Não odiar a Isabel e o Miguel
Só quando olharmos para algumas pessoas como nossos inimigos é que podemos, enquanto cristãos, orar por elas pedindo a Deus que nos faça ter-lhes amor. Quero ilustrar isto com um exemplo pessoal.
Ontem gastei algum tempo a ouvir e a picar na net as intervenções da Isabel Moreira acerca da Iniciativa Legislativa de Cidadãos promovida por pessoas como eu, que vêem o aborto como um mal. Acabei a espreitar o Miguel Vale de Almeida também. Ora, este exercício feito sem cuidados é tóxico para a minha alma. Isto porque, e quero ser cuidadoso a afirmar isto, a Isabel Moreira e o Miguel Vale de Almeida não primam pela consistência na discussão de um assunto como o aborto. Digamos que há pessoas que metem o mundo a nascer em Maio de 1968 e que, por causa disso, tratam qualquer convicção ligada ao período que terminou antes como histórias de fantasmas. Ora, eu consigo perceber que as minhas convicções sejam pré-históricas aos olhos da Isabel Moreira e do Miguel Vale de Almeida. Mas o ponto não é esse. Eles não vencem uma discussão por acusarem os seus oponentes de serem retrógrados. Quando muito, poderão vencer os seus oponentes se provarem que eles estão errados. E,
guess what?, depois de quase meio século depois de 68, há pessoas que ainda não estão convencidas dos méritos racionais do aborto. Em democracia, isto significa que a discussão não termina pelo facto de a legislação mudar. Em democracia isto significa que a discussão pode levar à mudança da legislação, desde que os cidadãos assim decidam. É para isto que cá estou.
Deal with it.
Os cristãos não podem ter medo do mau uso da retórica (sim, porque a retórica é uma coisa boa - vão ler a "Hermenêutica Retórica" de Manuel Alexandre Júnior, professor catedrático da Universidade de Letras de Lisboa para se enturmarem com o assunto). Se os nomes que me chamam fossem determinantes para as posições que tomo, acho que a esta hora estaria a espalhar a
hashtag #IsabelMoreiraÉsAMinhaPadroeira porque, de facto, ela é quem mete mais respeitinho no Parlamento quando fala (juro que tive medo que ela soubesse onde eu moro depois de ter visto a sua intervenção). Acontece que os cristãos não têm medo das palavras porque as palavras não são instrumentos de morte mas de vida: Deus criou o universo a partir da palavra. De cada vez que a Isabel Moreira me tenta meter medo com as suas palavras, eu oro uma prece que diz assim:
"obrigado, Senhor, porque fizeste das palavras fábricas de pessoas e não trituradores delas." E é precisamente porque Deus fez das palavras fábricas de pessoas que vou continuar a usar as minhas para defender a existência das pessoas ameaçadas pelo aborto. Já escrevi neste texto
deal with it?
Mas comecei pelo lugar onde quero acabar. Só quando olharmos para algumas pessoas como nossos inimigos é que podemos, enquanto cristãos, orar por elas pedindo a Deus que nos faça ter-lhes amor. Ontem à noite pedi a Deus que não me faça odiar a Isabel Moreira e o Miguel Vale de Almeida. Pedi a Deus que me faça ter-lhes amor precisamente pelo facto de serem meus inimigos. Não é fácil mas é o que o meu Salvador Jesus me mandou fazer: amar os meus inimigos. Se eu achasse que eles são meus amigos, não só lhes faltava ao respeito (nem sequer nos conhecemos!) como colocava dentro de mim mesmo a origem dos meus bons sentimentos, procurando gostar deles independentemente de eles defenderem uma causa que para mim é maligna. Um cristão defende uma visão antropológica radical que coloca em Deus a origem dos seus bons sentimentos. Por isso é que um cristão não pode ter a pretensão de ser amigo de toda a gente - porque não deve gostar das pessoas independentemente do modo como elas se relacionam com Deus. Um cristão é chamado a uma coisa diferente que é amar os seus inimigos, não a achar que todo o bicho careta é seu compincha.
É a visão socialista abraçada pelo Miguel Vale de Almeida e pela Isabel Moreira que, descartando Deus, coloca o ser humano como a origem e finalidade dos seus próprios bons sentimentos. Por isso é que o socialismo acredita em causas humanitárias porque a humanidade, desde que bem encaminhada, é um progresso imparável em direcção à fraternidade universal. Eu compreendo o excesso retórico da Isabel Moreira porque ela não suporta a ideia de haver retrocessos nesta digressão (a ILC em causa é um regresso à barbárie). Os cristãos serão, como o Miguel Vale de Almeida tem repetido, os "fundamentalistas", os "fascistas", e todos os istas que nos possam atirar para esse longínquo e obscuro período terminado em em Abril de 1968. Ironicamente, a visão mais optimista da natureza humana é aquela que acaba a tratar pior todas as pessoas que não a têm (o Miguel Vale de Almeida disse que ia tomar nota de todas as mulheres do PSD e do CDS que votassem favoravelmente à ILC - como classificamos um gesto destes?).
Por que é que o cristianismo nos chama a amar os nossos inimigos? Porque relativiza o mal que eles nos podem fazer? Não. O mal que os nossos inimigos nos podem fazer é precisamente aquilo que os classifica como inimigos. O cristianismo chama-nos a amar os inimigos porque, realmente, ninguém começou a sua relação com Deus de outra maneira: ninguém nasceu amiguinho de Deus. É porque Deus nos adopta enquanto filhos num gesto de sacrifício (morrendo Cristo na cruz), quando nós éramos ainda seus inimigos, que nós não podemos olhar para a inimizade dos nossos inimigos como ponto final - quem sabe se Deus não vai fazer com eles o que fez connosco?
Finalizando. Miguel e Isabel: oro por vocês. Oro por mim quando oro por vocês. Oro pelo nosso país quando oro por mim orando por vocês. Parece que vamos ter de lutar uns contra os outros. Que assim seja. No meu coração sei que tem de haver amor. No vosso, é convosco. Não é fácil existir amor no meu coração. Mas ninguém disse que era suposto ser. Vocês também não se meteram na política para passar férias. Baza!