O ABC de 2015 da Voz do Deserto
A. A de ausência
Durante um quarto de século Deus deu-me uma vida em que não se ausentou ninguém da minha família próxima. Coisa espantosa! O meu avô materno partiu em 1989 e só em 2015 voltou a partir alguém tão importante para mim como ele era, neste caso a minha Tia Rute (filha dele). Sou um menino mimado e mal habituado. Agora que a minha Tia partiu consigo perceber melhor os buracos abertos pelo luto e começo a perceber melhor a ideia de chegar uma altura em que ir embora daqui é ainda mais atraente, porque também nos vamos juntar aos que já nos deixaram (partindo do princípio que eles partilham da fé em Cristo, claro). Também reconheço que é preciso que pessoas importantes morram para darmos mais importância às pessoas vivas. No fundo, lições arcaicas que só um homenzinho demasiado concentrado em si mesmo como eu consegue atrasar a sua aprendizagem. O mais importante não é mesmo que a minha Tia soubesse o amor que lhe tenho (isso seria um narcisismo disfarçado de bom sentimento). O mais importante é o que entretanto já está a acontecer numa escala de perfeição - a minha Tia já está na presença do Deus que a ama e que nesse amor lhe supre todas as necessidades. Mas que poderia ter sido melhor a transmitir o amor que lhe tenho, podia.
B. B de blogue
O blogue do ano para mim é do Peter Leithart na First Things. Ele é erudito biblicamente como poucos, reformado até à medula, católico de primeira. É dos que batalha mais no catolicismo reformado. Lê os sagrados e os pagãos e quanto bota faladura, arrasa. É uma inspiração.
C. C de concertos dados
Uma das coisas de 2015 foi voltar a tocar mais ao vivo. Talvez mais do que tocar ao vivo, foi querer tocar mais ao vivo. Nos últimos cinco anos a minha relação entre gravar canções e tocá-las foi um bocado complicada. Agora, por um motivo que não consigo explicar totalmente, parece-me bem tocar as canções que tenho vindo a gravar. Parece-me quase um compromisso necessário, tendo em conta o trabalho de compor canções e editá-las. Isso traz uma ironia: tenho aproveitado ocasiões em que o que está em causa é um livro meu para meter canções minhas. Ou seja, é como se depois de ter havido uma espécie de aceitação crítica da minha música ela tivesse voltado ao seu lugar de origem. Esse lugar é o da tolerância - as pessoas, mais que apreciarem a minha música, toleram-na. Paradoxalmente isso faz com que volte a querer acreditar mais nela, sobretudo em termos de querer dizer as palavras das canções que escrevo. Na prática, é como se tivesse um descaramento renovado para, independentemente de ser um fraco intérprete, querer dizer às pessoas o que as minhas canções dizem. Vejam bem que ando a cantar de guitarrinha acústica e harmónica - se me dissessem isso há uns anos iria rir. Tendo dito isto, foram mais que uma dúzia, as vezes em que impus as minhas cantigas a um grupo reunido de pessoas. Foram 14 vezes, entre concertos, tv e apresentações de livros.
D. D de divórcios
Deus detesta o divórcio porque o divórcio é desprezar o valor da palavra dada. Como fomos todos criados pela palavra, de cada vez que há um divórcio é sinal que alguém se levanta contra o poder através do qual foi criado. O divórcio é, por isso, uma não-vida. A pessoa que promete e que depois manda a promessa para o lixo é uma pessoa que se mandou a si mesma para o lixo. Neste 2015 o que mais me custou neste domínio dos divórcios nem foi propriamente a existência deles (quem é que em 2015 ainda se espanta com novos divórcios?). O que mais me custou em 2015 é que a existência do divórcio faça existir tão pouca indignação nos cristãos. Justifico esta minha opinião. Infelizmente vi divórcios a acontecer entre cristãos evangélicos no espaço de menos de um ano, sinal de que o crime compensa e que ninguém se vai dar ao trabalho de, pelo menos, tentar fazer alguma vida negra ao criminoso. O que quero dizer com isto é que não acho que a condenação cristã da violência implique que os cristãos tratem pacificamente alguém que através do divórcio agride outras pessoas. Os cristãos continuam a confundir sofrimento pela fé com indiferença à injustiça. Se muitos dos que abandonam os seus cônjuges e suas famílias soubessem que iam ter de enfrentar a força daqueles que se colocam ao lado dos ofendidos, talvez pensassem duas vezes antes de o fazer. Enquanto as igrejas tratarem os que abandonam as suas famílias como se esse fosse um direito que lhes assiste sem que haja consequências, acabam na prática a dizer que o divórcio não é assim tão mau. Podem crer que o evangelho exige honra cigana no matrimónio mas hoje somos todos meninos finos que não querem sujar as mãos.
E. E de editora
A editora musical que fiz com uns amigos em 99 chama-se FlorCaveira. Este foi um dos anos mais pobres no que diz respeito a edição de discos da FlorCaveira. Na prática houve apenas uma edição em Janeiro (o meu “Sou Imortal Até Que Deus Me Diga Regressa”). Mas, se querem que vos diga, creio que este foi dos anos mais importantes da FlorCaveira. Planeia-se que 2016 venha cheio em edições: o do Sami, o do Morgado, o do C de Croché, o dos Velhos, o das Borboletas Borbulhas, o meu a solo, possivelmente um de Lacraus, etc. Só aqui estão mais que meia-dúzia. Acontece que acho que nada viria no futuro se 2015 não tivesse sido de resistência pura e dura. O Filipe Marques e o Manel Fúria são homens que estiveram a aguentar o barco este ano. Devo-lhes muito (o segredo desta resistência da FlorCaveira também teve dois nomes: Amor Fúria).
F. F de Florença
É só para arranjar maneira de falar de Dante quando o D já está ocupado. Li a Divina Comédia e fiquei convicto de que sem cristianismo o Ocidente não tem assim tanto para mostrar. O melhor da Comédia é o que dá menos vontade de rir - o Inferno. O Purgatório começa a engonhar e depois o Paraíso é pura Maryland com pouco ou quase nada de Escrituras. Feito esse grande desconto, é obrigatório.
G. G de gato fedorento
Gato fedorento? O que há de novo para dizer do gato fedorento? Neste caso não é tanto sobre o gato fedorento mas sobre o Ricardo Araújo Pereira em particular. Em 2015 estive duas vezes com o RAP e tenho a dizer duas coisas: 1) o RAP é uma cabeça que não pára e 2) o RAP é dos pouco ateus inteligentes que conheço (isto ou quer dizer que há poucos ateus inteligentes ou que eu conheço demasiado poucos). Acho que noutro tempo e noutra época o talento do RAP poderia ser visto como uma doença mental. A capacidade que ele tem de na hora e no momento sacar uma perspectiva sobre as coisas que nos vai fazer rir às lágrimas é realmente patológica. Neste caso, na conversa que tive com ele e com o João Miguel Tavares e o Pedro Mexia na Lapa, é incrível como reagia ao que ia acontecendo sem qualquer guião. É único. Por outro lado, numa conversa que tivemos na Faculdade de Letras, sobre as questões de fé, fiquei surpreendido como foi imediatamente para as questões mais difíceis de engolir no cristianismo. O RAP tem sido muito gentil quando fala sobre religião. Vale a pena ouvi-lo quando ele vai directamente à jugular. Não há cá tretas humanistas ou rebuçados politicamente correctos. O RAP quando rejeita o cristianismo, fá-lo como deve ser. É pena que, sendo tão inteligente, não perceba o absurdo do ateísmo. Se Deus quiser, continuaremos a encontrar-nos para debater o assunto.
H. H de hospital e de prisão
Outra desculpa manhosa para não falar de hospital mas de prisão, sendo que o p já está ocupado. A experiência de visitar uma prisão tem-me aberto os olhos para coisas novas e outras, que teoricamente já sabia mas que se tornam mais claras. Estamos todos muito precocemente convencidos da nossa liberdade. Olhamos para a nossa liberdade como um direito que nos assiste e como uma coisa que supostamente nasce connosco. Somos uns patetas. Ir à prisão faz-nos olhar para a liberdade como uma bênção e como um valor moral (qualquer dia vou chatear-vos com esta conversa, desenvolvendo a minha crença na liberdade como o resultado de uma razão moral e não como resultado de um relativismo moral - isto porque até os tipos de direita que para aí andam acreditam na liberdade a partir de um relativismo moral e não a partir de uma razão moral, porque a razão moral dá-lhes muito trabalhinho para fazer numa época que se quer burguesa e ideologicamente pastelosa).
I. I de Isilda Pegado
Acabei por não conseguir organizar-me de modo a escrever sobre o assassínio público de carácter que foi feito à Isilda Pegado, por ocasião do Verão, quando deu a cara pela I.L.C. que colocava restrições a uma política de aborto público que tenho como imoral. A verdade é que neste país os opositores ao aborto até agradecem quando a questão volta a cair, que é para pouparem a chatice de terem consequências práticas por aquilo em que acreditam. Somos todos uns heróis quando acreditamos em coisas que não nos fazem sofrer, não é? A ironia é que a Isilda, que sofreu o que poucas pessoas sofreram nos últimos tempos, acabou a colocar pedras nas mãos do seus carrascos quando veio para uma entrevista na Sábado assegurar os leitores que não admitia que lhe colocassem na testa um rótulo de conservadora. Isilda: de pouco vale usar os braços para bater no adversário quando já concedeu que seja ele a escrever-lhe dicionário. Desde quando é que ser conservador é uma coisa má? Ok, já sei. Ser conservador é para muitos uma coisa má desde que os não-conservadores assim o disseram. Mas sabe uma coisa, Isilda? Eu estou-me nas tintas para o que os não-conservadores dizem e a Isilda, que já deu provas de lhes dar mais na cabeça que eu, também deveria estar.
J. J de justiça
Não foi feita muita justiça à memória de alguns dos heróis baptistas que partiram este ano. Partiu a Tia Nieta e senti falta da presença do Estado Maior da denominação. Claro que me podem dizer que os baptistas não têm Estado Maior e eu tenho de engolir e calar porque, de certa maneira, é verdade. Mas o que quero dizer é que a Bíblia nos fala de diferença nos galardões que receberemos na eternidade (e Jesus no sermão do monte bem enfatiza que sejamos ávidos de o desejar) e por isso não fazermos diferença nas celebrações fúnebres é dar a entender que nada vale a pena. Se os nossos heróis, que deram a vida dedicados a pregar o evangelho, são celebrados fria e relaxadamente pela nossa denominação, é sinal que a nossa denominação se está nas tintas para vidas dedicadas a pregar o evangelho.
K. K de Karavana
Ok, é terrível usar a letra k para substituir c de caravana mas vocês são pacientes. A minha mulher faz-me surpresas que não mereço. Ainda por cima porque sou mau a reagir a surpresas. Passei anos a fantasiar com auto-caravanas e a minha mulher alugou uma no meu aniversário. Não nego que no momento que ela me revelou a prenda quase que me arrependi de passar a vida a falar em sonhos, pensando no trabalho que ia ter de tratar de uma auto-caravana (sou o tipo de homem que não é nada desenrascado para a tarefa viril de dominar um bicho destes). Há dois momentos memoráveis em 2015 que é adormecer no meio de uma tempestade em Setúbal, recolhido com toda a família na auto-caravana e, na noite seguinte, adormecer em frente ao Tejo, novamente recolhido com toda a família na auto-caravana. Melhor que adormecer na auto-caravana, só mesmo adormecer na auto-caravana com a minha mulher. E ficamos por aqui porque este blogue ainda não disse adeus ao pudor.
L. L de listas
Vamos às listas!
Discos:
1. “Planos para o futuro”, Chibazqui
Mark my words: Chibazqui é a melhor banda de Portugal. Não preciso de justificar o lugar que os Feromona têm no meu coração mas tenho de reconhecer que Chibazqui ainda é melhor que Feromona. Lancem-me à fogueira mas é a verdade. O disco dos Chibazqui é perfeito. Não há nenhum exagero da minha parte. Tenho de ver se consigo escrever um texto decente totalmente dedicado à excelência dos Chibazqui.
2. “A bordo do Apolo 70”, Capitães da Areia
Se houvesse mais discos assim em Portugal não teríamos um país tão enfadonho. Só um aviso à banda: não digam que não se levam a sério e que fizeram o disco nessa onda porque isso é parte do problema e não da solução. As pessoas tolerarem os Capitães como piada pós-moderna não é um prémio mas um castigo. Tenham brio do vosso trabalho e não cedam ao cinismo gauche burguês da nossa crítica musical.
3. “Carrie and Lowell”, Sufjan Stevens
Finalmente um disco em que o Sufjan faz o que não deveria deixar de fazer.
4. “Ones and Sixes”, Low
Ser um verdadeiro fã dos Low é saber que o talento deles é melhor apreciado na medida inversa em que as pessoas lhes prestam atenção.
5. “Cara D'Anjo”, Luís Severo
Ok, ainda há neste disco muita fachadice que tem de dar lugar a mais Luís, mas não há como subtrair-lhe qualidade.
Filmes 2015
- “The Drop”, de Michaël R. Roskam. Tom Hardy é o homem que interessa e filmes dirigidos a citações de Dante deviam ser o futuro do cinema.
- “A Viagem de Arlo”, de Peter Sohn. Os homens são cães e os dinossauros cowboys neste Western inesperado, simples e comovente.
- “Barreiro Rocks”, de Eduardo Morais. O Barreiro é a nossa rock city e o Eduardo soube filmar o facto em menos de uma hora, num documento cinematográfico obrigatório.
- “Foxcatcher”, de Bennett Miller. Um filme em que as lutas cá fora são um pretexto para as lutas cá dentro.
- “A Most Violent Year”, de J. C. Chandor. Por que é que só agora começámos a entender os filmes de mafiosos a partir das mulheres?
- “The Gift”, de Joel Edgerton. Um filme cheio de nós a sair direitinho.
- “The Revenant”, de Alejandro Iñárritu. DiCaprio é uma fera atacada por uma fera neste filme feroz (com Tom Hardy!). Esqueçam o Tarantino que esta é a verdadeira coboiada de neve que interessa.
- “Mad Max”, de George Miller. O feminismo machista do filme é uma treta mas a diversão continua.
- “Black Sea”, de Kevin Macdonald. É quando fica careca e deslavado que consigo descobrir o brilho do Jude Law.
Livros editados em Portugal em 2015:
- “História do Futuro” do Padre António Vieira.
Escolher um livro inacabado escrito há mais de 300 anos para a melhor edição de 2015 é revelador. Talvez porque olhar para a frente, no que diz respeito à nossa literatura, ainda pede proximidade ao passado. E a tese apocalíptico-redentora acerca do nosso país do Padre António Vieira continua a não ser ultrapassada por qualquer concorrente que tenha vindo nos quatro séculos seguintes.
- “Aleluia” de Bruno Vieira Amaral
O Bruno fintou a Fundação Francisco Manuel dos Santos e não lhe deu um ensaio mas uma reportagem esticada. Também não escreveu em “Aleluia” uma sociologia religiosa mas o relato de dois crentes de hoje, que desafiam os preconceitos prontos de um país com medo da fé.
- “O que fazes aí fechada?” de Filipe Avillez
Parece que estou a tentar cumprir quotas estritamente religiosas nas minhas escolhas, mas nem por isso. Se hoje os grandes gestos de liberdade se fazem por supostamente mostrar mais e mais de nós (este também é o ano em que se publicam livros de fotos do instagram das estrelas), o Filipe vai atrás de histórias de pessoas que são de tal maneira livres que escolheram socializar menos.
- “Tudo o que sobe tem de convergir” da Flannery O'Connor
Todos os pretextos são bons para voltar a publicar a Flannery. Neste caso, a tradução do Rogério Casanova confirma o facto.
- “Diários” do Kafka
É verdade que a edição ainda é de Novembro de 2014, mas como o Humberto Brito disse no Observador, é um acontecimento editorial ainda para 2015. Pessoalmente, acho que o Kafka dos diários é mais viçoso do que o Kafka da ficção porque a observação dos absurdos quotidianos é mais surpreendente e sólida que os absurdos dos seus romances.
Outros livros que marcaram o ano, independentemente do ano em que foram editados
- “A Divina Comédia” de Dante
- “Bad Religion” de Ross Douthat
- “The Prodigal God” de Tim Keller
- “Prayer” de Tim Keller (extraordinário!)
- “A Puritan Theology” de Joel Beeke (acabei este calhamaço de mil páginas!)
- “The Habit of Being” da Flannery
- “Wise Blood” da Flannery
- “The Things of Earth” de Joe Rigney
- “Easy Riders, Raging Bulls” de Peter Biskind (ainda não acabei mas é incrível)
- “White Noise” de Don DeLillo
M. M de memorização
O meu amigo, Pastor Jónatas Lopes, disse-me no outro dia e com razão que um tipo andar a dizer que sabe coisas de cor pode ser uma grande vaidade. Tem razão. Posto isto, que a minha insistência na memorização seja a favor de mais cérebro a pensar e mais coração a palpitar. Também é para isto que decorar textos serve.
N. N de noites do crime eléctrico
O Clube do Crime Eléctrico foi um nome inspirado nos livros policiais do Chesterton para servir de lema para umas noites mensais no Sabotage organizadas por mim e pelo Manuel Fúria. Agora que demos a última, em formato Consoada, acho que podemos dizer que valeu a pena. Um dos objectivos era mantermo-nos a tocar ao vivo ao mesmo tempo que assim víamos outros artistas de quem gostamos. Se adicionarmos a isto um formato mais rock numa casa de música ao vivo que seja despretensiosa mas tenha onda, creio que esta série de oito noites foi bem sucedida. Passaram por lá músicos da nossa geração e músicos de uma geração nova, em concertos breves que mantivessem a ética de proximidade e perigo entre músicos e público. O que não quisemos? Residências e curadorias, nomes saloios para concertos de rock, um estilo que teima em ser contra-corrente mesmo na era das rádios alternativas (e, repetindo-me, o segredo desta resistência da FlorCaveira também teve dois nomes: Amor Fúria).
O. O de oceano.
Em 2015 fui 156 vezes ao oceano. Menos 6 vezes que no ano passado. Fui ao mar uma vez em cada 2,33 dias. Piorei. Quero voltar a subir a média em 2016!
P. P de produtividade
A produtividade é um problema e um perigo. É um problema porque a minha tendência é ser preguiçoso. É um perigo porque quando não sou preguiçoso, acabo a fazer da produtividade um ídolo. Ora este ano, não foi um mau ano no que diz respeito à produtividade. Um baptismo feito, um disco editado, outro disco gravado (a editar no início de 2016), dois livros publicados, mais de meia centena de sermões pregados, mais de uma dúzia de actuações musicais, crónicas bimestrais na Ler, e três rondas de aconselhamento familiar na igreja serão das actividades mais relevantes de 2015. Não é curioso que um tipo precise de chegar perto dos quarenta para começar a valorizar decentemente o trabalho?
Q. Q de quinze
Guel, Guillul e o Comboio Fantasma foi há quinze anos mas acho que nunca se cantou o “Queluz está a arder” com tantas ganas como quinze anos depois.
R. R de
res publica
Já noutras ocasiões mencionei o desastre que é ler alguns pastores nas redes sociais. Não me entendam mal que há quem possa dizer o mesmo acerca de mim. O meu objectivo é explicar que, sobretudo nos assuntos mais directamente políticos, é preciso cuidado redobrado. Esse cuidado redobrado passa primeiro por concluir que há convicções políticas que os cristãos têm de extrair da sua fé. Não há volta a dar: se, por exemplo, o assunto do aborto não nos fizer mexer palha, há alguma coisa errada. 2015 também é o ano em que passei a viver bem com o facto de ser um
one-issue-voter e um
one-issue-qualquer-outra-coisa (e, caramba!, 2015 foi ano da exposição das atrocidades praticadas pela Planned Parenthood nos Esatos Unidos). Para efeitos de simplificação ideológica, o aborto e toda a moral sexual é a marca de água que no Ocidente diz se estamos dispostos a sofrer pela nossa fé ou se, pelo contrário, estamos dispostos a tornar a nossa fé sofrível para que ninguém nos chateie. É fantástico, doze anos passados do início dos blogues, ter pessoas que me achavam graça a não me quererem aturar mais pela minha oposição ao aborto e ao chamado casamento homossexual. É sinal que alguma coisa ando a fazer certo. Por outro lado, o cuidado redobrado que os pastores devem ter nas redes sociais passa pelo respeito necessário às figuras de autoridade do nosso país, mesmo quando elas não são do nosso agrado ideológico. Dou um exemplo pessoal: eu, como
one-issue-voter que sou, não voto em socialistas (ou em partidos de esquerda). Mas não me passa pela cabeça faltar ao respeito ao António Costa, o primeiro-ministro (que me parece ter a legitimidade democrática mais tremelicante em quarenta décadas de Abril). Se Deus, na sua insondável graça, decidiu que António Costa deveria mandar nisto, quem sou eu para questionar o facto? A coisa só mudaria se o primeiro-ministro quisesse que eu lhe obedecesse primeiro a obedecer a Deus. Aí sim, haveria caso para insubmissão. Até lá, é orar pelos nossos governantes, dizer-lhes que estamos prontos para trabalhar e, naturalmente, pedir contas do poder que lhes é confiado.
S. S de Stan Smith
Nunca gostei dos Stan Smith quando era miúdo. Pareciam-me uns ténis desenxabidos numa época que o calçado desportivo se queria exuberante. Pareciam calçado de enfermeiros. Até que fiquei mais velho e agora me rendo ao encanto deles. Não há mérito nenhum nisso em 2015, ano em que todas as adolescentes parecem ter assinado um contracto de só saírem à rua assim calçadas. Há uns quantos maduros, como eu, a comprarem-nos e a terem dificuldade de não os usar imoderadamente. Se calhar isto dava para fazer um movimento social e pensar em eleger uns quantos deputados. Neste partido político eu era capaz de ser militante.
T. T de twitter
Meti-me no twitter. A verdade é que acabo a sentir-me drenado em qualquer rede social. As redes sociais fazem-nos acreditar que alguém nos presta atenção. Mas a maior parte das vezes é um logro. Nas redes sociais somos mais fantasmas que pessoas reais. Devem ser usadas com moderação não vá o nosso braço tornar-se transparente no momento que teclamos.
U. U de uau
O meu discurso oral passou a integrar a expressão “uau”. O que vai ser de mim?
V. V de Vieira
Este voltou a ser um ano muito virado para o Padre António Vieira. Tenho dois calhamaços dele prontos para ler. Permitam-me um dogma: pastores protestantes que não lêem Vieira deviam ser expulsos do país ao pontapé.
W. W de Windsor, o nó de Windsor.
Ok, é apenas uma maneira para falar de gravatas quando o g já foi tomado. O que vou escrever será a coisa mais impopular de todas. Esqueçam a minha oposição ao aborto ou ao chamado casamento homossexual - é aqui que vou perder leitores para sempre. Em 2015 passei a usar gravata todos os Domingos (excepto o primeiro, em que tomamos a Ceia do Senhor e opto por uma camisa sem golas). E porquê? Porque na minha igreja me pressionaram para isso? Nem pó. Sou o único a usar gravata na minha igreja. A Lapa é bem flexível no que diz respeito à indumentária dominical (às vezes flexível até demais). Passei a usar gravata porque passei a gostar de usar gravatas. Podem largar os cães agora. Sou o Tiago, tenho 38 anos e gosto de usar gravata ao Domingo (reconheço que para aqui chegar também contribuiu o facto de te recebido uma remessa de gravatas dadas pela Tia Lena, que tinham pertencido ao Tio Luís que não cheguei a conhecer). Aqui estou. Aqui me confesso.
X. X de xaropada
Os copos nos concertos são uma xaropada (bebo coca-cola). Os
caterings nos concertos são uma xaropada (um músico não é pago para comer mas para tocar). Os públicos nos concertos são uma xaropada (portam-se como ovelhas para o matadouro). Os músicos nos concertos são uma xaropada (afinam as guitarras naqueles horríveis afinadores electrónicos, olhando para o chão nos intervalos das músicas, enquanto falam às pessoas não as encarando, num gesto de terrível má-educação). Os críticos de concertos são uma xaropada (só vão a concertos em épocas que os músicos estão legitimados por
hypes).
Y. Y de yo
Fase rap meio morta. Fase rock a querer voltar. Por outro lado, o rap nunca vai embora porque o rap é poder assumir melhor que a música é apenas um modo de continuar a pregar.
Z. Z de zeros
Devíamos dar números aos nossos zeros. Se não soubermos os nomes das nossas derrotas, somos sempre vencedores - um truque ridículo. Quantos zeros nos trouxe 2015 e o que estamos dispostos a fazer por eles em 2016? Deus nos ajude.
Fotografia tirada pela minha mulher no último concerto. Mesmo à Bruce.