Um dos livros do ano acabou de ser publicado e vocês não devem hesitar
Comecemos pelo princípio. Em primeiro lugar, vocês compram o "Alentejo Prometido" por três euros e quinze cêntimos no Pingo Doce, o que significa que na próxima vez que forem às compras, podem levar literatura sem dar conta disso, entre as minis de Super Bock e as caixas de Nespresso.
Em segundo lugar, aviso que não sou um leitor imparcial. Aliás, a minha religião não me permite acreditar na existência de leitores imparciais. Na minha religião crê-se no pecado original que, trocado por miúdos, significa que there's no such thing as leitores imparciais. Só há leitores pecadores, uns mais que outros. Ora, como leitor pecador que sou, aviso já que esse efeito do pecado na leitura de "Alentejo Prometido" pode ser amplificado por ser amigo do Henrique. Sou amigo do Henrique. E o Henrique é um amigo meu que, ainda por cima, admiro. Logo, li este livro que é escrito por um autor que é meu amigo e que, ainda por cima, admiro. Esqueçam leituras imparciais da minha parte.
Em terceiro lugar, livros como "Alentejo Prometido" tenho lido poucos. Livros portugueses, escritos por portugueses, que querem pensar sobre o que é que significa ser português. A minha escassa cultura não me dá grandes referências nas gerações anteriores, mas na minha geração este negócio tem começado a aparecer em pessoas como o Henrique e o Bruno Vieira Amaral. Aproveito para dizer que o Henrique e o Bruno estão a fazer uma coisa que acho mesmo nova entre nós. Confesso, mesmo que isto soe saloio, que gostava de ser metido na mesma equipa do Henrique e do Bruno. Essa é uma equipa que miúdos que escrevem sobre Portugal não pertencendo às linhagens de quem se espera que escrevam sobre Portugal. O equipamento do Henrique e do Bruno é da cor dos bairros suburbanos onde cresceram. Eu, por ser um miúdo suburbano, sinto-me a jogar em casa quando os leio. E torço por eles. Eles são como eu (pelo menos, quero acreditar nisso).
Em quarto lugar, o Henrique (como o Bruno) só sabe fazer sociologia se fizer também biografia (por exemplo, em "Alentejo Prometido" há uma passagem acerca da estrada onde o Henrique tinha medo de andar de bicicleta que se vai revelar o lugar de onde saiu o assassino de Sidónio Pais - é um trecho brilhante). Que se dane o pudor porque Deus criou-nos pessoas e não funcionários. O Henrique começa e acaba "Alentejo Prometido" a falar sobre ele mesmo. Eu, nem meia-dúzia de livros da colecção da Fundação Francisco Manuel dos Santos li, mas fico numa brasa das boas quando vejo o Henrique, tal como o Bruno em "Aleluia", a dar literatura pura e dura a pretexto de "retratos da fundação". É este o caminho e é no Pingo Doce que se vai fazer a revolução literária - também quero ter livros no super-mercado!
Em quinto lugar, o Henrique não usa factos para encaixar opiniões prévias. Há um trabalho sólido de consulta e de análise que dá espinha às frases mais aventureiras do Henrique. O Henrique faz a ideologia da verdade, por muito incómodas que estas duas palavras sejam no nosso ambiente intelectual. Por outro lado, o facto de o Henrique não querer ser chato com factos, faz com que acabemos com um livro que efectivamente nos informa mas que também nos encanta. É assim que se faz.
Em sexto lugar, deixem-me abreviar muito muito muito, em dez pontos, as teses que me pareceram centrais no "Alentejo Prometido":
1) Alguns dos supostos pesadelos culturais serviram de sonhos para muitos (a liberdade chegou para muita gente à boleia da Guerra Colonial e da migração).
2) A ignorância da juventude sobre o passado é um dos sintomas mais claros do nosso atraso cultural.
3) A verdadeira opressão alentejana, antes de ser política, era moral ("o que oprimia as mulheres do campo não era a magra jorna, era o facto de serem encaradas como meras extensões privadas das casas senhoriais", pág. 40).
4) A migração para a capital não tem de ser uma história de desenraizamento, pode ser ser uma história de liberdade ("a cidade e a fábrica significaram uma nova dignidade pessoal", pág. 41). E os alentejanos sobretudo migraram, não emigraram.
5) A ética de trabalho alentejana não é uma vitória mas uma rendição às condições implacáveis da natureza ("o alentejano só podia ser escravo da natureza e, tragicamente, acabou por desenvolver uma cultura que eleva essa escravatura ao estatuto de imperativo moral", pág. 65).
6) Logo, os alentejanos não olham para sua terra como a oportunidade de uma história, mas apenas como o encerramento dela.
7) Esta aridez espiritual do Alentejo também é resultado de ele ser a nossa Austrália ("povoado com o refugo do norte", pág. 56), território onde a ordem ficou por entrar.
8) A ausência de Deus no Alentejo está combinada com a ausência de um passado que ofereça uma história ("o alentejano não está ancorado a um passado familiar e não navega em direcção a um conceito redentor de futuro", pág. 62).
9) A cultura alentejana não integra o conceito de família ("além de desconfiar dos vizinhos, do Estado e da Igreja, o alentejano desconfia da própria família. O estado da natureza está no sangue", pág. 77), e velhos deprimidos não querem precisar de depender de filhos capazes de os ajudar.
10) O suicídio é uma consequência natural para quem nasce num lugar que não tem como sua terra, para quem trabalha como resultado de uma maldição da natureza, para quem Deus não desce cá abaixo, e para quem não se sente inspirado para construir uma história ("a cultura alentejana não tem palavras que permitem a contestação moral do suicida", pág. 84).
Em sétimo lugar, este pequeno livro (107 páginas) fulgurante devia ser lido por todos: políticos, pastores, profissionais, desempregados, jovens, velhos, rapazes e raparigas. Porque é do nosso país que trata. Que o leiamos como o gesto patriótico possível, até porque o Henrique o acaba reconhecendo que a terra que lhe pertence é mais aquela que vem da escolha do que propriamente da raiz. Se formos portugueses à boleia da liberdade que temos para isso, já é excelente.
Comecemos pelo princípio. Em primeiro lugar, vocês compram o "Alentejo Prometido" por três euros e quinze cêntimos no Pingo Doce, o que significa que na próxima vez que forem às compras, podem levar literatura sem dar conta disso, entre as minis de Super Bock e as caixas de Nespresso.
Em segundo lugar, aviso que não sou um leitor imparcial. Aliás, a minha religião não me permite acreditar na existência de leitores imparciais. Na minha religião crê-se no pecado original que, trocado por miúdos, significa que there's no such thing as leitores imparciais. Só há leitores pecadores, uns mais que outros. Ora, como leitor pecador que sou, aviso já que esse efeito do pecado na leitura de "Alentejo Prometido" pode ser amplificado por ser amigo do Henrique. Sou amigo do Henrique. E o Henrique é um amigo meu que, ainda por cima, admiro. Logo, li este livro que é escrito por um autor que é meu amigo e que, ainda por cima, admiro. Esqueçam leituras imparciais da minha parte.
Em terceiro lugar, livros como "Alentejo Prometido" tenho lido poucos. Livros portugueses, escritos por portugueses, que querem pensar sobre o que é que significa ser português. A minha escassa cultura não me dá grandes referências nas gerações anteriores, mas na minha geração este negócio tem começado a aparecer em pessoas como o Henrique e o Bruno Vieira Amaral. Aproveito para dizer que o Henrique e o Bruno estão a fazer uma coisa que acho mesmo nova entre nós. Confesso, mesmo que isto soe saloio, que gostava de ser metido na mesma equipa do Henrique e do Bruno. Essa é uma equipa que miúdos que escrevem sobre Portugal não pertencendo às linhagens de quem se espera que escrevam sobre Portugal. O equipamento do Henrique e do Bruno é da cor dos bairros suburbanos onde cresceram. Eu, por ser um miúdo suburbano, sinto-me a jogar em casa quando os leio. E torço por eles. Eles são como eu (pelo menos, quero acreditar nisso).
Em quarto lugar, o Henrique (como o Bruno) só sabe fazer sociologia se fizer também biografia (por exemplo, em "Alentejo Prometido" há uma passagem acerca da estrada onde o Henrique tinha medo de andar de bicicleta que se vai revelar o lugar de onde saiu o assassino de Sidónio Pais - é um trecho brilhante). Que se dane o pudor porque Deus criou-nos pessoas e não funcionários. O Henrique começa e acaba "Alentejo Prometido" a falar sobre ele mesmo. Eu, nem meia-dúzia de livros da colecção da Fundação Francisco Manuel dos Santos li, mas fico numa brasa das boas quando vejo o Henrique, tal como o Bruno em "Aleluia", a dar literatura pura e dura a pretexto de "retratos da fundação". É este o caminho e é no Pingo Doce que se vai fazer a revolução literária - também quero ter livros no super-mercado!
Em quinto lugar, o Henrique não usa factos para encaixar opiniões prévias. Há um trabalho sólido de consulta e de análise que dá espinha às frases mais aventureiras do Henrique. O Henrique faz a ideologia da verdade, por muito incómodas que estas duas palavras sejam no nosso ambiente intelectual. Por outro lado, o facto de o Henrique não querer ser chato com factos, faz com que acabemos com um livro que efectivamente nos informa mas que também nos encanta. É assim que se faz.
Em sexto lugar, deixem-me abreviar muito muito muito, em dez pontos, as teses que me pareceram centrais no "Alentejo Prometido":
1) Alguns dos supostos pesadelos culturais serviram de sonhos para muitos (a liberdade chegou para muita gente à boleia da Guerra Colonial e da migração).
2) A ignorância da juventude sobre o passado é um dos sintomas mais claros do nosso atraso cultural.
3) A verdadeira opressão alentejana, antes de ser política, era moral ("o que oprimia as mulheres do campo não era a magra jorna, era o facto de serem encaradas como meras extensões privadas das casas senhoriais", pág. 40).
4) A migração para a capital não tem de ser uma história de desenraizamento, pode ser ser uma história de liberdade ("a cidade e a fábrica significaram uma nova dignidade pessoal", pág. 41). E os alentejanos sobretudo migraram, não emigraram.
5) A ética de trabalho alentejana não é uma vitória mas uma rendição às condições implacáveis da natureza ("o alentejano só podia ser escravo da natureza e, tragicamente, acabou por desenvolver uma cultura que eleva essa escravatura ao estatuto de imperativo moral", pág. 65).
6) Logo, os alentejanos não olham para sua terra como a oportunidade de uma história, mas apenas como o encerramento dela.
7) Esta aridez espiritual do Alentejo também é resultado de ele ser a nossa Austrália ("povoado com o refugo do norte", pág. 56), território onde a ordem ficou por entrar.
8) A ausência de Deus no Alentejo está combinada com a ausência de um passado que ofereça uma história ("o alentejano não está ancorado a um passado familiar e não navega em direcção a um conceito redentor de futuro", pág. 62).
9) A cultura alentejana não integra o conceito de família ("além de desconfiar dos vizinhos, do Estado e da Igreja, o alentejano desconfia da própria família. O estado da natureza está no sangue", pág. 77), e velhos deprimidos não querem precisar de depender de filhos capazes de os ajudar.
10) O suicídio é uma consequência natural para quem nasce num lugar que não tem como sua terra, para quem trabalha como resultado de uma maldição da natureza, para quem Deus não desce cá abaixo, e para quem não se sente inspirado para construir uma história ("a cultura alentejana não tem palavras que permitem a contestação moral do suicida", pág. 84).
Em sétimo lugar, este pequeno livro (107 páginas) fulgurante devia ser lido por todos: políticos, pastores, profissionais, desempregados, jovens, velhos, rapazes e raparigas. Porque é do nosso país que trata. Que o leiamos como o gesto patriótico possível, até porque o Henrique o acaba reconhecendo que a terra que lhe pertence é mais aquela que vem da escolha do que propriamente da raiz. Se formos portugueses à boleia da liberdade que temos para isso, já é excelente.