quarta-feira, fevereiro 24, 2016

Um dos livros do ano acabou de ser publicado e vocês não devem hesitar

Comecemos pelo princípio. Em primeiro lugar, vocês compram o "Alentejo Prometido" por três euros e quinze cêntimos no Pingo Doce, o que significa que na próxima vez que forem às compras, podem levar literatura sem dar conta disso, entre as minis de Super Bock e as caixas de Nespresso.

Em segundo lugar, aviso que não sou um leitor imparcial. Aliás, a minha religião não me permite acreditar na existência de leitores imparciais. Na minha religião crê-se no pecado original que, trocado por miúdos, significa que there's no such thing as leitores imparciais. Só há leitores pecadores, uns mais que outros. Ora, como leitor pecador que sou, aviso já que esse efeito do pecado na leitura de "Alentejo Prometido" pode ser amplificado por ser amigo do Henrique. Sou amigo do Henrique. E o Henrique é um amigo  meu que, ainda por cima, admiro. Logo, li este livro que é escrito por um autor que é meu amigo e que, ainda por cima, admiro. Esqueçam leituras imparciais da minha parte.

Em terceiro lugar, livros como "Alentejo Prometido" tenho lido poucos. Livros portugueses, escritos por portugueses, que querem pensar sobre o que é que significa ser português. A minha escassa cultura não me dá grandes referências nas gerações anteriores, mas na minha geração este negócio tem começado a aparecer em pessoas como o Henrique e o Bruno Vieira Amaral. Aproveito para dizer que o Henrique e o Bruno estão a fazer uma coisa que acho mesmo nova entre nós. Confesso, mesmo que isto soe saloio, que gostava de ser metido na mesma equipa do Henrique e do Bruno. Essa é uma equipa que miúdos que escrevem sobre Portugal não pertencendo às linhagens de quem se espera que escrevam sobre Portugal. O equipamento do Henrique e do Bruno é da cor dos bairros suburbanos onde cresceram. Eu, por ser um miúdo suburbano, sinto-me a jogar em casa quando os leio. E torço por eles. Eles são como eu (pelo menos, quero acreditar nisso).

Em quarto lugar, o Henrique (como o Bruno) só sabe fazer sociologia se fizer também biografia (por exemplo, em "Alentejo Prometido" há uma passagem acerca da estrada onde o Henrique tinha medo de andar de bicicleta que se vai revelar o lugar de onde saiu o assassino de Sidónio Pais - é um trecho brilhante). Que se dane o pudor porque Deus criou-nos pessoas e não funcionários. O Henrique começa e acaba "Alentejo Prometido" a falar sobre ele mesmo. Eu, nem meia-dúzia de livros da colecção da Fundação Francisco Manuel dos Santos li, mas fico numa brasa das boas quando vejo o Henrique, tal como o Bruno em "Aleluia", a dar literatura pura e dura a pretexto de "retratos da fundação". É este o caminho e é no Pingo Doce que se vai fazer a revolução literária - também quero ter livros no super-mercado!

Em quinto lugar, o Henrique não usa factos para encaixar opiniões prévias. Há um trabalho sólido de consulta e de análise que dá espinha às frases mais aventureiras do Henrique. O Henrique faz a ideologia da verdade, por muito incómodas que estas duas palavras sejam no nosso ambiente intelectual. Por outro lado, o facto de o Henrique não querer ser chato com factos, faz com que acabemos com um livro que efectivamente nos informa mas que também nos encanta. É assim que se faz.

Em sexto lugar, deixem-me abreviar muito muito muito, em dez pontos, as teses que me pareceram centrais no "Alentejo Prometido":
1) Alguns dos supostos pesadelos culturais serviram de sonhos para muitos (a liberdade chegou para muita gente à boleia da Guerra Colonial e da migração).
2) A ignorância da juventude sobre o passado é um dos sintomas mais claros do nosso atraso cultural.
3) A verdadeira opressão alentejana, antes de ser política, era moral ("o que oprimia as mulheres do campo não era a magra jorna, era o facto de serem encaradas como meras extensões privadas das casas senhoriais", pág. 40).
4) A migração para a capital não tem de ser uma história de desenraizamento, pode ser ser uma história de liberdade ("a cidade e a fábrica significaram uma nova dignidade pessoal", pág. 41). E os alentejanos sobretudo migraram, não emigraram.
5) A ética de trabalho alentejana não é uma vitória mas uma rendição às condições implacáveis da natureza ("o alentejano só podia ser escravo da natureza e, tragicamente, acabou por desenvolver uma cultura que eleva essa escravatura ao estatuto de imperativo moral", pág. 65).
6) Logo, os alentejanos não olham para sua terra como a oportunidade de uma história, mas apenas como o encerramento dela.
7) Esta aridez espiritual do Alentejo também é resultado de ele ser a nossa Austrália ("povoado com o refugo do norte", pág. 56), território onde a ordem ficou por entrar.
8) A ausência de Deus no Alentejo está combinada com a ausência de um passado que ofereça uma história ("o alentejano não está ancorado a um passado familiar e não navega em direcção a um conceito redentor de futuro", pág. 62).
9) A cultura alentejana não integra o conceito de família ("além de desconfiar dos vizinhos, do Estado e da Igreja, o alentejano desconfia da própria família. O estado da natureza está no sangue", pág. 77), e velhos deprimidos não querem precisar de depender de filhos capazes de os ajudar.
10) O suicídio é uma consequência natural para quem nasce num lugar que não tem como sua terra, para quem trabalha como resultado de uma maldição da natureza, para quem Deus não desce cá abaixo, e para quem não se sente inspirado para construir uma história ("a cultura alentejana não tem palavras que permitem a contestação moral do suicida", pág. 84).

Em sétimo lugar, este pequeno livro (107 páginas) fulgurante devia ser lido por todos: políticos, pastores, profissionais, desempregados, jovens, velhos, rapazes e raparigas. Porque é do nosso país que trata. Que o leiamos como o gesto patriótico possível, até porque o Henrique o acaba reconhecendo que a terra que lhe pertence é mais aquela que vem da escolha do que propriamente da raiz. Se formos portugueses à boleia da liberdade que temos para isso, já é excelente.



terça-feira, fevereiro 23, 2016

Ouvir

Se nunca sentiste que pessoas passaram a gostar menos de ti porque gostas de Jesus, das duas uma: ou és um cristão muito imaturo ou, pior ainda, não és cristão.

O sermão de Domingo passado, chamado "Ser Felizmente Odiado", pode ser ouvido aqui.


segunda-feira, fevereiro 22, 2016

O texto da faladura de sete minutos que botei no Sábado passado

[No Sábado passado estive no "Faith's Night Out" a falar sobre "A Força do Evangelho numa Cultura de Distração" - eis o texto que partilhei.]

Imaginem uma das piores que nos pode acontecer na vida: perdermos a capacidade de fazermos o que queremos e sermos levados, contra a nossa vontade, para um lugar que se está nas tintas para quem somos. Isto aconteceu aos judeus quando Jerusalém foi invadida pelos Babilónios por volta do ano 587 A.C. O Rei Nabucodonosor, o conquistador da capital israelita, exilou a maior parte dos judeus para a Babilónia.

O que é que geralmente um povo conquistador faz? Trabalha para que os povos conquistados se adaptem e abandonem os seus traços de carácter que levantem ondas contra os planos do povo conquistador. O povo conquistador até pode dar liberdade para que o povo conquistado guarde alguma da sua personalidade, até porque é uma sensação exótica agradável conhecer costumes e culturas diferentes. Não é difícil que se sugira mesmo ao povo conquistado que cante algumas das suas canções folclóricas, para o entretenimento do povo conquistador. Significa que quando somos dominados, temos um acesso bem limitado às melhores coisas da nossa identidade.

O Salmo 137 conta-nos precisamente uma circunstância destas. Os Babilónios diziam aos judeus exilados: “cantem-nos lá umas cantiguinhas das vossas”. Ordem à qual o Salmo responde: “nem pensar! Como podemos cantar alegres se o nosso coração ficou na nossa terra?” E, como protesto, os judeus exilados penduraram as suas harpas nos salgueiros das margens dos rios da Babilónia (como lembra a canção gospel americana, “By The Rivers Of Babylon”, celebrizada há quatro décadas pelos Boney M). E depois o Salmo 137 vai mais longe: “Se eu me esquecer de ti, Jerusalém, que se grude a minha língua ao céu da boca” (no verso 5), como quem diz, mais vale ficar mudo para sempre que esquecer quem sou. Acaba-se a cantoria de uma vez por todas. Os judeus exilados já não estavam para cantigas. A lógica da greve sinfónica deles era: se querem fazer da nossa cultura apenas uma musiquinha, resistimos ao vosso domínio.

O que tem isto a ver com “a força do evangelho numa cultura de distração”? Poderá ter muito a ver se, tal como os judeus na Babilónia, reconhecermos que aquilo que somos está vitalmente ligado à nossa memória. Tal como o judeu exilado, que sabia que se se esquecesse de Jerusalém era como se perdesse quem era, nós como cristãos também ficamos sem identidade se não nos recordarmos do evangelho. Nesse sentido, a relação que estabelecemos com o evangelho, a palavra revelada de Deus na Bíblia, não pode ser uma cantiguinha folclórica que tocamos para turista ver. Tem de nos estar nas tripas e no coração. Se o evangelho perder força em nós, a distração poderá ser o sinal que já estamos dominados.

Ora, quero pintar intencionalmente a distração com cores negras. A distração é um dos nossos maiores adversários se nos entretiver ao ponto de nos fazer esquecer quem somos. Seguindo esta linha de raciocínio, a distração não adiciona coisas à nossa vida, mas subtrai. A nossa tendência é pensar que o mundo à nossa volta de ecrãs e atalhos nos dá mais coisas. A verdade é que o mundo à nossa volta de ecrãs e atalhos pode antes roubar-nos coisas - sendo uma delas a noção de quem nós próprios somos. Se de cada vez que nos distraímos pensássemos que corremos o risco de nos despersonalizar, provavelmente resistiríamos mais a muitas distrações. A distração domina-nos limitando quem somos, como uma verdadeira Babilónia.

Para o judeu exilado, estava junto “o que eu sou” com “aquilo que quero saber de Jerusalém” - não dava para separar. Como nos temos habituado a distinguir o que somos do que sabemos, passamos tempo a encher o contentor do que sabemos, independentemente do tamanho do contentor do que somos. A ironia é que não estamos a expandir o nosso domínio, estamos apenas a expandir o poder do nosso dominador. Na prática, encharcamos o nosso cérebro numa bebedeira de informação, mas depois queremos que ele corra como um atleta. A nossa distração com a informação à nossa volta, é o mesmo que irmos para os copos com a Rosa Mota na véspera da corrida, e no dia seguinte não lhe perdoarmos por ela ter perdido a maratona. Não faz sentido.

Logo, vale a pena um conselho final: de certo modo, não precisamos que Deus nos dê mais cérebro para sentirmos a força do evangelho. Não precisamos de aumentar o nosso domínio. Só precisamos de dar menos do nosso cérebro ao que nos distrai. Só precisamos de diminuir o poder do nosso dominador. O truque da distração, ao dar-nos mais e mais, é dizer-nos que até a Babilónia pode ser Jerusalém. Mas não é verdade. O que precisamos é de menos e esse menos é regressar a Jerusalém. E enquanto não chegamos lá, pelo menos não nos esquecemos dela. Por isto mesmo, precisamos de lembrar que o verbo lembrar é sagrado. Porque vamos saber que lembrar quem somos, lembrar Jerusalém, é ter no evangelho a nossa pátria. Que tal despendurar as harpas dos salgueiros da Babilónia, desligando-nos da distração que nos domina, e regressarmos à Jerusalém que é a relação próxima com o evangelho? Para fazermos isto podemos voltar a entoar os nossos cânticos. Temos muita música e muito quilómetro pela frente!



sábado, fevereiro 20, 2016

Amanhã

Amanhã o sermão chama-se "Ser Felizmente Odiado" e lança uma provocação: se o facto de gostares de Jesus ainda não fez com que gostassem menos de ti, das duas uma - ou és um cristão muito imaturo ou não és cristão. A coisa boa a sair deste sermão é que, na prática, aprendemos com esta pedagogia forte a viver mais descansados com o facto de não termos de agradar a toda a gente. Às 11.30h vamos com coragem até à Palavra (Escola Bíblica Dominical às 10.30h)!

terça-feira, fevereiro 16, 2016

Ouvir

Se te achas moralmente superior aos que se acham moralmente superiores, a igreja é o lugar perfeito para ti – serás apenas mais um dos muitos hipócritas em recuperação.

O sermão de Domingo passado, chamado "Farisaísmo anti-farisaico", pode ser ouvido aqui.

segunda-feira, fevereiro 15, 2016

Note to self

Será que a nossa dificuldade em lidar com a falta cortesia é boa ou é má? Até que ponto é que viver esperando a rudeza dos outros é uma maneira de estarmos preparados para os amarmos melhor? Tenho pensado nisto porque, ainda há um par de dias, quando surpreendido com uma pergunta colocada de um modo nada amigável, fiquei a matutar na questão: se enquanto cristão reformado sou antropologicamente pessimista, por que me agitei quando alguém me devolveu esse pessimismo antropológico numa indagação hostil? Se fosse um cristão reformado mais profundo, deveria não só ter acolhido a hostilidade da questão mas, quem sabe, até dizer: finalmente um ser humano que faz justiça à sua humanidade! Note to self: Tiago, faz-te um homenzinho e não esperes delicadezas de homens que nasceram com o pecado original.

sexta-feira, fevereiro 12, 2016

A minha mulher a pôr tudo em pratos limpos no meu teledisco novo

A última vez que assinei um disco como Tiago Guillul foi há meia dúzia de anos. O tempo passa depressa e a passagem do tempo é também um dos assuntos deste disco novo chamado "Bairro Janeiro". O "Bairro Janeiro" é onde cresci, na fronteira entre a Amadora e Queluz.

O disco "Bairro Janeiro" foi gravado na Igreja da Lapa pelo Luís Severo, no Verão de 2015. A ideia foi captar os sons como eles são, sem efeitos e com a acústica do salão principal a cumprir o seu papel. Também por causa disso, o "Bairro Janeiro" soa mais como os discos antigos da FlorCaveira, sem medo da baixa fidelidade. Não fazia sentido gravar canções que falam do passado, mostrando vergonha dele.

"Bairro Janeiro" é o disco nº 50 da FlorCaveira, que criámos em 1999. O primeiro single chama-se "True Believer" e o teledisco faz jus à política de artesanato da editora - a manufactura vai dos pratos pintados pela mãe à máquina de escrever da filha, passando pela realização tosca do pai. A crença na religião e punk rock persiste.


quinta-feira, fevereiro 11, 2016

Hoje

Não precisam de se dar ao trabalho de ir porque já está esgotado. Mas podem sempre lembrar-se de mim nas vossas orações. E ler os Diários do Kafka.

quarta-feira, fevereiro 10, 2016

Ouvir

A Igreja não é um extra para quem já se salvou. A Igreja é aquilo para o qual fomos salvos. Um cristão que desvaloriza a igreja é uma contradição.

O sermão de Domingo passado, que pergunta "Cristianismo sem Igreja?", pode ser ouvido aqui.


terça-feira, fevereiro 09, 2016

A quadra da quadra

Qualquer cristão decente
esfrega as mãos de contente
quando se prevê temporal
para os dias de Carnaval.

Lembrado pelo Francisco Mendes da Silva.

sexta-feira, fevereiro 05, 2016

Um comunista à antiga

Provavelmente é exagero meu mas fico com a ideia que os comunistas noutro tempo eram mais sinceros. E, se assim for, Slavoj Žižek é um homem de outro tempo, tempo esse em que um comunista podia ter orgulho do seu comunismo. Žižek escreve "Problemas no Paraíso" (um título fantástico!) e tem a coragem de terminá-lo dizendo: "Não estivemos já todos nesta situação nas últimas décadas, esquecendo-nos do nome «comunismo» para designar o derradeiro horizonte das nossas lutas emancipatórias? Chegou a altura de nos recordarmos totalmente desta palavra." Os comunistas que, varridos por aquilo que eles mesmos provocaram, acabaram a fazer das palavras uma matéria nada estável, deviam como Žižek voltar a acreditar no que dizem - e deviam voltar a dizer aquilo em que acreditam. Um dos méritos de "Problemas no Paraíso" é essa vontade de clareza no seu comunismo, ainda que clareza dificilmente possa ser um termo para descrever a maneira de Zizek escrever.

Žižek aplica-se explicando que o comunismo não é só um lugar político onde se quer chegar, o comunismo é também a maneira de chegar a esse lugar. Diria que, nesta relação entre produto final e processo, se é complicado olhar para o comunismo como o sítio porreiro no fim da viagem, mais complicado é ainda perceber como é que o comunismo nos transporta até ele. E, no entanto, é a este jogo de "onde temos de chegar é ali!" e "a maneira de chegar ali é esta!" que Žižek tem dedicado a sua carreira. Acrescentaria que, em termos palpáveis, as respostas dadas por Žižek são bastante inconvincentes, mas não há como negar que isso não tem detido a sua popularidade. O que nos ensina o grau lucrativo de um negócio improvável: o futuro dos comunistas é uma espécie de turismo espacial em que se reconhece que ainda não há hotéis em Marte mas se garante que eles são muito melhores que os da Terra.

Para que o comunismo mantenha este precioso equilíbrio entre abrir o apetite sem saber cozinhar é preciso, claro está, denegrir o monopólio da digestão. Comer para existir? Isso é para neandertais. Por isso, o comunismo fez uma caminhada filosófica lenta mas firme, durante o Século XX, de abolir a realidade como um argumento razoável. A realidade é o último argumento das pessoas que não sabem argumentar, e por isso Žižek frequentemente torna o absurdo como a única solução possível. Mais ainda: só o absurdo pode ser a solução quando o possível foi interdito na iluminação intelectual comunista. Um exemplo mais doméstico do fenómeno são as investidas do nosso António Guerreiro, agora no Público, contra a "realidade", essa categoria burguesa.

Exemplifiquemos olhando para como Žižek fala do problema das dívidas económicas. "Na crise corrente (...) uma das reacções (...) é recorrer a uma directriz do senso comum: «As dívidas têm de ser pagas!» (...) - e isto, claro está, é a pior escolha que se pode fazer, uma vez que deste modo, se é imediatamente apanhado numa espiral descendente. (...) No plano material directo do totalitarismo social, as dívidas são, de algum modo, irrelevantes, até mesmo inexistentes, já que a humanidade consome o que produz - por definição, não é possível consumir mais (págs. 46 e 47)." Com um esforço assinalável, Žižek, ao revelar a maquinaria arbitrária do sistemas económicos contemporâneos, quer abolir a razoabilidade da ideia de se pagar o que se deve. Devemos conceder-lhe que, de facto, há arbitrariedades assinaláveis na economia que temos (cheias da injustiça natural de qualquer sistema "real" - perdoem-me o uso inevitável do termo), mas o que mais nos impressiona não é que Žižek seja contra injustiças económicas, é que a pretexto de ser contra elas, acabe a destruir o próprio conceito de justiça.

Como é que o comunismo consegue este feito, de tão preocupado que está com as injustiças económicas terminar num lugar onde o conceito de justiça foi à viola? Não sei explicar completamente, mas sei que o ódio comunista aos seus velhos inimigos participa do processo. Ainda neste campo da dívida, Žižek é certeiro a apontar a origem do problema. E este é um dos grandes méritos do bom Slavoj (e dos comunistas no geral): a insistência numa leitura permanentemente ideológica da existência. Não é raro ouvirmos vozes cândidas nos nossos debates políticos que acusam os seus opositores de terem objectivos ideológicos, como se ter objectivos ideológicos fosse uma coisa terrível em política. Os comunistas sabem, e com razão, que tudo é ideologia, desde que acordamos pela manhã e colocamos os pés no chão. Por isso, Žižek lembra na questão da dívida que a culpa está no seu mais antigo adversário chamado cristianismo. E ele tem razão. Žižek quer ultrapassar os tradicionais conceitos de justiça (como o de ser justo alguém que está a dever, pagar o que deve) atirando-se à religião da justificação.

"O capitalismo actual é assombrado por um fantasma: o fantasma da dívida. (...) O cristianismo aperfeiçoou este mecanismo: o seu Deus todo-poderoso quis uma dívida que fosse infinita; ao mesmo tempo, o sentimento de culpa pelo seu não pagamento foi interiorizado. (...) A dívida, com o seu domínio sobre comportamentos passados e futuros e com o seu alcance moral, foi uma ferramenta governamental formidável. O que restou foi que fosse secularizada (págs. 63 e 65)." Žižek acerta quando por trás dos problemas económicos encontra teorias teológicas. Enquanto cristão, confesso que esta é uma das coisas que admiro em todo o bom comunista. O bom comunista vê-me como um alvo a abater e não como alguém a tolerar. A esquerda pasteurizada que sobreviveu aos rigores dos invernos pós-muro, deixando cair o termo comunismo, perdeu esta saudável compreensão de que tudo acaba em Deus: crendo nele ou eliminando-o. Por cada socialista cristão que conheço, tenho saudades de um vermelho que me trate com o respeito mínimo de me reconheça como um inimigo. Žižek sabe que o fundamento último das questões económicas reside na religião. Haja quem mostre respeito por Marx.

Mas também é flagrantemente neste chão que Žižek se desequilibra. Se Žižek se desembaraçasse da religião de uma vez por todas, quem o poderia acusar de incoerência? O problema está em que Žižek só a larga selectivamente. O comunismo malvadiza o capitalismo para tornar todas as pessoas moralmente inimputáveis. Como assim? O comunismo atribui ao capitalismo o pior dos defeitos mas nunca aplica a mesma lógica aos seres humanos. Os seres humanos são sempre um resultado do seu ambiente, já o capitalismo congrega todos os vícios satânicos. Quantos mais o comunismo prega puritanamente contra os pecados do sistema económico, mais garante que nenhum ser humano pode ser avaliado em termos tão pobremente binários como os das categorias de bem e mal. Essa é a razão porque em mais de duzentas páginas se pode sentir que Žižek se irrita com os desvarios do capital, mas nem quando fala de Hitler se sente qualquer emoção palpável. Žižek, como comunista, tem uma teoria económica espessa baseada numa finíssima antropologia - o mal está sempre nas coisas e nunca nas pessoas (precisamente o contrário do que Jesus ensinou). Fica uma religião pela metade.

Eu podia ir mais fundo nisto mas ia tornar-me ainda mais chato. Ia explicar que o comunismo desantropologiza as pessoas porque não passa de mais uma das muitas sequelas gnósticas que a história nos deu. Mas para isso tinha de vos explicar que o gnosticismo é o parasita do cristianismo, que em vez de nos ligar com Deus nos liga connosco próprios, mesmo que às custas de uma noção rarefeita de divindade, e vocês não estão para aqui virados. Tinha de vos explicar que o gnosticismo sempre nos deu a imanência como antídoto à árdua transcendência cristã, citando frases de Žižek como "o comunismo permanece o horizonte, o único horizonte, a partir do qual é possível não só julgar como analisar o que se passa na actualidade - uma espécie de medida imanente do que correu mal (pág. 43)", mas para isso vocês iam ficar com a cabeça cheia e é aborrecido. No fundo, tinha de vos revelar que por trás de cada iluminado comunista há um velho gnóstico mal-disposto, ansioso por provar aos outros que o cristianismo, ao acreditar num mundo de espíritos e de carne, desmancha o prazer de quem gosta de desmanchar prazeres aos outros - uma definição muito pessoal e breve que tenho para comigo acerca do que é o comunismo, a partir do temperamento dos comunistas.

Depois iam ficar com a ideia errada de que eu não gosto do Žižek, o que não é verdade. Há tanta coisa divertida no Zizek que eu continuo a lê-lo, depois destes anos todos. É certo que estes "Problemas no Paraíso" padecem de um raciocínio mais ferido que o dos outros livros, porque ao menos nos outros livros o Žižek não se propunha avaliar os problemas económicos com alguma seriedade. Por causa do contexto mais técnico deste volume, fica mais à mostra a insuficiência lógica do Slavoj; a tentativa de contar anedotas seguidas como se isso descesse uma grelha mágica para a compreensão dos factos (isto para não falar de piadas porcas e ofensivas que pertencerem hoje a um comunista só demonstra o estado a que o comunismo pode chegar, como o velho jarreta da aldeia ansioso em apalpar meninas da escola); a frase de efeito como elástico para saltos epistemológicos; a crença na revolução como uma romântica re-humanização do mundo (é coerente que depois de ter despersonalizado as pessoas, o comunismo tente reanimá-las à custa da revolução); o desprezo indisfarçável que sente pela democracia (quem nos dera ver o mesmo nível sinceridade na nossa extrema esquerda); a constante re-interpretação do conceito de liberdade (com méritos assinaláveis na caricatura no consumidor); ou mesmo a convicção de que precisamos de "Senhores" como directores do progresso revolucionário (o comunismo sempre precisou tanto de super-homens como o fascismo).

No entanto, prefiro terminar dizendo que continuo a achar graça ao esticar da corda do Žižek. Claro que esta é uma característica que tem sempre algum eco num cristão protestante porque os cristãos protestantes funcionam também à base de esticar a corda: não basta dizer a verdade, é preciso dizê-la como se fosse boa demais para ser verdade (e, nesse sentido, é preciso dizer a verdade como se fosse mentira). Por isso há frases de Žižek que compensam a desonestidade intelectual de todo o livro (não é por acaso que o aforista católico Chesterton continua dos autores mais citados por ele). "O verdadeiro triunfo não é a vitória sobre o inimigo; a verdadeira vitória acontece quando o próprio inimigo começa a utilizar a nossa linguagem, de modo que as nossas ideias construam a fundação de todo o campo (pág. 240)." O melhor em ler Žižek é rirmo-nos da maneira como ele fala, não é falar como ele.



terça-feira, fevereiro 02, 2016

Ouvir

Não somos uma igreja de festa instantânea porque Jesus não foi de festa instantânea. Nicodemos está numa de "siga para bingo" e Jesus "alto e pára o baile" – ou te fazes outro Nicodemos ou comigo não te safas. O nosso estilo de igreja também deve ser em função da substância do que cremos. Ser igreja não é fácil nem é suposto ser. Ser cristão não é fácil nem é suposto ser.

O sermão de Domingo passado, chamado "O descaramento de dizer que se tem uma relação pessoal com Deus", pode ser ouvido aqui.