O ABC de 2016 da Voz do Deserto
A de arrependimento - Ao contrário do que se julga, o arrependimento não é para acontecer uma vez na vida quando nos tornamos cristãos. O arrependimento é o que vai acontecendo também para que nos mantenhamos cristãos. Logo, é triste que pessoas tenham décadas de experiência cristã sem lhes ser reconhecido qualquer gesto concreto de arrependimento (e neste sentido, os protestantes não tendo a confissão auricular, deveriam insistir em manter práticas de confissão na sua devoção comum). Os cristãos precisam de assumir o arrependimento com alegria. Parece uma contradição, não parece - a ideia de que arrependimento e alegria combinam? Mas não é. Um dos versículos decorados na casa dos Cavacos é "Servi ao Senhor com temor, alegrai-vos nele com tremor" (Salmo 2:11). Deus nos ajude a ser uma família exuberante em paradoxos de alegria e arrependimento, júbilo e juízo.
B de baptismos - Este ano baptizei 4 pessoas (outras 5 foram baptizadas pelo Mark Bustrum). Duas dessas foram as minhas filhas, a Maria e a Marta. É para isto que Deus cá me pôs. Que alegria pode ser maior para mim?
C de carro - Não sou um homem de carros, antes pelo contrário. Para mim um carro é um meio de chegar de um lugar a outro. Isto significa que sou uma nulidade em relação a problemas de automóveis (até um furo que tive este ano acabou por ser o meu amigo Miguel Pinto a safar-me na fase mais crítica do processo). Surgiu nos últimos tempo um par de rapazes que é uma bênção para a Família Cavaco: o Hugo e o João, que se tornaram a nossa solução mecânica infalível. O Hugo, que é com quem falo mais, dá cabo de qualquer marido diante da sua esposa: imaginem uma pessoa que se licenciou em Filosofia e que, ainda assim, saber consertar viaturas, electricidade, canalização e qualquer outra coisa. Deus inunda-nos da sua graça também com pessoas assim, mesmo que sirvam para confirmar que, como marido, somos zeros de eficácia.
D de dor - Sou um ser humano tragicamente infantil. Raramente tenho experiências sérias de dor. Este ano, numa madrugada de Agosto senti uma dor no peito que me assustou ao ponto de acabar nas urgências com a Ana Rute. Aparentemente, nada era. Mas todo eu fui tremeliques no calor do acontecimento. Deus me dê forças para saber não perder a fé quando me sentir fraco.
E de esgoto - Sei que a imagem é exagerada mas as redes sociais frequentemente são esgotos a céu aberto tratados como se fossem praias. Deixei de ter amigos no Facebook há quase três anos, criando a página de perfil público para ir lá despejar os sermões e os textos do blogue. Isso quer dizer que, com raras excepções, deixei de ver o que as pessoas lá escrevem. A minha vida melhorou imensamente. Por exemplo, não vejo o que as pessoas da minha congregação escrevem, o que aumentou a liberdade dos meus sermões (ninguém vai pensar "esta é para mim" e posso dizer o que devo sem estar a pensa que alguém vai pensar "esta é para mim"). Mas ainda há pouco tempo um amigo chamou-me a atenção para um texto de um outro amigo que temos em comum e que era possível de ser lido por qualquer pessoa. Não resisti e fui lá espreitar (hoje, acho que não deveria ter ido). A coisa era uma vergonha que colocava em causa o bom nome de pessoas que não se podiam defender. No entanto, estava cheia de gente que estimo e respeito, chafurdando naquela lama como quem passa um dia de férias no litoral. Pensei: por que nos des-sensibilizámos ao ponto de preferirmos uma opinião imediata dita em tom porreirista à prudência de pensar duas vezes antes de dizer algo que condena quem não se pode defender? Se mais redes sociais quer dizer menos decência, vale a pena ter menos redes sociais.
F de filhos - Os nossos filhos fazem exames nacionais sozinhos por conta do ensino doméstico e safam-se; os nossos filhos começam a ir aos correios de bicicleta; os nossos filhos aprendem a desenhar caveiras com o pai; os nossos filhos sabem melhor os êxitos da rádio do que nós (e perdem algum gosto musical por conta disso); os nossos filhos gostam muito de ir à biblioteca (até porque o pouco computador que consomem é lá que consomem); os nossos filhos já não vêem só filmes de animação; os nossos filhos volta e meia têm dúvidas teológicas; os nossos filhos também nos entristecem e desobedecem; os nossos filhos aprendem a nadar; os nossos filhos são uma grande alegria.
G de gravata - Como já vos disse, o meu gosto em usar gravata aumenta. É certo que o facto de não ser obrigado a fazê-lo também pode ajudar. Mas o curioso é que quanto mais informal é a geração, menos tolerante se mostra para quem se apresenta de modo tido como mais formal. As pessoas tendem a assumir que a gravata se usa quando há um dever para tal maior do que a pessoa que a usa. Uma época supostamente mais livre de convenções deve reflectir sobre a possibilidade de as pessoas aderirem a convenções não por serem obrigadas mas por serem livres. A procura por alguma elegância é cada vez mais punk rock.
H de Hippotrip - Se ainda não foram ao Hippotrip, por favor arranjem maneira de ir. Se possível, tentem ir com o guia que é o Vasco. Tem muita graça e torna a viagem pela Lisboa seca (em terra) e pela Lisboa molhada (no rio) um verdadeiro acontecimento.
I de igreja - Uma das fraquezas dos protestantes é a eclesiologia. Com a ênfase acertada que damos ao facto de a salvação acontecer pessoa a pessoa, acabamos no entanto por dar frequentemente a ideia de que a igreja é um extra. A igreja não é um extra. A igreja é aquilo para o qual fomos salvos - a eternidade vai ser vivida em modo de igreja, a noiva de Cristo. A igreja é uma realidade universal com expressão local. Amo a igreja universal de Cristo como um todo, como amo a igreja local a qual pertenço que é a Igreja da Lapa. Não é uma dicotomia mas uma integração das duas. Amo os Domingos porque os Domingos são sagrados. Cada vez mais massacro a consciência do rebanho da Lapa por causa deste assunto da reunião dominical porque odeio o gnosticismo que nos faz ser pessoas que metem a fé a acontecer algures numa consciência que supostamente é mais importante do que hábitos comuns. Quando ouço o relativismo dos evangélicos falando com superioridade moral acerca de como estão acima de cumprirem rituais, juro que me dá vontade de ser católico romano e ir encharcar-me em missas diárias. Enquanto os evangélicos não forem consistentes com hábitos claros e palpáveis que são consequência da fé que têm, continuaremos a ser hologramas de gente. Eu não quero ser um holograma de gente e o amor pela igreja é o antídoto para esse mal.
J de Jesus - Tenho-me esforçado por memorizar partes da Bíblia porque isso faz-me ter viva a palavra dentro de mim e, consequentemente, amar mais Jesus. Acho que este é um bom incentivo para decorarmos partes da Bíblia: amar mais Jesus.
L de listas
Livros
- "Brand Luther" de Andrew Pettegree. Se não tivesse lido este livro fantástico, não teria escrito o meu próprio livro sobre Lutero. "Brand Luther" deveria ser lido por protestantes para perceberem melhor o impacto da Reforma na cultura ocidental, e por não-protestantes pela mesma razão.
- "Galileo's Middle Finger" de Alice Dreger. A política de revolução sexual não gosta das conclusões científicas sempre que as conclusões científicas não confirmam o que a política da revolução sexual deseja.
- "Road To Character" de David Brooks. E felizmente este livro foi traduzido para o português. É politicamente correcto dizer mal dos moralistas, como se nós tivéssemos muita gente a articular um discurso moralmente consistente. Mas um discurso moral é a nova rebeldia.
- "You Are What You Love" de James K. A. Smith. A fé pensa-se mas também de ser vivida em práticas diárias, que constituem uma verdadeira liturgia. Este livro tem exercido uma enorme influência em mim.
- "Hillbilly Elegy" de J. D. Vance. O livro-sensação americano vale a pena. É uma espécie de "Alentejo Prometido" mas com uma aplicação ao cenário eleitoral que se viveu nos Estados Unidos.
- "Alentejo Prometido" de Henrique Raposo. Grande pequeno livro. Este ano dediquei o meu disco "Bairro Janeiro" ao Henrique porque ele é das poucas pessoas no discurso público do nosso país que realmente me inspira. Ainda por cima, tenho a bênção de ser amigo dele. E provavelmente continuaremos a discordar muito, sobretudo quando o assunto é moral sexual (o Henrique tem uma antropologia neo-platónica típica de Século XX, onde a carne não chega a ter dimensão espiritual).
- "A Peculiar Glory" de John Piper. Piper está maduro e, como se espera de coisas maduras, feito para ser apreciado com calma e prazer prolongado. O modo como fala da confiança que devemos reconhecer na Bíblia é tocante.
- "The Songs Of Jesus" de Tim Keller. É um livro de leituras devocionais diárias que me acompanhou todo o ano. Coloca em simples aquilo que nos Salmos (e na escrita do Keller) é profundo. Recomendo vivamente.
- "Born To Run" de Bruce Springsteen. Ainda nem a metade cheguei e Springsteen não é escritor, mas isso não impede de sentirmos a mesma força trovejante dos discos nestas páginas.
- "Alice In Wonderland" de Lewis Carroll. Não é de 2016 (não é mesmo!) mas foi neste ano que o li e que por ele fiquei encantado.
- "Rosemary's Baby" de Ira Levin. Não é de 2016 mas foi neste ano que o li e que por ele fui divertidamente assustado.
- "To Kill A Mockingbird" de Harper Lee. Não é de 2016 mas foi neste ano que o li e nele tive o exemplo de um livro perfeito.
Discos
- O disco homónimo dos Velhos. Cada vez me sinto mais a regressar à posição de partida, no que diz respeito à música feita em Portugal. Essa posição de partida é não gostar de quase nada. É certo que há o talento escorreito dos Capitão Fausto, mas os portugueses continuam a falar uma língua espiritualmente morta que não me interessa. O nosso problema continua a ser a ausência de mensagem e, por irónico que seja, ao menos no tempo em que se cantava em inglês as coisas eram mais coerentes na sua irrelevância literária. Os Velhos falam a minha língua, cantam sobre o que vale a pena cantar e tocam como esses assuntos devem ser tocados. As palavras que eles querem dizer são as que eles dizem mesmo e o barulho que fazem segue o que querem dizer. Que céu que o disco deles é! Só falha a canção que diz "dorme cá hoje" - que disparate fornicatório!
- "Vida Salgada" do Filipe Sambado. Em termos de recheio poético, o Sambado habita um mundo contrário ao meu: fala sobre relações sentimentais, libertinagem, droga e unhas pintadas. No entanto, faz essa música pagã com pinta e critério técnico inesperado (vai além dos filtros espaciais preguiçosos dos millenials). Há ainda uma canção verdadeiramente admirável chamada "Nó do peito".
- "Carga de Ombro" do Sami. Mesmo não sendo o meu disco preferido do Sami, é obviamente melhor do que qualquer outra coisa que por aí ande.
- "You Want It Darker" do Leonard Cohen. Num ano em que o Dylan fez um disco que nem quis ouvir (Bob, esquece homenagens ao Sinatra que isso não interessa a ninguém), o Cohen deixou-nos uma despedida maravilhosa.
- "Santa Monotonia" do Manel Ferreira. Daqui a uma década o Manel vai estar a fazer discos clássicos, oiçam o que vos digo.
- "Facing A Task Unfinished" de Keith and Kristyn Getty. Cada vez me reconcilio mais com a música de louvor (e ainda por cima vi-os ao vivo em Nova Iorque!).
Filmes (vi poucos deste ano)
- "Room" de Lenny Abrahamson
- "Sully" de Clint Eastwood
- "Don't Breathe" de Fede Alvarez
M de música - Este ano editei o disco "Bairro Janeiro". É dos discos que fiz, um dos meus preferidos. Passou muito despercebido, talvez porque não fui especialmente talentoso a fazê-lo ou talvez porque o meu tempo mediático já passou, entre outras razões possíveis. De qualquer modo, houve um núcleo duro que o ouviu com atenção e que gostou muito dele. Isso encorajou-me. Obrigado, ouvintes do "Bairro Janeiro"! Este ano também foi de poucas actuações, mas as poucas foram especiais (uma delas durou quase oito horas seguidas, e destacava ainda a participação no funeral muito bonito da Amor Fúria e o Magusto que se seguiu, que juntou quase todos os companheiros da FlorCaveira). Para o ano há mais, se Deus quiser!
N de Natal - À custa de um problema com o visto, o meu cunhado, o Tiago Nunes Oliveira, teve de passar o Natal connosco. Por causa disso, o Natal foi especialíssimo para nós e, como tenho dito aos miúdos, duvido que voltemos a ter um tão emocionante.
O de oceano - Este ano fui ao oceano 134 vezes, que dá uma média de um mergulho por cada 2,7 dias. Piorei bastante porque no ano passado fui 156 vezes. A ver se melhoro em 2017.
P de pirilau - Talvez uma das coisas mais importantes deste ano tenha sido uma derrota absolutamente inglória que foi a luta contra um cartaz desgraçado de uma peça de teatro de Oeiras. Recordam-se? Escrevi um texto puritano inflamado que em termos concretos deu em zero. Creio que boa parte da minha vocação cívica futura passa por textos puritanos inflamados que correm o risco de dar zero. Mas isso não me preocupa uma vez que o cristianismo está cheio de causas aparentemente perdidas - nós não trabalhamos para êxitos. Posto isto, passarei no entanto a referir-me a Oeiras como o Concelho do Pirilau (a peça em causa chamava-se "Conversas do Pirilau", sendo que a palavra "Pirilau" corrigia graficamente outra que começava por C - a revolução sexual é literariamente bestial, como dá para ver). Oeiras é o Concelho do Pirilau porque não se importou de se ilustrar de cima a baixo com um mau-gosto eticamente reprovável. O Município de Oeiras é do pirilau e é uma pena e uma vergonha para todos os que nele moram.
Q de quantidade de cabelo - Palavra de honra que o meu cabelo começa a diminuir sobretudo no meu hemisfério direito. Será que vai continuar assim? Tenho pena mas o que é que vou fazer? É aceitar e comportar-me de acordo com o facto de que a beleza não é um critério essencial para a nobreza de um homem (de facto, para mim nunca pôde ser).
R de Roma - Já terão lido o texto sobre Roma. Amei Roma e vou insistir para que todos que possam visitem Roma.
S de séries - A Carla Quevedo usa a expressão "chupa-vidas" para falar do Netflix. Em 2016 os Cavacos meteram-se com o Netflix e, felizmente!, ainda não sentiram a vida ser-lhes completamente chupada. Mas reconheço que já nos servimos de umas quantas séries com bom proveito. "Narcos", "Stranger Things", "Making a Murderer", "Black Mirror" (uma espécie de The Twilight Zone aplicado ao progresso tecnológico), "Designated Survivor" (não é tão bom como o "24" mas vê-se bem) e agora o "The Crown" (que estou a gostar muito). Até aqui era um resistente a séries, vendo apenas o "The Walking Dead" (que vale mais pelo meu amor aos zombies do que pela série, que cada vez é mais chata). Agora reconheço que o dispositivo das séries tem mais para dar do que julgava.
T de túmulos - Em bom rigor, pessoas cremadas não deixam túmulos. Mas não é esse o ponto. Muito se fala de quanta gente querida nos foi levada em 2016. Dessa lista custou-me a partida do Leonard Cohen, do Prince e do Alan Vega (dos Suicide), pessoas muito inspiradoras para mim. Mas já que falei em túmulos, era bom que todos deixassem túmulos (como é óbvio na tradição da cristandade, sou contra a cremação). Os túmulos fazem justiça como a cremação não, também porque um túmulo tem palavras, e a palavra é a origem da vida. Um túmulo aponta melhor o poder que susteve a vida que ali é assinalada, que é o poder da palavra com que Deus cria todas as coisas. Tenho de começar a pensar nas palavras para o meu túmulo (e agora uns quantos de vocês pensam: "palavras no túmulo? Depois acabas numa gaveta qualquer...").
U de unidade - É fácil dizer que a unidade é uma coisa boa e, sem dúvida, que é. Mas a unidade às vezes é mais uma meta do que um meio. Mais do que vivermos unidos, vivemos para que nos unamos, e isso custa. Este ano a igreja trouxe-me mais necessidades de viver o pastorado em união com os outros presbíteros. Por razões expectáveis e por outras, vi na prática quanto compensa o valor da unidade. A unidade é desafiadora porque não é um tractor a terraplanar as diferenças, antes pelo contrário. Mas a unidade também é a segurança de que o que nos une é mais importante ainda do que as diferenças. Para uma época como a nossa, tão hipnotizada pelo valor da autenticidade, é bom provar o sabor exigente da unidade.
V de vigilância - 2016 foi um ano em que pensei mais sobre a questão da vigilância espiritual. Vigiar, essa disciplina bíblica mal-afamada nos nossos dias, é viver com a consciência de um pecado que nos pertence mas que ainda não praticámos. Um cristão vigilante é um viajante no tempo: ele viaja até um futuro possível onde comete pecados terríveis, para regressando ao presente evitar que eles cheguem a acontecer. Um cristão vigilante simplificou agora porque complexificou lá à frente - não é uma disciplina para qualquer um. Deus me ajude.
X de x-acto - O x-acto é uma palavra portuguesa que existe mesmo e que começa por xis.
Z de Zaqueu - Zaqueu é um herói bíblico porque juntou o arrependimento (a primeira palavra desta lista) à acção (porque não há modo de o arrependimento existir sem acção). Zaqueu arrependeu-se do dinheiro que tinha roubado enquanto cobrador de impostos, e devolveu quatro vezes mais. Preciso de ser mais como Zaqueu: ser expansivo no arrependimento e ser expansivo na devolução. Orem por mim e pela minha família em 2017!
A de arrependimento - Ao contrário do que se julga, o arrependimento não é para acontecer uma vez na vida quando nos tornamos cristãos. O arrependimento é o que vai acontecendo também para que nos mantenhamos cristãos. Logo, é triste que pessoas tenham décadas de experiência cristã sem lhes ser reconhecido qualquer gesto concreto de arrependimento (e neste sentido, os protestantes não tendo a confissão auricular, deveriam insistir em manter práticas de confissão na sua devoção comum). Os cristãos precisam de assumir o arrependimento com alegria. Parece uma contradição, não parece - a ideia de que arrependimento e alegria combinam? Mas não é. Um dos versículos decorados na casa dos Cavacos é "Servi ao Senhor com temor, alegrai-vos nele com tremor" (Salmo 2:11). Deus nos ajude a ser uma família exuberante em paradoxos de alegria e arrependimento, júbilo e juízo.
B de baptismos - Este ano baptizei 4 pessoas (outras 5 foram baptizadas pelo Mark Bustrum). Duas dessas foram as minhas filhas, a Maria e a Marta. É para isto que Deus cá me pôs. Que alegria pode ser maior para mim?
C de carro - Não sou um homem de carros, antes pelo contrário. Para mim um carro é um meio de chegar de um lugar a outro. Isto significa que sou uma nulidade em relação a problemas de automóveis (até um furo que tive este ano acabou por ser o meu amigo Miguel Pinto a safar-me na fase mais crítica do processo). Surgiu nos últimos tempo um par de rapazes que é uma bênção para a Família Cavaco: o Hugo e o João, que se tornaram a nossa solução mecânica infalível. O Hugo, que é com quem falo mais, dá cabo de qualquer marido diante da sua esposa: imaginem uma pessoa que se licenciou em Filosofia e que, ainda assim, saber consertar viaturas, electricidade, canalização e qualquer outra coisa. Deus inunda-nos da sua graça também com pessoas assim, mesmo que sirvam para confirmar que, como marido, somos zeros de eficácia.
D de dor - Sou um ser humano tragicamente infantil. Raramente tenho experiências sérias de dor. Este ano, numa madrugada de Agosto senti uma dor no peito que me assustou ao ponto de acabar nas urgências com a Ana Rute. Aparentemente, nada era. Mas todo eu fui tremeliques no calor do acontecimento. Deus me dê forças para saber não perder a fé quando me sentir fraco.
E de esgoto - Sei que a imagem é exagerada mas as redes sociais frequentemente são esgotos a céu aberto tratados como se fossem praias. Deixei de ter amigos no Facebook há quase três anos, criando a página de perfil público para ir lá despejar os sermões e os textos do blogue. Isso quer dizer que, com raras excepções, deixei de ver o que as pessoas lá escrevem. A minha vida melhorou imensamente. Por exemplo, não vejo o que as pessoas da minha congregação escrevem, o que aumentou a liberdade dos meus sermões (ninguém vai pensar "esta é para mim" e posso dizer o que devo sem estar a pensa que alguém vai pensar "esta é para mim"). Mas ainda há pouco tempo um amigo chamou-me a atenção para um texto de um outro amigo que temos em comum e que era possível de ser lido por qualquer pessoa. Não resisti e fui lá espreitar (hoje, acho que não deveria ter ido). A coisa era uma vergonha que colocava em causa o bom nome de pessoas que não se podiam defender. No entanto, estava cheia de gente que estimo e respeito, chafurdando naquela lama como quem passa um dia de férias no litoral. Pensei: por que nos des-sensibilizámos ao ponto de preferirmos uma opinião imediata dita em tom porreirista à prudência de pensar duas vezes antes de dizer algo que condena quem não se pode defender? Se mais redes sociais quer dizer menos decência, vale a pena ter menos redes sociais.
F de filhos - Os nossos filhos fazem exames nacionais sozinhos por conta do ensino doméstico e safam-se; os nossos filhos começam a ir aos correios de bicicleta; os nossos filhos aprendem a desenhar caveiras com o pai; os nossos filhos sabem melhor os êxitos da rádio do que nós (e perdem algum gosto musical por conta disso); os nossos filhos gostam muito de ir à biblioteca (até porque o pouco computador que consomem é lá que consomem); os nossos filhos já não vêem só filmes de animação; os nossos filhos volta e meia têm dúvidas teológicas; os nossos filhos também nos entristecem e desobedecem; os nossos filhos aprendem a nadar; os nossos filhos são uma grande alegria.
G de gravata - Como já vos disse, o meu gosto em usar gravata aumenta. É certo que o facto de não ser obrigado a fazê-lo também pode ajudar. Mas o curioso é que quanto mais informal é a geração, menos tolerante se mostra para quem se apresenta de modo tido como mais formal. As pessoas tendem a assumir que a gravata se usa quando há um dever para tal maior do que a pessoa que a usa. Uma época supostamente mais livre de convenções deve reflectir sobre a possibilidade de as pessoas aderirem a convenções não por serem obrigadas mas por serem livres. A procura por alguma elegância é cada vez mais punk rock.
H de Hippotrip - Se ainda não foram ao Hippotrip, por favor arranjem maneira de ir. Se possível, tentem ir com o guia que é o Vasco. Tem muita graça e torna a viagem pela Lisboa seca (em terra) e pela Lisboa molhada (no rio) um verdadeiro acontecimento.
I de igreja - Uma das fraquezas dos protestantes é a eclesiologia. Com a ênfase acertada que damos ao facto de a salvação acontecer pessoa a pessoa, acabamos no entanto por dar frequentemente a ideia de que a igreja é um extra. A igreja não é um extra. A igreja é aquilo para o qual fomos salvos - a eternidade vai ser vivida em modo de igreja, a noiva de Cristo. A igreja é uma realidade universal com expressão local. Amo a igreja universal de Cristo como um todo, como amo a igreja local a qual pertenço que é a Igreja da Lapa. Não é uma dicotomia mas uma integração das duas. Amo os Domingos porque os Domingos são sagrados. Cada vez mais massacro a consciência do rebanho da Lapa por causa deste assunto da reunião dominical porque odeio o gnosticismo que nos faz ser pessoas que metem a fé a acontecer algures numa consciência que supostamente é mais importante do que hábitos comuns. Quando ouço o relativismo dos evangélicos falando com superioridade moral acerca de como estão acima de cumprirem rituais, juro que me dá vontade de ser católico romano e ir encharcar-me em missas diárias. Enquanto os evangélicos não forem consistentes com hábitos claros e palpáveis que são consequência da fé que têm, continuaremos a ser hologramas de gente. Eu não quero ser um holograma de gente e o amor pela igreja é o antídoto para esse mal.
J de Jesus - Tenho-me esforçado por memorizar partes da Bíblia porque isso faz-me ter viva a palavra dentro de mim e, consequentemente, amar mais Jesus. Acho que este é um bom incentivo para decorarmos partes da Bíblia: amar mais Jesus.
L de listas
Livros
- "Brand Luther" de Andrew Pettegree. Se não tivesse lido este livro fantástico, não teria escrito o meu próprio livro sobre Lutero. "Brand Luther" deveria ser lido por protestantes para perceberem melhor o impacto da Reforma na cultura ocidental, e por não-protestantes pela mesma razão.
- "Galileo's Middle Finger" de Alice Dreger. A política de revolução sexual não gosta das conclusões científicas sempre que as conclusões científicas não confirmam o que a política da revolução sexual deseja.
- "Road To Character" de David Brooks. E felizmente este livro foi traduzido para o português. É politicamente correcto dizer mal dos moralistas, como se nós tivéssemos muita gente a articular um discurso moralmente consistente. Mas um discurso moral é a nova rebeldia.
- "You Are What You Love" de James K. A. Smith. A fé pensa-se mas também de ser vivida em práticas diárias, que constituem uma verdadeira liturgia. Este livro tem exercido uma enorme influência em mim.
- "Hillbilly Elegy" de J. D. Vance. O livro-sensação americano vale a pena. É uma espécie de "Alentejo Prometido" mas com uma aplicação ao cenário eleitoral que se viveu nos Estados Unidos.
- "Alentejo Prometido" de Henrique Raposo. Grande pequeno livro. Este ano dediquei o meu disco "Bairro Janeiro" ao Henrique porque ele é das poucas pessoas no discurso público do nosso país que realmente me inspira. Ainda por cima, tenho a bênção de ser amigo dele. E provavelmente continuaremos a discordar muito, sobretudo quando o assunto é moral sexual (o Henrique tem uma antropologia neo-platónica típica de Século XX, onde a carne não chega a ter dimensão espiritual).
- "A Peculiar Glory" de John Piper. Piper está maduro e, como se espera de coisas maduras, feito para ser apreciado com calma e prazer prolongado. O modo como fala da confiança que devemos reconhecer na Bíblia é tocante.
- "The Songs Of Jesus" de Tim Keller. É um livro de leituras devocionais diárias que me acompanhou todo o ano. Coloca em simples aquilo que nos Salmos (e na escrita do Keller) é profundo. Recomendo vivamente.
- "Born To Run" de Bruce Springsteen. Ainda nem a metade cheguei e Springsteen não é escritor, mas isso não impede de sentirmos a mesma força trovejante dos discos nestas páginas.
- "Alice In Wonderland" de Lewis Carroll. Não é de 2016 (não é mesmo!) mas foi neste ano que o li e que por ele fiquei encantado.
- "Rosemary's Baby" de Ira Levin. Não é de 2016 mas foi neste ano que o li e que por ele fui divertidamente assustado.
- "To Kill A Mockingbird" de Harper Lee. Não é de 2016 mas foi neste ano que o li e nele tive o exemplo de um livro perfeito.
Discos
- O disco homónimo dos Velhos. Cada vez me sinto mais a regressar à posição de partida, no que diz respeito à música feita em Portugal. Essa posição de partida é não gostar de quase nada. É certo que há o talento escorreito dos Capitão Fausto, mas os portugueses continuam a falar uma língua espiritualmente morta que não me interessa. O nosso problema continua a ser a ausência de mensagem e, por irónico que seja, ao menos no tempo em que se cantava em inglês as coisas eram mais coerentes na sua irrelevância literária. Os Velhos falam a minha língua, cantam sobre o que vale a pena cantar e tocam como esses assuntos devem ser tocados. As palavras que eles querem dizer são as que eles dizem mesmo e o barulho que fazem segue o que querem dizer. Que céu que o disco deles é! Só falha a canção que diz "dorme cá hoje" - que disparate fornicatório!
- "Vida Salgada" do Filipe Sambado. Em termos de recheio poético, o Sambado habita um mundo contrário ao meu: fala sobre relações sentimentais, libertinagem, droga e unhas pintadas. No entanto, faz essa música pagã com pinta e critério técnico inesperado (vai além dos filtros espaciais preguiçosos dos millenials). Há ainda uma canção verdadeiramente admirável chamada "Nó do peito".
- "Carga de Ombro" do Sami. Mesmo não sendo o meu disco preferido do Sami, é obviamente melhor do que qualquer outra coisa que por aí ande.
- "You Want It Darker" do Leonard Cohen. Num ano em que o Dylan fez um disco que nem quis ouvir (Bob, esquece homenagens ao Sinatra que isso não interessa a ninguém), o Cohen deixou-nos uma despedida maravilhosa.
- "Santa Monotonia" do Manel Ferreira. Daqui a uma década o Manel vai estar a fazer discos clássicos, oiçam o que vos digo.
- "Facing A Task Unfinished" de Keith and Kristyn Getty. Cada vez me reconcilio mais com a música de louvor (e ainda por cima vi-os ao vivo em Nova Iorque!).
Filmes (vi poucos deste ano)
- "Room" de Lenny Abrahamson
- "Sully" de Clint Eastwood
- "Don't Breathe" de Fede Alvarez
M de música - Este ano editei o disco "Bairro Janeiro". É dos discos que fiz, um dos meus preferidos. Passou muito despercebido, talvez porque não fui especialmente talentoso a fazê-lo ou talvez porque o meu tempo mediático já passou, entre outras razões possíveis. De qualquer modo, houve um núcleo duro que o ouviu com atenção e que gostou muito dele. Isso encorajou-me. Obrigado, ouvintes do "Bairro Janeiro"! Este ano também foi de poucas actuações, mas as poucas foram especiais (uma delas durou quase oito horas seguidas, e destacava ainda a participação no funeral muito bonito da Amor Fúria e o Magusto que se seguiu, que juntou quase todos os companheiros da FlorCaveira). Para o ano há mais, se Deus quiser!
N de Natal - À custa de um problema com o visto, o meu cunhado, o Tiago Nunes Oliveira, teve de passar o Natal connosco. Por causa disso, o Natal foi especialíssimo para nós e, como tenho dito aos miúdos, duvido que voltemos a ter um tão emocionante.
O de oceano - Este ano fui ao oceano 134 vezes, que dá uma média de um mergulho por cada 2,7 dias. Piorei bastante porque no ano passado fui 156 vezes. A ver se melhoro em 2017.
P de pirilau - Talvez uma das coisas mais importantes deste ano tenha sido uma derrota absolutamente inglória que foi a luta contra um cartaz desgraçado de uma peça de teatro de Oeiras. Recordam-se? Escrevi um texto puritano inflamado que em termos concretos deu em zero. Creio que boa parte da minha vocação cívica futura passa por textos puritanos inflamados que correm o risco de dar zero. Mas isso não me preocupa uma vez que o cristianismo está cheio de causas aparentemente perdidas - nós não trabalhamos para êxitos. Posto isto, passarei no entanto a referir-me a Oeiras como o Concelho do Pirilau (a peça em causa chamava-se "Conversas do Pirilau", sendo que a palavra "Pirilau" corrigia graficamente outra que começava por C - a revolução sexual é literariamente bestial, como dá para ver). Oeiras é o Concelho do Pirilau porque não se importou de se ilustrar de cima a baixo com um mau-gosto eticamente reprovável. O Município de Oeiras é do pirilau e é uma pena e uma vergonha para todos os que nele moram.
Q de quantidade de cabelo - Palavra de honra que o meu cabelo começa a diminuir sobretudo no meu hemisfério direito. Será que vai continuar assim? Tenho pena mas o que é que vou fazer? É aceitar e comportar-me de acordo com o facto de que a beleza não é um critério essencial para a nobreza de um homem (de facto, para mim nunca pôde ser).
R de Roma - Já terão lido o texto sobre Roma. Amei Roma e vou insistir para que todos que possam visitem Roma.
S de séries - A Carla Quevedo usa a expressão "chupa-vidas" para falar do Netflix. Em 2016 os Cavacos meteram-se com o Netflix e, felizmente!, ainda não sentiram a vida ser-lhes completamente chupada. Mas reconheço que já nos servimos de umas quantas séries com bom proveito. "Narcos", "Stranger Things", "Making a Murderer", "Black Mirror" (uma espécie de The Twilight Zone aplicado ao progresso tecnológico), "Designated Survivor" (não é tão bom como o "24" mas vê-se bem) e agora o "The Crown" (que estou a gostar muito). Até aqui era um resistente a séries, vendo apenas o "The Walking Dead" (que vale mais pelo meu amor aos zombies do que pela série, que cada vez é mais chata). Agora reconheço que o dispositivo das séries tem mais para dar do que julgava.
T de túmulos - Em bom rigor, pessoas cremadas não deixam túmulos. Mas não é esse o ponto. Muito se fala de quanta gente querida nos foi levada em 2016. Dessa lista custou-me a partida do Leonard Cohen, do Prince e do Alan Vega (dos Suicide), pessoas muito inspiradoras para mim. Mas já que falei em túmulos, era bom que todos deixassem túmulos (como é óbvio na tradição da cristandade, sou contra a cremação). Os túmulos fazem justiça como a cremação não, também porque um túmulo tem palavras, e a palavra é a origem da vida. Um túmulo aponta melhor o poder que susteve a vida que ali é assinalada, que é o poder da palavra com que Deus cria todas as coisas. Tenho de começar a pensar nas palavras para o meu túmulo (e agora uns quantos de vocês pensam: "palavras no túmulo? Depois acabas numa gaveta qualquer...").
U de unidade - É fácil dizer que a unidade é uma coisa boa e, sem dúvida, que é. Mas a unidade às vezes é mais uma meta do que um meio. Mais do que vivermos unidos, vivemos para que nos unamos, e isso custa. Este ano a igreja trouxe-me mais necessidades de viver o pastorado em união com os outros presbíteros. Por razões expectáveis e por outras, vi na prática quanto compensa o valor da unidade. A unidade é desafiadora porque não é um tractor a terraplanar as diferenças, antes pelo contrário. Mas a unidade também é a segurança de que o que nos une é mais importante ainda do que as diferenças. Para uma época como a nossa, tão hipnotizada pelo valor da autenticidade, é bom provar o sabor exigente da unidade.
V de vigilância - 2016 foi um ano em que pensei mais sobre a questão da vigilância espiritual. Vigiar, essa disciplina bíblica mal-afamada nos nossos dias, é viver com a consciência de um pecado que nos pertence mas que ainda não praticámos. Um cristão vigilante é um viajante no tempo: ele viaja até um futuro possível onde comete pecados terríveis, para regressando ao presente evitar que eles cheguem a acontecer. Um cristão vigilante simplificou agora porque complexificou lá à frente - não é uma disciplina para qualquer um. Deus me ajude.
X de x-acto - O x-acto é uma palavra portuguesa que existe mesmo e que começa por xis.
Z de Zaqueu - Zaqueu é um herói bíblico porque juntou o arrependimento (a primeira palavra desta lista) à acção (porque não há modo de o arrependimento existir sem acção). Zaqueu arrependeu-se do dinheiro que tinha roubado enquanto cobrador de impostos, e devolveu quatro vezes mais. Preciso de ser mais como Zaqueu: ser expansivo no arrependimento e ser expansivo na devolução. Orem por mim e pela minha família em 2017!