Laudato Si do Papa Francisco
Não há melhor mês que Agosto para ler uma encíclica papal acerca do ambiente. Estamos mais soltos para apreciar a natureza e, nesse embalo, provavelmente mais soltos para apreciar a própria encíclica. Acho que senti as duas dinâmicas durante o tempo que investi a ler "Louvado Sejas (Laudato Si)" do Papa Francisco. Mantenho as minhas palavras: acho disparatado um pastor protestante em Portugal que não liga ao que o Papa diz. Para todos os efeitos, antes de Portugal ser Portugal já cá estava Roma. Por isso, a melhor divergência que podemos ter com a Igreja Católica Romana passa pela atenção ao que ela diz. Também porque, como se tornará óbvio, há muita e boa convergência a assinalar. Como não é conveniente ir ponto por ponto, gostava de partilhar onde o Papa acerta e onde o Papa não acerta. Comecemos pelos primeiros. Para quem pense:
"quem é este chavalo para achar que tem alguma coisa a dizer sobre o que o Papa diz?", respondo:
"é um chavalo protestante. Os protestantes protestam." That's the way things are. Tive muito trabalhinho para agora vos dar isto.
1. O Papa acerta quando explica que o lixo na terra começa sempre por ser lixo dentro dos homens
A afirmação clara que a degradação física do planeta é necessariamente consequência de uma degradação moral (no ponto 4 e um pouco por toda a encíclica). A verdadeira ecologia não pode ser uma qualidade fora de uma convicção espiritual e religiosa. Os meus companheiros católicos romanos perdoarão a minha franqueza, mas o Papa Francisco ainda acerta mais na mouche quando cita o melhor Papa vivo, que é Bento XVI:
"o desperdício da criação começa onde já não reconhecemos qualquer instância acima de nós, mas vemo-nos unicamente a nós mesmos." A verdadeira mudança na qualidade do ambiente externo tem de começar na qualidade do ambiente interno dos homens, "caso contrário estaremos apenas a tratar dos sintomas" (no ponto 9). E mais:
"uma ecologia integral requer abertura para categorias que transcendem a linguagem das ciências exactas ou da biologia e nos põem em contacto com a essência do ser humano" (no ponto 11). E mais no ponto 111:
"Buscar apenas um remédio técnico para cada problema ambiental que aparece é isolar coisas que, na realidade, estão interligadas e esconder os problemas verdadeiros e mais profundos do sistema mundial."
2. O Papa acerta quando fala do Céu para explicar o que corre mal na terra
Só a partir desta ecologia integral (expressão muito e felizmente repetida), provida de uma componente fundadora que é espiritual, é que uma postura de
"dominador, consumidor ou mero explorador dos recursos naturais" (no ponto 11) pode ser, por si, errada. Ou seja, e aqui as palavras são minhas e não do Papa, se não existir um plano mais justo e superior àquele onde estamos, enquanto criaturas, por que razão é que as nossas acções sobre o ambiente podem ser tidas como certas ou erradas? Ou há um criador, moralmente superior às criaturas, ou a ecologia tem a espessura ética de um fio de cabelo.
"Não se pode propor uma relação com o ambiente, prescindindo da relação com as outras pessoas e com Deus. Seria um individualismo romântico disfarçado de beleza ecológica e um confinamento asfixiante na imanência (no ponto 119)."
3. O Papa acerta quando esclarece que é o que é bom no Céu que torna melhor a nossa vida na terra
Esta diferenciação ética entre criador e criaturas não é uma fiscalização fria e inexpressiva. Antes pelo contrário, é o que nos convida a experimentar o mundo como
"algo mais do que um problema a resolver; um mistério gozoso que contemplamos na alegria e no louvor" (no ponto 12). Os contornos definidos que separam criador das criaturas e criação não são um pretexto para nos isolarmos, mas uma possibilidade de prazer diferenciado e ajustado para nós.
4. O Papa acerta quando demonstra que para falar é preciso fazer antes o trabalho de casa
É verdadeiramente assinalável por parte do Papa Francisco uma vontade em perceber do assunto da ecologia junto de pessoas que sabem tecnicamente mais, mesmo quando não concordam teologicamente com ele. Quando se lê a encíclica, nota-se que há muito trabalho de casa a ser feito no Vaticano, com atenção prestada a estudos, à voz dos cientistas, e por aí fora. O mesmo se aplica com alguns piscares de olho a tradições religiosas não-católicas.
5. O Papa acerta quando organiza o seu trabalho
O estabelecimento de 10 eixos para e encíclica, apesar de se prestar a discussões localizadas, é muito útil e competente: 1) a relação íntima entre os pobres a e a fragilidade do planeta, 2) a convicção de que tudo está interligado no mundo, 3) a crítica do novo paradigma de poder vindo do avanço tecnológico, 4) o convite ao entendimento alternativo da economia e do progresso, 5) o valor próprio de cada criatura, 6) o sentido humano da ecologia, 7) a necessidade de debates sinceros, 8) a grave responsabilidade da política internacional, 9) a cultura do descarte, e 10) a proposta de um novo estilo de vida.
6. O Papa acerta quando recupera a crença na existência da sabedoria humana
Trazer a questão da sabedoria para a ecologia é dos passos mais corajosos de toda a encíclica. De certeza que irritará os mais materialistas, que materializam tudo excepto coisas simples como a diferença entre ser sábio de ser tolo. Ao mesmo tempo, o Papa Francisco sabe que a omnipresença de informação faz parte da grande poluição dos nossos dias. Não é só o cinzento da atmosfera das grandes cidades, é também o cinzento da atmosfera dos nossos corações soterrados e distraídos em informação digital.
"Gera-se um novo tipo de emoções artificiais, que têm a ver mais com dispositivos e monitores do que com pessoas e a natureza" (no ponto 47).
7. O Papa acerta quando afirma que a existência de pessoas é um facto positivo
Para os que fogem do incómodo assunto de nascerem seres humanos, eis Francisco em grande forma:
"Em vez de resolver os problemas dos pobres e pensar num mundo diferente, alguns limitam-se a propor uma redução de natalidade" (no ponto 50). Cínicos,
run for cover! Por outro lado, a vida humana é colocada em causa com o apoio de muitos que se acham os maiores defensores da criação. Dá-lhe com força, Francisco!
"Às vezes nota-se a obsessão de negar qualquer preeminência à pessoa humana, conduzindo-se uma luta em prol das outras espécies que não se vê na hora de defender igual dignidade entre os seres humanos" (no ponto 90).
8. O Papa acerta quando diz que vale a pena conversar mais
É necessidade pôr as necessidades mundiais a conversar umas com as outras. As dos ricos do Norte com as dos pobres do sul.
"As exportações de algumas matérias-primas para satisfazer os mercados no Norte industrializado produziram danos locais [no Sul]" (no ponto 51).
9. O Papa acerta (e muito!) por falar de pecado (ainda que timidamente)
O Capítulo II chama-se "O Evangelho da Criação" e é aquilo que provavelmente mais se aproxima de uma hamartiologia (o Priberam não tem unhas para esta guitarra). O que é que hamartiologia quer dizer? Hamartiologia é o doutrina do pecado. O Papa Francisco explica bem que:
"a existência humana se baseia em três relações fundamentais intimamente ligadas: as relações com Deus, com o próximo e com a terra. Segundo a Bíblia, estas três relações vitais romperam-se não só exteriormente, mas também dentro de nós. Esta ruptura é o pecado. A harmonia entre o Criador, a humanidade, e toda a criação foi destruído por termos pretendido ocupar o lugar de Deus, recusando reconhecermo-nos como criaturas limitadas. Este facto distorceu também a natureza do mandado de «dominar» a terra (Génesis 1:28) e de a «cultivar e guardar» (Génesis 2:15). Como resultado, a relação originariamente harmoniosa entre o ser humano e natureza transformou-se num conflito (Génesis 3:17-19) (no ponto 66)." É mesmo isto! O domínio que nos foi dado foi tornado pelo nosso pecado num abuso. Não é possível fazer ecologia a sério sem esta dose rudimentar de teologia. O Papa ajuda-nos a compreender esta lição.
"A crise ecológica é um apelo a uma profunda conversão interior (pág. 217)."
10. O Papa acerta quando faz do descanso uma questão ecológica
O Papa recupera também o Sabbath como parte de uma ecologia integral. O merecido descanso que a natureza nos pede, não pode ser um merecido descanso que negamos a nós próprios.
"O ser humano tende a reduzir o descanso contemplativo ao âmbito do estéril e do inútil, esquecendo que deste modo de tira à obra realizada o mais importante: o seu significado (no ponto 237)."
11. O Papa acerta quando distingue criação da natureza
"Na tradição judaico-cristã, dizer «criação» é mais do que dizer natureza, porque tem a ver com um projecto do amor de Deus, onde cada criatura tem um valor e um significado" (no ponto 76). E logo a seguir, no ponto 78, vai ao cerne da questão:
"o pensamento judaico-cristão desmistificou a natureza. Sem deixar de a admirar pelo seu esplendor e imensidão, já não lhe atribui um carácter divino. Deste modo, ressalta ainda o nosso compromisso com para com ela."
12. O Papa acerta quando lembra que o melhor do mundo não exclui a teodiceia
Teodiceia é a doutrina que trata de como um Deus bom pode permitir a existência de mal no mundo que criou (está no Priberam uma definição mais fraquinha). O Papa aponta a complexidade de um mundo que pede que invistamos nele,
"onde muitas coisas que consideramos males, perigos ou fontes de sofrimento, na realidade fazem parte das dores de parto que nos estimulam a colaborar com o Criador (no ponto 80)." Esclarecimentos destes mostram-nos as intersecções entre hamartiologia e ecologia.
12. O Papa acerta ao mostrar que o trabalho já existia no Paraíso
O Papa Francisco aplica as lições do mandato cultural de Génesis 1:28, um assunto muito frequente nos púlpitos protestantes, que pede pela nossa:
"capacidade de reflexão, o raciocínio, a criatividade, a interpretação, a elaboração artística, e outras capacidades originais [que] manifestam uma singularidade que transcende o âmbito físico e o biológico" (no ponto 81). E mais:
"A interpretação do conceito de ser humano como senhor do universo é entendê-lo no sentido de administrador responsável (no ponto 116)."
13. O Papa acerta quando diz que a lógica de tudo é Cristo
Há uma razão para a existência da criação:
"A meta do caminho do Universo situa-se na plenitude de Deus, que já foi alcançada por Cristo ressuscitado, fulcro da maturação uinversal" (no ponto 83). Tudo o que existe, existe em função da existência de Cristo.
That's it! Por causa disso, no ponto 85 a natureza ocupa uma função é traduzir a existência de Deus (como explica Romanos 1).
14. O Papa acerta quando percebe que sem Trindade não há nada para ninguém
A nota trinitária no ponto 99 e 100 é fantástica:
"Uma Pessoa da Santíssima Trindade inseriu-se no universo criado, partilhando a própria sorte com ele até à cruz. (...) Assim, as criaturas deste mundo já não nos aparecem como uma realidade meramente natural, porque o Ressuscitado as envolve misteriosamente e guia para um destino de plenitude. As próprias flores do campo e as aves que Ele, admirado, contemplou com os seus olhos humanos, agora estão cheias da sua presença luminosa." No ponto 238 diz que é preciso
"ler a realidade em chave trinitária".
15. O Papa acerta quando diz que a tecnologia pode ser um ídolo
O Papa deixa claro que o desenvolvimento da tecnologia é uma bênção divina. Mas aponta prudência porque
"é preciso reconhecer que os produtos da técnica não são neutros, porque criam uma trama que acaba por condicionar os estilos de vida e orientam as possibilidades sociais na linha dos interesses de determinados grupos de poder" (no ponto 107). Esta é uma recomendação que precisamos todos de ouvir, quando saltamos precocemente para novos hábitos tecnológicos apenas porque podemos. Por exemplo, os pais que viciam os seus filhos nos diabólicos
tablets, alguma vez pararam para pensar que o facto de poderem dar não tem de significar que devem dar? Nenhuma tecnologia é neutra. Os evangélicos, que desvalorizam as imagens, são talvez as maiores vítimas desta tragédia tecnológica. As nossas igrejas, originalmente orgulhosas da sua nudez iconográfica, parecem hoje Wortens de terceira categoria, com o seu desfile agreste de ecrãs, instrumentos musicais e powerpoints. Se eu fosse católico romano, faria xixi pelas pernas abaixo de tanto rir das piruetas que os Reformadores estão a dar no túmulo. O Papa, com razão, diz que
"a permanente novidade dos produtos se une a um tédio enfadonho (no ponto 113)". As igrejas evangélicas que hoje se consideram na ponta tecnológica são aquelas que ficarão demodé mais rapidamente. Têm um prazo muito apertado para estarem actuais. Amanhã já são
yesterday's news. Por outro lado, a bebedeira tecnológica dá-nos a ideia que podemos tudo o que nos passa pela cabeça:
"parece não ser possível, para uma pessoa, aceitar que a realidade lhe assinale limites (no ponto 204)."
16. O Papa acerta quando diz que não há ecologia sem família
No capítulo "Uma ecologia integral" Francisco explica que não é possível fazer bem às florzinhas ao mesmo tempo que se faz mal à família. O respeito à família é fundamental para um mundo cuidado. Para isto, é preciso libertar a família das possibilidades tecnológicas que a re-inventam:
"é necessário ter apreço pelo próprio corpo na sua feminilidade ou masculinidade, para se poder reconhecer a si mesmo no encontro com o outro que é diferente (no ponto 155)." Ou seja, se trato do meu corpo como ele me pertencesse, admitindo que lhe posso fazer o que bem quiser, acabo a levar a mesma lógica para o mundo. Não é à toa que os mais desequilibradamente ecologistas são ferozes defensores dos direitos LGBTQetc.
17. O Papa acerta quando denuncia a cientilatria
O Papa critica e com razão a arrogância dos cientistas e da academia no geral:
"é indispensável um diálogo entre as próprias ciências, porque cada uma costuma fechar-se nos limites da sua própria linguagem, e a especialização tende a converter-se em isolamento e absolutização do prórpio saber (no ponto 201)."
18. O Papa acerta quando aponta hábitos simples e urgentes
O Papa diz com razão que os cristãos são chamados a um estilo de vida diferente,
"profético e contemplativo, capaz de gerar profunda alegria sem estar obcecado pelo consumo" (no ponto 222). Sugere no ponto 227 que se ore antes (e depois) das refeições! Como é que é, meus amigos católicos? Quando vão começar a fazer o que vosso Papa diz? Eu já faço. E diz no ponto 237 que o Domingo é o dia preferencial para ir à missa por ser o dia do descanso. Meus amigos católicos que se rendem às facilidades dos sábados à noite, como é?
São 18 bons tiros! E no ponto 159 o Papa ainda arranja maneira de citar os Bispos portugueses. Não chega a ser um bom tiro mas quer ser, pelo menos, um tiro simpático. Prossigamos para os tiros ao lado (há uns quantos que parecem ser para outra carreira de tiro).
1. O Papa não acerta quando esquece alguma humildade
Dirigir-se
"a cada pessoa que habita neste planeta" (no ponto 3), apesar de compreender no contexto romano (com a sua fixação na qualidade do que é univesal), não deixa de ser presunçoso. Claro que é incontornável que a responsabilidade do que o Papa diz, enquanto líder religioso mundial, vai muito além daqueles que se assumem católicos romanos. Mas é quase como se o Papa sugerisse uma meta de omnipotência comunicacional. O que se torna tosco quando, por exemplo, não tive durante este tempo nenhum amigo católico a dizer-me que tinha lido a encíclica. Roma com as letras é assim: pomposa porque, no fundo, são poucos os que as lêem.
2. O Papa não acerta por apostar tanto em Francisco de Assis
A inspiração constante a partir de Francisco de Assis, como exemplo de desapego e generosidade, desequilibra frequentemente o tom para um semi-panteísmo. Os da Reforma Protestante sempre foram especialistas em estilhaçar os exageros telúricos a que Roma muitas vezes se presta. Abreviando muito: como Roma tende a enfatizar o pecado como uma coisa que acontece sobretudo na carne das pessoas (sobretudo no domínio do sensual), a cabeça das pessoas e a criação tornam-se áreas aparentemente mais desinfestadas de pecado. Por isso, mais facilmente Roma cai em idealizações acerca da pureza do campo e da pureza dos nossos cérebros (olá, lei natural!), ao passo que os protestantes orgulhosamente constroem cidades e malham na reputação da filosofia. Apesar de o Papa dizer com a cabeça que o problema não começa nos lugares mas em nós, é como se com o coração acabasse a sugerir que a terra, bem abraçada por nós, nos pode dar já o paraíso. Essa é uma das razões que tornam Francisco de Assis frequentemente difícil de aturar. Dá vontade de dizer: casa-te lá com os passarinhos e deixa o povo da cidade trabalhar em paz! Talvez haja uma romantização do campo exagerada em frase como:
"Não é conveniente para os habitantes deste planeta viver cada vez mais submersos em cimento, asfalto, vidro e metais, privados do contacto físico com a natureza" (no ponto 44).
3. O Papa não acerta quando resvala para o apocaliptismo
Dizer que a terra se está a tornar num caixote de lixo (no ponto 21) não merece de alguma qualificação quando nunca como hoje a terra foi tão apreciada e conhecida por um número tão elevado dos seus habitantes? E o mesmo se aplica ao desaparecimento de milhares de espécie vegetais e animais (no ponto 33). É verdade que hoje elas estão a deixar de ser visíveis. Mas é preciso dizer também que elas nunca foram visíveis para tantos como hoje. No ponto 163 diz que nos estamos a afundar
"numa espiral de auto-destruição".
4. O Papa não acerta quando se esquece de falar de pecado
O Papa diz compreensivelmente que
"Já se ultrapassaram certos limites máximos de exploração do Planeta, sem termos resolvido o problema da pobreza" (no ponto 27). Mas apetece perguntar de onde vem a expectativa que explorar o planeta nos leva necessariamente a ter a capacidade de acabar com a pobreza? Creio que é precisamente uma postura essencialmente materialista que nos pode levar a albergar essa esperança. Reparem, não estou a dizer que os cristãos não devam ter a determinação de fazer do progresso uma razão para o fim para a o pobreza. O que estou a dizer é diferente: é precisamente um pensamento materialista (que descarta Deus da equação) que traduz o aumento do poder tecnológico como a possibilidade de acabar com a pobreza. Ou seja, os cristão devem lembrar que não é aquilo que acontece fora do homem, nas suas capacidades tecnológicas, que resolve todos os seus problemas. É a componente espiritual que torna complexa a resolução de problemas que, desprovidos dessa dimensão, parecem de resolução automática. Talvez tenha sido por isto que Jesus nos disse que sempre teríamos pobres connosco.
5. O Papa não acerta quando demonstra que não fez o trabalho de casa antes de falar
O capitalismo é tornado um atalho para tudo o que está de errado com o mundo. Talvez pudéssemos levar este dogma mais a sério se, com a mesma proporção com que se lhe dá palmadas, também se lhe reconhecesse as ocasiões que merece levar palmas. O capitalismo não contribui nada para o desenvolvimento da tecnologia que permite conhecer o estado do ambiente e protegê-lo? O capitalismo não contribui nada para a fruição do planeta por aqueles que nele habitam? São apenas dois exemplos mais óbvios. Volto a insistir numa coisa que escrevo há anos: a antipatia católica romana com o capitalismo, mais do que uma rejeição filosoficamente sólida, é um ressentimento: o capitalismo é uma coisa que acontece entre os protestantes. Eu tento evitar estes
cheap shots, mas é difícil ouvir o Papa a malhar no capitalismo quando se intui o modo como Vaticano sai beneficiado por alguns dos aspectos menos inspiradores do sistema capitalista. Sou a favor que se dê palmadas no capitalismo, desde que, com a mesma razoabilidade, se lhe dê palmas quando se justifica (googlem para encontrarem católicos a apontar falhas no enquadramento teórico da leitura económica do Papa). O Papa, que tende a ser justamente detalhado em tantos aspectos, determinadamente vago sempre que fala em
"enormes interesses económicos internacionais" (ponto 38).
6. O Papa não acerta quando falha nos graus de parentesco
O Papa escreve no ponto 96 que
"em colóquio com os sues discípulos, Jesus convidava-os a reconhecerem a relação paterna que Deus tem com todas as criaturas" e cita para o efeito Mateus 11:25. Acontece que Mateus 11:25 não afirma semelhante coisa. O texto diz:
"Naquele tempo, respondendo Jesus, disse: «Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, que ocultaste estas coisas aos sábios e entendidos, e as revelaste aos pequeninos.»" Já noutras ocasiões tenho assinalado que em lugar nenhum das Escrituras se afirma que Deus é pai de todos as criaturas. Deus ser o criador de todas as criaturas é diferente de dizer é pai delas. O que as Escrituras explicam é que, mediante a fé em Cristo, Deus torna-nos filhos por adopção. Entre outros textos, o de Gálatas 4:4-7 explica explicitamente:
"Vindo a plenitude dos tempos, Deus enviou o seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei, para remir os que estavam debaixo da lei, a fim de recebermos a adopção de filhos. E porque sois filhos, Deus enviou aos nossos corações o Espírito de seu Filho, que clama: Abba, Pai. Assim, que já não és mais servo mas filho, e se és filho, és também herdeiro de Deus por Cristo." Dito de uma forma breve e objectiva: os filhos de Deus são aqueles que aceitam Cristo como Filho dele. Inferir além disto não tem qualquer suporte bíblico. No entanto, o catolicismo romano insiste nesta novidade sem suporte fundamentado. O povo, educado na ideia bonita mas sem base, bem diz que somos todos filhos de Deus. O problema é que não somos.
7. O Papa não acerta quando parece confundir cristianismo com pacifismo
É fácil falar na urgência de desarmamento (no ponto 175). A guarda do Vaticano já começou a dar o exemplo? É exasperante a facilidade com que as palavras do Bispo de Roma se confundem com as de um pacifista do Meo Sudoeste. O Papa diz que é preciso redefinir o sentido de progresso. Certo. Mas por quem? Por Roma? Por mim? Por quem, céus, por quem? Por uma iluminação qualquer a brotar na mente dos homens de boa vontade? É muito irritante o Papado ter sempre soluções para guerras nas quais recusa descer às trincheiras.
8. O Papa não acerta quando esquece que a lógica de tudo é Cristo
Já estou batido nisto: uma encíclica, mesmo quando cheia de coisas boas, é sempre estragada no final pela imposição artificial e desajeitada da mariolatria da praxe. Vejam bem, depois de todo o latim a explicar a lógica cristã do cuidado com a criação, aparece esbaforida Maria, como Rainha dela.
Really? Eis o proverbial costume das invenções romanas que passam por verdades antigas: Maria é elevada ao céu (a sério, como, quando e onde?); é Rainha de toda a criação (a sério, como, quando e onde?); já tem o seu corpo glorificado (a sério, como, quando e onde? - como é possível se o único que tem o corpo glorificado é Cristo? O Juízo final já se deu para Maria, em jeito de privilégio cronológico?); e, por causa dela, parte da criação já alcançou toda a plenitude (a sério? Então para que é que o Papa se deu ao trabalho de escrever esta encíclica? É mudar-se para essa parte da criação e chamar-nos a todos para lá).
9. O Papa não acerta quando esquece que sem Trindade não há nada para ninguém
A pragmática católica é incansável. Há duas orações sugeridas aos leitores da encíclica. Uma para os que acreditem em Deus, e portanto possível de ser feita por judeus, muçulmanos e outros monoteístas (lá se foi a conversa da chave trinitária da realidade...). E outra mais específica para cristãos, vinda da mente de Francisco de Assis, com os seus típicos floreados campestres. Entre uma e outra, venha o diabo e escolha. E eu, que disse tanta coisa boa sobre o Papa Francisco, acabo nestas notas desconsolado...