Sayão ajuda-nos a pensar melhor
Se Deus quiser, dentro de alguns dias vou estar a fazer uma pequena entrevista ao Pr. Luiz Sayão na Conferência Bíblica de Água de Madeiros. Para quem não conhece, o Pr. Luiz Sayão é um teólogo e pastor baptista brasileiro, tendo no hebraico uma das suas áreas de especialização. É difícil ouvi-lo e não guardar a experiência na memória. Desde que o fiz no ano passado, que o tenho citado nuns quantos sermões, sobretudo pela lição que dele colhi acerca da necessidade do descanso. Foi o Pr. Luiz Sayão que melhor me fez entender que não acolher o Domingo como um dia de repouso é, no fundo, não abdicarmos de nos comportarmos como se fôssemos omnipotentes. Quem manda nesta geringonça é Deus por isso descansar é uma questão elementar no cristianismo.
Acabei de ler um pequeno livro dele chamado "Cabeças Feitas - Filosofia Prática Para Cristão". É um volume de menos de 80 páginas que é mais uma aula que propriamente um livro. Mas é uma aula útil. E lê-se num instante. O objectivo central é contrariar a tendência persistente de anti-intelectualismo que grande parte do meio evangélico brasileiro continua a acolher. Os portugueses podem dizer, com razão, que o mesmo nos assiste. Mas temos de conceder que a circunstância brasileira é mais intensa. O Brasil, que é quase um continente, mete-nos debaixo do braço.
Ainda assim quero fazer um à parte. É fácil achar que os evangélicos são pessoas de pouco cérebro. As caricaturas assim nos informam. Mas esta é uma simplificação que, virtualmente, encaixa em qualquer tradição cristã. Se, por exemplo, nos especializássemos em monitorizar o que dizem aqueles que se dizem católicos romanos será que encontraríamos posições esclarecidas acerca da fé que dizem professar? Sinceramente, não só duvido que fosse diferente como, perdoarão a minha honestidade, seria ainda pior. O catolicismo romano, com muito espaço para "praticantes" e "não-praticantes" é terreno ainda mais fértil para para uma ignorância que também pode passar por anti-intelectualismo. Os evangélicos não estão sós na tarefa de precisarem de pensar mais.
Quem lê o Pr. Luiz Sayão rapidamente repara que esta é uma das suas vocações: pôr os cristãos a pensar mais. Os seus livros não procuram um aprofundamento das questões a um nível académico. Os seus livros procuram um aprofundamento das questões ao nível do cristão vulgar. Não é uma tarefa fácil mas é, sem dúvida, uma tarefa muito necessária. Com "Cabeças Feitas - Filosofia Prática Para Cristão" o objectivo continua a ser esse:
"a ignorância torna-se factor cúmplice da exploração do homem pelo homem. (...) [e] Se não compreendermos o homem de hoje e não soubermos relacionar a fé cristã com a cultura e a maneira de entender a realidade perderemos a batalha que Deus nos tem dado (pág. 6)."Sayão começa por reconhecer que a única vez que a palavra "filosofia" aparece na Bíblia é em Colossenses 2:8 (
"Tenham cuidado para que ninguém os escravize a filosofias vãs e enganosas, que se fundamentam nas tradições humanas e nos princípios elementares deste mundo, e não em Cristo."). E nessa única vez o contexto não é positivo. Isso não quer dizer que a Bíblia tem uma perspectiva negativa da filosofia. A prova é que noutras ocasiões o Apóstolo Paulo demonstra conhecimento das correntes filosóficas do seu tempo para com elas poder dialogar (Actos 17:8). Adicionalmente, o cristianismo não se desenvolveu historicamente levantando uma bandeira contra a filosofia. Quanto estudamos os últimos dois milénios reconhecemos sem dificuldade que grande parte dos filósofos que influenciou decisivamente o pensamento ocidental se identificou com a fé cristã. Ser cristão no Século XX e no Século XXI e ter má vontade com a filosofia é tratar muito mal todos os outros séculos.
A relação entre teologia e filosofia não só é possível como, para os cristãos, inseparável. Um cristão não ganha coisa alguma por achar que a Bíblia tem a pretensão de nos ensinar acerca de todos os assuntos.
"A Bíblia não foi escrita para revelar todas as coisas. Ela nos fala principalmente daquilo que Deus nos quis revelar sobre seu plano de redenção da humanidade (pág. 11)." Nesse sentido, cabe às duas complementarem-se, reconhecendo cada uma o objecto para cada qual foi chamada. Claro que isto não resolve todas as questões que podem nascer desta relação, mas ao menos ajuda a que teologia e filosofia possam viver num estado de amizade e não guerra.
De seguida, Sayão faz uma digressão pelos terrenos essenciais da filosofia - pelas questões da lógica (os raciocínios de dedução e indução); as questões da teoria do conhecimento (quais são e como actuam as nossas faculdades cognitivas, qual a natureza do conhecimento, e qual a relação do conhecimento com a realidade; bem como as escolas históricas de racionalistas e empiristas); as questões da metafísica e da cosmologia (por que é que as coisas são em vez de não serem?; ser alguma coisa representa a essência de alguma coisa independente de nós?; bem como o abandono histórico da metafísica após Kant); as questões da ética (a ética é intrínseca à existência humana ou uma construção possível dela?; bem como os desenvolvimentos históricos das teses teleológicas, deontológicas ou situacionais); as questões da linguagem (a relação entre o conceito significante e a sua expressão fonológica de significado); as questões estéticas (a arte como
mimesis, como criação, como pedagógica, como metafísica, ou como autónoma); as questões religiosas; e as questões históricas.
Depois executa um esboço histórico da filosofia bem curto e conciso. Finalmente, aplica a pertinência do assunto ao tempo de agora. A nossa tarefa de pensar bem tem de se adequar ao facto de vivermos numa cultura pluralista, com apreço pelo irracionalismo (não no sentido de ser uma cultura que promove o absurdo mas no sentido de ser uma cultura que duvida da razão), pelo determinismo, pelo misticismo, pela alienação erótica, pelo individualismo, pelo consumismo, e pelo cinismo. Por fim, elabora algumas propostas práticas para os cristãos terem uma cabeça mais saudável.
Que propostas são essas? Em primeiro lugar, os cristão precisam de reconhecer que, não sendo racionalistas, acreditam que a razão foi criada por Deus para ser usada por nós. Em segundo lugar,
"precisamos de reconhecer as necessidades de agora para não pregarmos para quem já morreu (pág. 52)". Em terceiro lugar, precisamos de resgatar a ética na nossa fé. Em quarto e último lugar, precisamos de uma postura de vida e um atitude sábia (
"algumas coisas que fazemos para Deus, nem o diabo aceitaria (pág. 53)"). Temos muito trabalho para fazer para termos cabeças a pensar melhor. A ajuda de Sayão é um bom ponto de partida.