Um texto que também é uma carta aberta aos responsáveis cívicos do Concelho de Oeiras
Ser um bom comediante é ser um bom político. Um bom número cómico pode ter um efeito tal que a nossa vida em sociedade muda. É a minha convicção que, quando no final dos anos 90 o Herman José inventou o Diácono Remédios, Portugal passou a ser outro. Hoje ninguém quer fazer figura de Diácono Remédios. Ninguém quer armar-se em ofendido em questões de moral sexual porque quando alguém se ofende em questões de moral sexual há uma grande parte da população portuguesa que reage como estando na presença de um Diácono Remédios. E, como nós sabemos, o Diácono Remédios era um hipócrita, um homem com responsabilidades religiosas que passava a vida a implicar com a suposta indecência dos outros quando ele, na prática, era o mais malicioso de todos. Sei que muitos ao lerem este texto me podem encaixar na figura do Diácono Remédios. E, se querem que vos diga, não é isso que me vai impedir de o escrever. O que está em causa neste texto vale mais do que o prejuízo de poder ser posto ao nível de uma caricatura do Herman José.
Chamo-me Tiago Cavaco, tenho 38 anos e vivo em Oeiras. Cresci com os meus pais e duas irmãs, uma cinco anos mais velha e uma quinze minutos mais nova. Eu e a minha mulher temos duas meninas e dois meninos. Profissionalmente sirvo uma igreja que semanalmente junta um pouco mais de uma centena de pessoas, sendo que perto de 40 delas estão abaixo dos 16 anos. Por estas razões, os assuntos da educação no geral e da formação específica para a sexualidade são constantes na minha vida.
Como é fácil antecipar, ocupar funções de alguma responsabilidade na formação de crianças pede que as esclareçamos acerca de como a vida é, e não apenas acerca de como gostávamos que a vida fosse. Neste sentido, não é possível uma educação dos mais novos que lhes esconda as coisas más que existem, como as agressões que podem sofrer, agressões essas que também podem ser trazidas por adultos. Educar responsavelmente pede hoje, como em qualquer época da história mas talvez com mais ênfase, uma compreensão e prevenção do abuso sexual.
Uma das regras fundamentais na formação dos mais novos acerca do abuso sexual é que eles entendam o seu corpo como um espaço sagrado. O que é que isto quer dizer na prática? Seja a que pretexto for, os meus filhos e os menores que participam da vida comunitária da igreja que sirvo (a Igreja da Lapa em Lisboa) aprendem que ninguém deve tocar neles sem permissão, sendo que há lugares do seu corpo que nem com permissão podem ser tocados. Apesar de nem sempre ser fácil explicar às crianças os porquês destes princípios, elas tendem a integrá-los como naturais ao desenvolvimento de uma personalidade autónoma e responsável. Por exemplo, eu e a minha mulher nunca precisámos de descrever uma violação às nossas meninas para elas tomarem o corpo que têm como um espaço que devem proteger e estimar.
Acreditar que o nosso corpo é sagrado nem sempre é fácil numa sociedade que alberga diferentes compreensões acerca dele. Mas, felizmente, numa democracia como a portuguesa, o caminho tem sido, apesar de tudo, promissor para pais de crianças como nós. O cuidado com o corpo que ensinamos aos nossos filhos é geralmente correspondido pelo cuidado que o próprio Estado também encoraja aos seus cidadãos, sobretudo aos de idade menor. No geral, sentimos que as autoridades cívicas estão connosco na tarefa de educar e proteger os nossos filhos.
É aqui que entra o assunto do lamentável cartaz de uma encenação a acontecer no palco do Teatro Independente de Oeiras. Vou ficar-me pelo adjectivo lamentável porque gostaria de manter o tom deste texto o mais objectivo possível. Neste cartaz, uma mulher aparece tapando simultaneamente os órgãos sexuais de dois homens, despidos, um à sua esquerda e outro à sua direita. Se nesse tapar lhes toca ou não, não é claro. Nesse sentido, não posso afirmar que o que está a acontecer naquele cartaz é uma actividade sexual. Mas não me parece descabido dizer que essa actividade sexual pode, pelo menos, ficar insinuada. Podemos pôs as coisas pela negativa e reconhecer que se o cartaz não quisesse de modo algum sugerir qualquer actividade sexual, provavelmente vestiria os actores e não colocaria as mãos da actriz ao nível dos seus órgãos genitais. Por outro lado, o título da encenação é “H2M1, Parte 2 - Conversas do pirilau”, sendo que a palavra “pirilau” aparece graficamente como uma correcção de outra que começaria por C e acaba em O. Fica à imaginação do espectador acertar no original.
Este cartaz encontra-se espalhado pelo concelho de Oeiras, culminando, para os efeitos deste texto, num lugar querido da nossa família: a Biblioteca Municipal. É rara a semana que não levo os nossos quatro filhos à Biblioteca, algumas vezes mais que uma vez. Na última vez que lá estivemos, lá estava a publicidade às “Conversas do pirilau”. Ou seja, a Biblioteca Municipal de Oeiras serve os seus leitores também convidando-os para “Conversas do pirilau”, facto mais estranho por geralmente não ser possível conversar dentro de uma biblioteca, mas divago. Indo ao que interessa: este texto serve para pedir que se retire este cartaz da exposição pública a menores de idade. Porquê? Porque creio que este cartaz impede alguns princípios valiosos de educação sexual responsável e autónoma que desejamos na formação dos mais novos.
Sigam por uns instantes a minha linha de raciocínio, por favor. Se as nossas crianças aprendem que ninguém tem a permissão de tocar no seu corpo, e que, consequentemente, ninguém pode obrigá-las a tocarem no corpo de outros, o que faremos com esta imagem que, pelo menos, pode sugerir uma mulher que de uma vez só manipula os órgãos sexuais de dois homens, que parecem divertidos com a ideia. Claro que, admitindo que a imagem tal sugere, poderemos dizer que provavelmente está em causa uma relação consensual entre três indivíduos adultos (partindo do princípio que a mulher pediu para fazer isto e que dos dois homens recebeu um sonoro sim). Mas mesmo que assim seja, significa que é útil que às crianças que vêem o cartaz esteja pronto um esclarecimento minimamente satisfatório acerca de relações sexuais consentidas, que neste caso envolvem logo três pessoas. É para o Município de Oeiras este um plano pretendido, escrutinado e aprovado para formar e proteger os seus cidadãos de menor idade, este de entrar num assunto destes a pretexto de uma imagem destas? Por outro lado, e tendo em conta que a sugestão supostamente inocente de manipulação de órgãos sexuais masculinos é um dos pretextos mais recorrentes para o abuso sexual, é este o melhor início de conversa? Até que ponto é que uma imagem desta espalhada por todo o concelho não antecipa sem precaução e desequilibra o programa pedagógico que as entidades de ensino querem promover acerca da educação sexual? Ou é apenas indiferente?
Colocando a questão de uma maneira bem simples e pessoal: o Teatro Independente de Oeiras não me ajuda a mim nem à minha mulher quando sugere graficamente aos nossos meninos que talvez não haja assim tanto problema em eles meterem as mãos nos órgãos genitais de homens, mesmo quando são educados que nem eu, enquanto pai, nem os seus irmãos alguma vez podem pedir-lhes semelhante gesto. E por que estou convicto do facto que essa ideia, podendo não ter sido planeada, é pelo menos sugerida? Pelos comentários que tive de ouvir dos meus filhos acerca do cartaz. Para eles não restou sombra de dúvida que aquilo que o cartaz sugeria ia contra as precauções que recebem dos seus encarregados de educação. Alguém pode dizer que o problema é meu e da minha mulher, e da maneira como educamos os nossos filhos. Mas como nós pode haver muitos mais pais e muitos mais filhos. O que pergunto é: pais como nós não têm o direito cívico de sugerir restrições para o modo como imagens destas são espalhadas pelas ruas? Creio que sim. Que nós, e eventualmente muitos outros, temos esse direito.
O que pedimos não é censura. Este cartaz pode ser mostrado em contextos determinados, da mesma maneira como em nossa casa temos livros e filmes que intencionalmente não mostramos aos nossos filhos, por não os acharmos apropriados ao seu estado de desenvolvimento. No entanto, que este cartaz esteja espalhado por todo o Município parece-nos uma agressão à liberdade de cidadãos que, em virtude da sua idade, não têm de saber já distinguir completamente e com maturidade um acto sexual consensual de um abuso sexual. Não espalhar publicamente imagens destas não é tirar liberdade, é dar mais àqueles que mais dela precisam. Partir do princípio que as crianças já têm de perceber como adultos imagens destas pode ser um acto de indescritível violência sobre elas, e, creio, um contributo acidental para a sua fragilidade diante de abusadores sexuais. Pode ser exagero meu, mas creio que em muitos países democráticos isto poderia valer demissões das pessoas responsáveis. Seria interessante que aqui valesse, pelo menos, a atenção de o retirar dos olhos dos que estão ao nosso cuidado. A imposição de imagens de carácter sexual sobre menores também não pode constituir uma violação?
Gostaria de não ter de mudar a opinião que tenho tido até agora, de que as autoridades cívicas estão connosco na tarefa de educar e proteger os nossos filhos. Mas não me parece que o Município de Oeiras tenha demonstrado, através deste cartaz, que reflectiu responsavelmente na promoção e formação para a liberdade e auto-determinação sexual dos seus cidadãos mais novos.
Atenciosamente,
Tiago Cavaco e Ana Rute Cavaco.