiago Guillul sem conhecer o Tiago Cavaco, por volta de 2010, na mesma época em que minhas responsabilidades na igreja começaram a ficar mais sérias”, explica. A partir daí, Cavaco passou a assinar discos como Tiago Lacrau (solo ou ao lado dos Lacraus) ou como o Rapaz do Sul do Céu, deixando seu nome de batismo para o cidadão Cavaco.
Apesar de acreditar que o rock nunca poderia ter nascido no mediterrâneo (“o português é um sujeito sereno e pouco dado à provocação”) e que “em Portugal você se torna um poeta quando ninguém percebe o que você quer dizer”, Cavaco acredita que tudo tem salvação. “Para que aconteça alguma coisa realmente boa com a cultura portuguesa, há muitas outras que primeiro têm de ser mortas e enterradas. Minha fé acha que a salvação pede primeiro a sua morte, e só depois a sua ressurreição”.
Na entrevista a seguir, Cavaco fala sobre “Sou Imortal Até Que Deus Me Diga Regressa”, lançado com a alcunha de Tiago Lacrau, e dispara farpas para a música portuguesa de ontem e de hoje. “Só vou me interessar mais pela música portuguesa quando uma grande parte dela for destruída pelos seus próprios músicos”, diz. Considerado pela crítica como um dos responsáveis pela volta da canção lusa em português, o criador da FlorCaveira dá de ombros: “Não canto em português para louvar a cultura portuguesa. Canto em português porque sou português. É como ser filho dos meus pais – é um fato e acabou-se”. Então, vamos a isto.
Lacrau, Cavaco ou Guillul? Qual a diferença entre os três Tiagos com o qual você se apresenta ao público?
Era fácil quando apenas uma pequena minoria que conhecia o Tiago Cavaco conhecia o Tiago Guillul. Ficou difícil quando a maioria passou a conhecer o Tiago Guillul sem necessariamente conhecer o Tiago Cavaco. Em 2010, senti que a figura musical Guillul não deveria atrapalhar o cidadão Cavaco, e por isso tentei convergi-los largando o Guillul. Foi na mesma época em que as minhas responsabilidades na igreja começaram a ficar mais sérias. Por outro lado, manter nomes paralelos (como Tiago Lacrau ou Rapaz do Sul do Céu) permitia continuar a fazer discos mais subterrâneos – que já existiam antes do Guillul – ganhar mais notoriedade. A questão dos nomes ainda não está completamente resolvida dentro de mim, mas, no geral, aplico o Lacrau a discos mais rock e o Rapaz do Sul do Céu a discos mais hip-hop. E Guillul que descanse em paz (apesar de, ironicamente, as pessoas do meio musical continuarem usando o nome).
E por que este “Sou Imortal Até Que Deus Me Diga Regressa?” é assinado com Lacrau?
Porque este é um disco claramente de rock, não muito distante do que faço com os Lacraus.
O Amamos Duvall, teu último projeto, era bastante ousado, cheio de samplers e fusões com o rap. Este “Sou Imortal”, por outro lado, soa bem cru como o melhor do punk-rock. Por que esse retorno a algo mais básico?
Sou um músico de ciclos. Há fases que ando mais excitado com o hip-hop, há outras que ando mais excitado com o rock. Sendo amores que permanecem para sempre, por vezes um pesa mais que outro na hora de gravar um disco novo. O “Amamos Duvall” foi uma oportunidade única de explorar o trânsito entre maquetes gravadas em casa e a sua transformação em estúdio – nesse sentido, é um disco para experimentar coisas. O “Sou Imortal…” é um disco de canções básicas gravadas de um modo básico também, de não pensar tanto em produção, mas mais em registrar rápido.
“Sugiro a Minha Sepultura para Capital da Cultura” é talvez a minha música favorita do disco. Como ela nasceu, e por que ela tem este sentimento tão forte quanto à realidade portuguesa?
Sou um português estrangeirado. Um protestante em Portugal nunca consegue ser português de maneira normal. Os meus sentimentos perante a cultura portuguesa (independentemente dos conceitos que temos sobre ela) são bastante ambíguos: por um lado ela pertence-me, por outro não. Daí que sinta que o melhor que posso fazer pela cultura portuguesa seja enterrá-la. No fundo, tem a ver também com a minha fé cristã, de achar que a salvação de uma coisa pede sempre primeiro a sua morte, e só depois a sua ressurreição. Para que aconteça alguma coisa realmente boa com a cultura portuguesa, há muitas outras que primeiro têm de ser mortas e enterradas. Uma das coisas que me irrita em Portugal é que você se torna um poeta quando ninguém percebe o que você quer dizer. A lógica é que se ele fala difícil, é porque deve ser muito inteligente. Ser poeta em Portugal é mais um estatuto intelectual que um trabalho concreto. Não suporto isso.
Aqui no Brasil, parece-nos curioso às vezes a fusão da religião com o rock proposta pela FlorCaveira - em “Ainda Não é Tempo de Morrer”, por exemplo, você cita o Bad Brains ao lado das epístolas de São Paulo, e faz menção ao Kiss na faixa-título. Como é que esta ligação funciona para você? O rock pode ser a canção da fé?
Para mim o rock tem um lado fundamental de libertação. Não de libertação política, mas de libertação individual. Mesmo quando era criança, sempre reagi ao rock porque sentia que um rocker podia fazer em palco aquilo que na vida normal não poderia fazer. E isso é fantástico. Mas, por outro lado, a partir do momento em que te libertas em palco, também te libertas nos ouvidos dos que te ouvem: elas podem ouvir aquilo que tu queres dizer (mesmo que não concordem contigo). É por isso que acho que o rock poder ser a canção da fé. Hoje as músicas que mais me continuam a comover são as músicas que afirmam esperança contra tudo e contra todos. Ainda nesta manhã, ouvia o The Clash a cantar “I’m not down, I’m not down” e continuo a ter dificuldade em explicar como é que a repetição dessas palavras em música me pode dizer tanto. A minha vida é melhor quando ouço o The Clash dizendo que não vai desistir. Com isto não quero defender que é evidente que o rock pede fé, mas que não será assim tão forçado dizer que o rock pode pedir esperança.
Ainda no tema religioso: imagino que boa parte do teu público e do público da FlorCaveira em Portugal não seja batista ou até mesmo religioso. Como vê a recepção das pessoas às suas mensagens pelo rock?
O português é um sujeito sereno e pouco dado à provocação. O rock nunca poderia nascer no mediterrâneo. A provocação é uma coisa das culturas protestantes onde a palavra realmente importa — as culturas católicas têm uma relação mais distante com a palavra e estão mais virados para a imagem. Logo, as pessoas tomam-me em grande parte como um provocador, como uma personagem estranha. Elas têm dificuldade em integrar no mesmo universo a crença na palavra (do cristianismo protestante) e o uso dessa crença na palavra como um ingrediente para fazer música.
“Prêmio Blitz”, por outro lado, mostra certa insatisfação com a crítica musical – algo que me lembra também “Senna”, dos Pontos Negros. Às vezes você acredita que o público (e especialmente a crítica) não entenda bem o seu trabalho?
A crítica musical em Portugal perpetua a serenidade católico-mediterrânica que é típica daqui. Os críticos portugueses sabem muito melhor procurar figuras que possam servir de mobília à pequena aldeia enquanto poetas do sítio do que ouvir discos e avaliá-los independentemente dos seus atributos sociológicos. A crítica descobriu a FlorCaveira e nunca soube lidar com ela porque procurou na FlorCaveira o que ela nunca foi: uma reprodução em pequena escala da mentalidade nacional. A FlorCaveira está-se nas tintas para criar novos Josés Mários Brancos ou novos Zecas Afonsos. Nós nunca fizemos música por causa deles (mesmo que eles nos possam inspirar aqui e ali). A FlorCaveira grava discos porque gosta de rock, não porque se sente na obrigação de dar mais poetas à cultura portuguesa. We couldn’t care less about that. Os críticos portugueses não percebem isto porque o credo deles é diferente do nosso. Somos de países diferentes, apesar de morarmos no mesmo. O “Prémio Blitz” é uma canção sobre o modo como tu consegues antecipar como a Revista Blitz escolhe discos preferidos, não pelo que eles valem, mas por causa do que esses discos permitem enquanto criam uma nova decoração da aldeia de sempre.
És um pastor batista em um país de católicos, assim como és um fã de punk em um país conservador e foste um religioso numa faculdade de Comunicação. À distância, me parece que sempre esteve um pouco à margem de tudo. Como se sente quanto a isto?
Talvez exista o mito do inadaptado como o herói pós-moderno. Eu não tenho paciência para heróis pós-modernos, mas é um fato que vivo nos lugares sem nunca me sentir completamente em casa neles.
“Sou Imortal…” é também um disco de participações de amigos. Como é que você se juntou a estes compositores no disco – e em especial, ao Tiago Bettencourt e ao Manuel Fúria?
Tenho duas maneiras de fazer discos quanto à presença de amigos: há discos que gravo sozinho, em recolhimento, e há aqueles que gravo chamando os amigos para qualquer coisa. O “Sou Imortal” pertence ao segundo tipo. O Tiago Bettencourt é um gajo incompreendido em Portugal e cuja maldição foi ter um hit enorme (com uma canção chamada “Carta”). Apesar de eu não ser um fã dos assuntos das canções do Tiago (ele escreve quase só sobre encontros e desencontros amorosos), acho que o Tiago é um escritor de canções – e eu também sou. Tenho vindo a ganhar admiração por ele e nos tornamos amigos nos últimos anos. A canção que ele canta comigo é uma canção de amor e achei que ele ficava bem lá. O Manuel Fúria é mais que amigo, é um companheiro – e um irmão na fé. A minha vida não seria a mesma sem o Manel e por isso estou sempre pronto para meter o Manel nos meus discos.
Qual é a percepção que tens da música brasileira? Em uma entrevista ao Scream & Yell anteriormente, falaste sobre os Novos Baianos, e no disco novo, tens uma música que versa sobre Tom Zé. Como funciona isto para ti, afinal?
Amo a música brasileira. Os primeiros brasileiros que amei musicalmente foram os Ratos de Porão. Samplei-os (com a autorização deles!) na canção “Contigo Sou Sempre Agradecido” (modéstia à parte, uma das minhas melhores canções) e tenho super orgulho disso. Depois veio o disco “Caetano e Chico Juntos e ao Vivo”, que mudou a minha maneira de perceber como a música poderia ser. E depois continuo incessantemente a ouvir e a descobrir coisas novas, mesmo quando são antigas. O Tom Zé é um dos meus heróis, seguido pelo Jorge Ben e do Tim Maia. Recentemente descobri o disco “Alucinação”, do Belchior – que maravilha! Viva o Youtube!
Em meados dos anos 2000, quando a FlorCaveira surgiu, o selo foi saudado como um dos principais responsáveis pelos músicos portugueses voltarem a cantar em português. Quase dez anos depois de tudo isto, como vê esse momento? Cantar na língua pátria é tão importante assim?
Como regra, ser português e cantar em inglês me parece algo tolo – haverá uma ou outra exceção que aprecio. Não canto em português para louvar a cultura portuguesa. Canto em português porque sou português – é a minha língua independentemente da relação que tenho com ela. É como ser filho dos meus pais – é um fato e acabou-se. A geração dos anos 80 que fez o rock cantado em português percebia isto melhor que todos os jovens que vieram a seguir. Cantar rock em português não tem a ver com seres embaixador da tua pátria, tem a ver com quereres cantar com o que tens à tua disposição. Portugal te deu a língua, os anglo-saxónicos te deram o ritmo… Pronto! A ironia é que a geração da música portuguesa dos anos 90 mandou a língua às favas, mas quis ser diplomata nacional. Tu tens cantores portugueses que cantam em inglês e que acreditam que o Estado lhes deveria dar subsídios porque estão representando a nação no estrangeiro. A FlorCaveira continua a ser a única seta que a geração dos anos 80 lançou para o futuro – todo o resto (cantando em português ou inglês) perpetua a maldição do poeta enquanto herói nacional. A geração dos cantores de intervenção dos anos 70 nesta matéria só inspirou oportunistas.
Ainda sobre a FlorCaveira: o selo foi responsável por fazer aparecer alguns dos mais interessantes artistas da música pop tuga dos últimos anos, como os Pontos Negros, o B Fachada ou o Samuel Úria, além de servir de exemplo para outras pequenas editoras fonográficas, como a Azáfama ou a Amor Fúria. Como se sente quanto a isto?
É uma coisa excelente. Por exemplo, o Samuel Úria é o artista mais completo de Portugal (porque faz canções e sabe dar show) e os Pontos Negros estão parados, mas o rock que eles fizeram continua a mexer. A Amor Fúria é uma editora irmã nossa e com quem temos trabalhado no último ano. O meu último disco é co-edição FlorCaveira e Amor Fúria e criamos o Clube do Crime Eléctrico, que são concertos mensais em Lisboa no clube de rock Sabotage. A Azáfama é a casa de amigos nossos como o Martim e os Três Por Cento e me sinto elogiado se de alguma maneira associarem o que eles fazem bem ao que nós fazemos bem.
Como vês a atualidade da canção pop portuguesa? Que nomes gostaria de indicar para o ouvinte brasileiro, hoje?
No geral a atualidade da canção pop portuguesa continua a ser uma chatice. Se houve pessoas que acharam que a FlorCaveira ia salvar a música nacional, foi só porque não perceberam que a música que fazemos não pertence a esta nação. É fácil pensar que a FlorCaveira foi uma moda que passou, mas o que passou não foi a FlorCaveira. A FlorCaveira já existia antes das pessoas darem conta da sua existência. O que passou foi o breve momento em que as pessoas deram conta da existência da FlorCaveira. E, num certo sentido, ainda bem. Com isto não quero soar ingrato: gosto do reconhecimento dos outros. Mas o negócio da FlorCaveira é fazer rock e canções que servem para a vida das pessoas fazer mais sentido quando as ouvem. O negócio da música pop portuguesa é, a pretexto das canções, fazer com que a música pop portuguesa faça sentido. Só me vou interessar mais pela música portuguesa quando uma grande parte dela for destruída pelos seus próprios músicos. Para isso, verifiquem o Bruno Morgado, o Filipe da Graça, o Deserto Branco, o Éme, o Cão da Morte, os HMB, os Chibazqui, e todos aqueles que, para fazerem algo novo, destroem alguma coisa.

 

quarta-feira, junho 03, 2015

Rostos desimpedidos

Voltar a andar de transportes tem-me devolvido à condição de pessoa insignificante que sou. Não conduzo o meu caminho, não oiço a minha música, não me sento onde quero. Curiosamente, tem proporcionado que ore o Pai Nosso com muito mais propriedade.

Claro que podia começar a fintar isto com dispositivos digitais. Poderia ir a ouvir música que quero ou até a ver filmes, como hoje é possível fazer no comboio. Mas Deus deu-me uma vergonha muito útil: sinto-me embaraçado quando mexo muito no telemóvel porque ver os rostos das pessoas desconhecidas à minha volta desimpedidos da tecnologia me parece uma bênção que devo aproveitar. É como se o facto de sermos transportados ao mesmo tempo para um lugar semelhante se tornasse uma comunhão espiritual possível.

terça-feira, junho 02, 2015

Ouvir
O valor da pureza sexual não tem a ver com a actividade que não se pratica mas com a personalidade que se é.
O sermão de Domingo passado, sobre o 7º mandamento (Não adulterarás), pode ser ouvido aqui (e o download pode ser feito aqui - clicando em cima de "aqui").