A bilha e a fonte (ou, somos todos judeus e não sabíamos)
As pessoas vivem dentro da Bíblia e não sabem. Como freudianos funcionais que somos, não nos apercebemos como alguns dos conceitos que organizam a nossa maneira de olhar para a existência vêm da Bíblia. O nosso problema é que, como lemos pouco a Bíblia, damo-nos ao luxo de julgar que a nossa maneira de olhar para a vida tem pouco a ver com ela. Esta é uma ignorância trágica.
Ao ler o teólogo holandês do Século XX chamado Geerhardus Vos, apercebi-me disto mais uma vez. Vos está a explicar o modo como Deus começa a revelar-se aos homens no início do Velho Testamento. Logo no início deste processo, um dos modos preferidos de Deus é revelar-se através dos sonhos. E é interessante porque Deus escolhe revelar-se através dos sonhos porque quando o homem dorme, fica mais solto da sua identidade acordada e, consequentemente, mais facilmente pode receber uma mensagem da parte de Deus. A lógica é: quanto mais longe o homem fique de si mesmo, mais perto pode ficar de Deus - e os sonhos oferecem uma ocasião privilegiada para este jogo de proximidades e distâncias.
É curioso porque Freud, sendo judeu (neste caso, um judeu não-crente) aplica esta mesma lógica mas ao contrário. Como Freud já não crê no Deus da religião a que pertence etnicamente, não vai sugerir que o sonho é bom porque ficamos mais longe de nós próprios e então podemos ficar mais perto de Deus. Como já não tem Deus como conteúdo, Freud vai ficar apenas com a embalagem. Ou seja, Freud vai defender que de facto há algo de melhor em sonhar, mas um melhor que já não é reconhecido pela proximidade a Deus, antes um melhor que é reconhecido pela proximidade a nós próprios. Todo o jogo de decifrações psíquicas de Freud tem a ver com ele achar que é nos sonhos que nos conhecemos verdadeiramente. Freud, como judeu sem fé, continua a apreciar os dispositivos apreciados por Deus (neste caso, os sonhos), simplesmente aprecia-os agora sem chegar à meta final que é apreciar o Deus que usa esses dispositivos.
Por outro lado, quando compreendemos isto também podemos apreciar o génio do pensamento judaico que é uma vigorosa antropologia negativa. As Escrituras judaicas não padecem do mal contemporâneo da obsessão pela auto-estima. Quando as Escrituras nos dizem que Deus usa os sonhos para se revelar, porque nos sonhos é mais fácil Deus comunicar tendo em conta que estamos mais longe de nós próprios, há um recado pouco simpático que nos está a ser deixado. Esse recado diz: não confies demasiado na tua mente porque muitas vezes a tua mente atrapalha na hora de compreenderes Deus. Isto não significa um suicídio intelectual (até porque é preciso pensar bem para perceber que não nos salvamos a pensar), mas o convite a acreditarmos que a solução é sempre depender de Deus em lugar de depender de nós próprios.
Get it, freudianos? Vão à fonte e não fiquem apenas na bilha.
As pessoas vivem dentro da Bíblia e não sabem. Como freudianos funcionais que somos, não nos apercebemos como alguns dos conceitos que organizam a nossa maneira de olhar para a existência vêm da Bíblia. O nosso problema é que, como lemos pouco a Bíblia, damo-nos ao luxo de julgar que a nossa maneira de olhar para a vida tem pouco a ver com ela. Esta é uma ignorância trágica.
Ao ler o teólogo holandês do Século XX chamado Geerhardus Vos, apercebi-me disto mais uma vez. Vos está a explicar o modo como Deus começa a revelar-se aos homens no início do Velho Testamento. Logo no início deste processo, um dos modos preferidos de Deus é revelar-se através dos sonhos. E é interessante porque Deus escolhe revelar-se através dos sonhos porque quando o homem dorme, fica mais solto da sua identidade acordada e, consequentemente, mais facilmente pode receber uma mensagem da parte de Deus. A lógica é: quanto mais longe o homem fique de si mesmo, mais perto pode ficar de Deus - e os sonhos oferecem uma ocasião privilegiada para este jogo de proximidades e distâncias.
É curioso porque Freud, sendo judeu (neste caso, um judeu não-crente) aplica esta mesma lógica mas ao contrário. Como Freud já não crê no Deus da religião a que pertence etnicamente, não vai sugerir que o sonho é bom porque ficamos mais longe de nós próprios e então podemos ficar mais perto de Deus. Como já não tem Deus como conteúdo, Freud vai ficar apenas com a embalagem. Ou seja, Freud vai defender que de facto há algo de melhor em sonhar, mas um melhor que já não é reconhecido pela proximidade a Deus, antes um melhor que é reconhecido pela proximidade a nós próprios. Todo o jogo de decifrações psíquicas de Freud tem a ver com ele achar que é nos sonhos que nos conhecemos verdadeiramente. Freud, como judeu sem fé, continua a apreciar os dispositivos apreciados por Deus (neste caso, os sonhos), simplesmente aprecia-os agora sem chegar à meta final que é apreciar o Deus que usa esses dispositivos.
Por outro lado, quando compreendemos isto também podemos apreciar o génio do pensamento judaico que é uma vigorosa antropologia negativa. As Escrituras judaicas não padecem do mal contemporâneo da obsessão pela auto-estima. Quando as Escrituras nos dizem que Deus usa os sonhos para se revelar, porque nos sonhos é mais fácil Deus comunicar tendo em conta que estamos mais longe de nós próprios, há um recado pouco simpático que nos está a ser deixado. Esse recado diz: não confies demasiado na tua mente porque muitas vezes a tua mente atrapalha na hora de compreenderes Deus. Isto não significa um suicídio intelectual (até porque é preciso pensar bem para perceber que não nos salvamos a pensar), mas o convite a acreditarmos que a solução é sempre depender de Deus em lugar de depender de nós próprios.
Get it, freudianos? Vão à fonte e não fiquem apenas na bilha.