Perceber como não nos percebem (ou uma leitura de "O Nascimento de uma Nação" de Mário Avelar - sem Playmobil incluído) - parte III e última
Vejamos então algumas das coisas que ganhamos lendo o livro "O Nascimento de uma Nação - nas origens da literatura americana" do Mário Avelar. Vou coleccionar cinco pontos que podem, de alguma maneira, ser extraídos da sua leitura (muitos mais pontos poderiam ser extraídos, mas são estes cinco que aqui me interessam). Depois, vou tentar aplicá-los na ressonância que eles ganham com o movimento evangélico português. O que significa que o esquema vai ser: "percebe a América para perceberes os evangélicos portugueses". Este esquema é útil, como disse no início, para os evangélicos portugueses se perceberem melhor a si mesmos; é útil para os não-evangélicos portugueses perceberem melhor os evangélicos portugueses; e é útil para os evangélicos portugueses perceberem porque é que os não-evangélicos não os percebem.
1. Apesar de os Estados Unidos nascerem enquanto país como uma não-Europa (qual joven filho saindo de casa dos pais), não é possível conhecê-los sem perceber que herdaram da mãe a utopia. A utopia existe na América por causa da Europa. Sem sonhos, os Estados Unidos não são os Estados Unidos. Diz Mário Avelar:
“A América começa por ser uma construção da Europa. Se não a pensarmos historicamente, e se não reflectirmos sobre a nossa tradição utópica (...) estaremos apenas condenados a projectar as nossas idiossincrasias naquela realidade e a reproduzirmos banalidades” (pág. 12).
2. Os Estados Unidos, ao herdarem a utopia da mãe Europa, conservam-na como a mãe Europa já não consegue, de velhinha que está e de tanta desgraça que já viveu. O optimismo americano, presente no sonho que se pode concretizar na vida de qualquer pessoa que lá chega, é uma característica incontornável da América do Norte. A utopia é na América um sonho vivo, ao passo que na Europa cínica a utopia cheira mais a pesadelo. O americano quando sonha, testa-se, ao passo que o europeu quando sonha, censura-se.
“O americano configura a sua vida como uma viagem em que os testes lhe exigem uma constante reavaliação do seu próprio engenho, do seu génio” (pág. 15).
3. Os ingredientes da utopia americana misturam primeiro puritanismo de origem inglesa e mais tarde o iluminismo sobretudo francês. Esta mistura de puritanismo tempera a ingenuidade humanitária do Iluminismo. Apesar de os americanos serem optimistas quando os europeus já não podem ser, têm uma visão antropológica muito mais negativa.
“A Constituição dos Estados Unidos é baseada na filosofia de Hobbes e na religião de Calvino, assumindo que o estado natural da humanidade é o estado de guerra, e que a mente carnal está em inimizade com Deus (Horace White)” (pág. 200).
4. Os Estados Unidos compreendem-se a si mesmos a partir da ideia que é preciso peregrinar para lá habitar dignamente. Os Estados Unidos são ainda hoje um país de colonos, cuja verdadeira cidadania não é a raiz ancestral mas o trabalho e o empenho. Seguindo o contributo de Benjamim Franklin, a verdadeira hospitalidade americana é conferir ao indivíduo o estatuto de cidadão,
“através do trabalho, da vontade, do empenhamento do sujeito e do seu respeito pelas instituições” (pág. 179).
5. O pragmatismo americano, ao contrário do que diz o ressentimento europeu, não é uma fuga da reflexão mas o resultado dela. O protestantismo, que é obcecado pela Bíblia, pede uma auto-avaliação constante do indivíduo nesta peregrinação, desenvolvendo
“uma forte cultura interior de responsabilização individual” (pág. 15). O americano não passa a vida a pensar em si mesmo principalmente porque ignora que existem mais pessoas no mundo além da América (embora muitas vezes assim aconteça). O americano passa a vida a pensar em si mesmo porque a Bíblia, que lavrou o país, assim o obriga. O individualismo americano não é uma desvalorização dos outros mas uma ênfase no valor de cada um.
Como é que isto se aplica à realidade religiosa dos evangélicos portugueses então? Vou tentar fazê-lo em três passos.
- Os evangélicos portugueses, tais como os americanos, são menos cínicos que todos os outros portugueses. Não estou a dizer que os portugueses são conscientemente cínicos. Mas quando se conhece um evangélico, percebe-se que por causa da influência americana ele tende a ter uma perspectiva diferente do mundo, que muitas vezes passa por simples ingenuidade. E talvez seja. Mas se for ingenuidade, é uma ingenuidade de quem crê que existe uma finalidade para a existência. Os povos europeus (e mediterrânicos, no particular) têm mais dificuldade em aceitar que a nossa vida serve para alguma coisa - parece-lhes um luxo de quem ainda não se desiludiu devidamente com a vida. O evangélico português estraga o fatalismo persistente da sua nação.
- Os evangélicos portugueses, apesar de poderem parecer ingénuos em comparação, têm uma perspectiva antropológica mais pessimista, como os americanos. Os evangélicos portugueses são educados que
"todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus" (Romanos 3:23), o que lhes corta a pieguice latina de achar que, bem vistas as coisas, todos somos bons lá no fundinho do nosso coração. Agora a verdade é que, apesar desta convicção teológica, os portugueses evangélicos acabam por resvalar frequentemente para a pieguice do seu povo, tratando inevitavelmente cada filho que têm como se fosse um filho único (uma das grandes pragas civilizacionais da nossa cultura portuguesa).
- Os evangélicos portugueses fuçam numa disciplina completamente anti-portuguesa que é tentarem levar-se a sério, coisa que todos os outros portugueses não estão para aí virados. Este é o ponto em que todos os leitores portugueses não-evangélicos deste texto se podem irritar (ainda mais) comigo. Por isso, vou tentar ilustrar.
Um português não-evangélico que tem convicções religiosas acha que essas convicções religiosas são tanto mais sérias quanto a capacidade que ele tem de não falar sobre elas. Os povos latinos, muito dados a todo o tipo de misticismos, consideram que falar muito sobre uma coisa é estragar o valor dela. Logo, abraçam uma religião que sublinha o "mistério" num misto sincero de deslumbramento e preguiça (esquecendo que "mistério" na Bíblia serve para acentuar que alguma coisa foi revelada, e não para acentuar que alguma coisa permanece escondida). Os latinos que são religiosos acham que a seriedade da sua religião se vê sobretudo na capacidade que têm de a manter em silêncio. Isto esbarra de frente com o carácter aparentemente extrovertido do cristianismo protestante. O cristianismo protestante, porque defende mais essencialmente o valor da palavra, crê que o verdadeiro crente não é o que a esconde mas o que a revela. A ironia é que o protestantismo converteu os povos do norte, tradicionalmente tidos como mais reservados.
Por que digo que este factor de falar sobre a fé é levar-se a si mesmo mais a sério? Porque este factor de falar sobre a fé não é uma falta de pudor, mas uma consequência racional de quem se convenceu de uma verdade que que vale mais do que a própria pessoa. Esta é a razão que leva os americanos (e os evangélicos portugueses!) a parecerem acriançados aos olhos dos europeus, por falarem tão facilmente acerca daquilo que sentem e pensam. Acontece que este aparente acriançamento americano não vem de os americanos acharem que a realidade é fácil - que é como os europeus gostam de se sentir diante deles, achando nós que
"os americanos são básicos". Os americanos falam tão facilmente acerca do que pensam e do que acham porque pertencem a cultura nutrida pela convicção que quem lê e pensa chega a conclusões suficientemente importantes ao ponto de poderem transformar a nossa existência.
Os evangélicos em Portugal são sempre olhados com paternalismo porque parecem criaturas desbocadas e superficiais, com uma religião sem peso e tradição, toda feita de facilidades e pragmatismos. Mas a verdade é que os evangélicos em Portugal são filhos de uma convicção contra-cultural que sustenta que pensar não só é importante como nos transforma. Se ganhasse um euro de cada vez que ouço a frase "
quase que me convences, Tiago", teria agora dinheiro para abrir às margens do Tejo um "Cavaco Center For The Unknow". Mas sabem por que é que, enquanto evangélico, não convenço em Portugal? Bem, não convenço grande parte das vezes porque não sou convincente. Mas, e sem falsa modéstia, também não convenço em Portugal porque os portugueses estruturalmente não apreciam a ideia de que aquilo que é verdadeiro tem a capacidade de nos transformar. Para os portugueses a verdade é trágica, não é transformadora (vão ler o Miguel Unamuno). Para os portugueses a racionalidade parece um luxo de quem ainda não percebeu que nada faz realmente assim tanto sentido. Os portugueses, como tantos outros na Europa, glorificam o aleatório como o verdadeiro encaixe na existência (vejam como isto está popularizado pela palavra "random" dos miúdos na net). Os evangélicos, que não defendem que nos salvamos por pensar bem, mas que pensamos melhor quando nos salvamos, têm muito para americanizar saudavelmente este país. Neste sentido, os americanos vivem correctamente mais perto do Céu.
Em suma, ser um cristão evangélico em Portugal é quase sempre passar por um tipo americanizado, já dizia aquele velho Presidente da República. Ele, Mário Soares, sendo uma das vozes que mais nos envergonha politicamente no domínio da liberdade religiosa, tinha razão nisto. Os protestantes são mesmo tipos sem raízes neste pequeno Portugal tão bem medido e limitado. Não temos padres, não temos políticos, não temos palcos. Mas que aqui estamos, estamos. Obrigado, Mário Avelar, por nos fazeres lembrar que puritano não é palavrão.
Vão ler este livro e depois falaremos todos com mais juízo. Os puritanos são os maiores. Aguentem.
[Seria interessante pensar no Brasil também, e no modo como os portugueses acabam por segunda via por também serem influenciados pelos evangélicos brasileiros. Mas isso é agora demasiada areia para a a minha camioneta. Vale a pena pensar nisso no futuro: como os brasileiros evangélicos também foram americanizados, mas como a americanização dos brasileiros é diferente da nossa pelo facto de os brasileiros, como os americanos, pertenceram a um continente jovem quando comparado com a Europa, entre outros aspectos. Mas que existe um efeito triângulo para os evangélicos portugueses, desenhado por EUA-Brasil-Portugal, sem dúvida que existe. Curiosamente, e essa seria ainda mais outra conversa (que já mencionei num texto antigo sobre o Brasil), os evangélicos portugueses preferem hoje ser menos brasileiros, sobretudo à conta dos efeitos da imigração brasileira cá. Bem, mas por enquanto chega de parlatório.]