“Onde se refere que o Diabo conduz nas estradas brasileiras, e onde se exprime que o Brasil idolatra a alegria onde a Europa idolatra a consciência”
Depois de dois dias no Hotel Ibis de S. José dos Campos, em frente a um shopping que envergava uma enorme bandeira brasileira (expliquei à Família Ferreira que em Portugal apenas edifícios governamentais ou de carácter mais institucional exibem bandeiras - nós temos dificuldade em misturar país e negócios, o que talvez explique as nossas crises económicas - se bem que as crises do Brasil também não se resolvem pelo facto de terem grandes bandeiras nacionais em shoppings…),
segui para cinco dias no sítio (e agora quero dizer sítio no sentido de quinta mesmo)
do Seminário Martin Bucer, onde uma semana intensiva de estudos acontecia. O Seminário Martin Bucer trabalha com alunos que algumas vezes ao longo do ano se reúnem para semanas intensivas, não sendo um seminário tradicional onde os estudantes de teologia estão a viver. O sítio era uma quinta não muito grande mas bonita, com espaço para campos desportivos e piscina (só lá mergulhei no último dia).
A estrada para lá chegar era indescritível. Em Portugal creio que já não existem estradas assim. O sítio, apesar de estar junto à cidade, exigia mais de meia-hora para lá chegar por conta do tempo de percorrer aquelas vias lunares. Duas coisas mais devo referir acerca daquela estrada. Quando, no dia em que deixei o sítio para ir para S. Paulo, fui conduzido pelo irmão Bené (de Benedito), ele disse-me que aquele tipo de estrada é geralmente o lugar ideal para raptos, porque não há grande escapatória possível. Este é um dos aspectos que os brasileiros não conseguem entender sobre os portugueses.
Geralmente um português é informado acerca do perigo de uma circunstância após essa circunstância ter chegado ao fim. Os brasileiros, provavelmente por estarem bem mais mergulhados em circunstâncias onde o perigo raramente chega ao fim, sentem-se completamente descontraídos para falarem sobre o perigo quando ele ainda permanece. Na prática, não têm grande alternativa. Não foi a única vez que coisa semelhante aconteceu, de eu ser informado acerca dos riscos de uma situação enquanto ela ainda não terminou (mais à frente, quando falar sobre Fortaleza, volto a outro exemplo).
A segunda coisa que vos queria dizer sobre aquela estrada de S. José dos Campos é que numa manhã, quando ia gravar videograficamente umas aulas no estúdio usado pelo Seminário Martin Bucer no centro da cidade, passámos por um cruzamento que tinha uma espécie de altar improvisado por uma manifestação de macumba. A verdade é que já vi coisas parecidas na praia de Santo Amaro de Oeiras, em Portugal. Mas agora via no lugar original e recordava-me que no Brasil os espíritos não são coisas do passado. No Brasil os espíritos vêm até ti no meio do trânsito e é melhor que te desvies deles. O C.S. Lewis dizia com razão que o estratagema preferido pelo Diabo é convencer as pessoas que ele não existe - mas
no Brasil o C.S. Lewis não diria nada de especial porque quase toda gente está careca de saber que o Diabo é tão real que parece omnipresente. No Brasil vais na estrada e tens de ter cuidado para não pisares os altares dele.
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Quando alguém pensa em Brasil, não pensa em teologia. Mas é um erro. Na semana que passei com estudantes do Seminário Martin Bucer, em S. José dos Campos, fiquei surpreendido com as conversas que tive. Aliás, vou mais longe e digo que Portugal, na sua migalhez, não tem como chegar ao nível teológico do Brasil nas próximas décadas. E quando em falo em nível teológico, falo da teologia como uma convicção suficientemente séria ao ponto de transformar a vida daqueles que a ela se dedicam. Porque
se estivermos a pensar em teologia como uma disciplina incapaz de mudar a vida daqueles que a estudam, aí sim, certamente que Portugal está cheio de teólogos.
Portugal tem teólogos a mais, da perspectiva que são pessoas dadas a abstracções que não beliscam um milímetro das suas vidas práticas. O que não falta são teólogos católicos romanos cheios de poesia gingona que serve para tudo sem servir para grande coisa (por seu lado, o meio evangélico nem um teólogo consistente consegue gerar). Debitam tiradas supostamente existencialistas acerca de perplexidades diante da condição humana, e das interpelações do divino, entre outros bocejos que passam por densidade psicológica. Geralmente a imprensa portuguesa gosta de padres assim, porque em grande parte funcionam como garantia de que podem ser lidos e ouvidos sem correr o risco de colocar algo estrutural em causa.
A imprensa portuguesa permite a existência de religiosos desde que a religião permaneça inexistente - nos nossos dias baralhados, há vários deles. Mas não é deste tipo de teologia que falo.
A teologia de que falo é aquele conhecimento de Deus que altera a nossa vida - é o Deus de Abraão, Isaque e Jacob a mudar a vida ao teólogo Moisés dando-lhe uma nova profissão de libertador. E isto porque, no caso do Deus de Abraão, Isaque e Jacob, que é Pai, Filho e Espírito Santo, só se existe na medida em que se faz alguma coisa acontecer. De teologia deste Deus, graças a ele!, o Brasil tem muito. Deixem-me dar um exemplo. Os estudantes do Seminário Martin Bucer com quem conversava entregavam-se a tentar compreender como é que a Europa podia ter tão pouca fé. Como já falei anteriormente, falta no geral mais memória histórica a um país tão adolescente como o Brasil. Mas a adolescência brasileira compensa quando não permite que alguém, estudando Deus, se isente de ser colocado em causa por ele.
A adolescência histórica brasileira é espiritualmente mais produtiva do que a experiência esclarecida europeia por esse princípio que assume que, se o assunto é Deus, o resultado é transformação.
Numa das ocasiões em que conversava com os alunos do Seminário Martin Bucer, colocámo-nos numa espécie de jogo que servia para tentar compreender a razão porque os erros europeus são uns e os brasileiros são outros. Influenciado pela leitura de “You Are What You Love”, do James K. A. Smith, lembrei que uma tarefa fundamental de um cristão é descobrir os ídolos da cultura que habita. E aqui quero fazer uma pausa para dar uma perspectiva elementar sobre a tese de Smith. Ele diz que
precisamos fazer uma exegese dos rituais que observamos - olhar para o nosso ambiente com olhos apocalípticos. E aqui olhos apocalípticos não significa saber o futuro. Erradamente percebemos a literatura apocalíptica bíblica como um acesso fantástico ao futuro. O professor norte-americano explica:
“A literatura apocalíptica tenta fazer-nos ver os impérios que constituem o nosso ambiente, para que os vejamos como eles realmente são”. Olhar apocalipticamente não é uma questão de prever, mas uma questão de desmascarar. É preciso ver através. Nós precisamos de aplicar isto mesmo à nossa época.
Quando o Apóstolo João recebe a visão do Apocalipse, que deu origem ao último livro da Bíblia, mais do que prever o que estava para acontecer, ele adorava o verdadeiro Deus enquanto denunciava os erros dos impérios que se levantavam contra ele.
O Apocalipse é fundamentalmente um livro de louvor porque só através do louvor nós podemos conhecer o Deus real que se distingue de todos os falsos deuses. Neste sentido, podemos ir um pouco mais longe e afirmar que a verdadeira teologia é um acto de adoração, porque é só quando conhecemos o autêntico Criador que, por comparação, detectamos as marcas de quem tenta uma versão ilegal da criação. Todo a genuína adoração é um distanciamento consciente das suas falsas versões. Os judeus sabiam isto bem no primeiro mandamento que, começando pela negativa - “não terás outros deuses diante de mim”, pressupunha o conhecimento de qual deles é o certo. E nós, os cristãos evangélicos, seguimos este ritmo hebraico.
Logo, os líderes espirituais só podem liderar espiritualmente quando possuem uma consciência dos falsos deuses à sua volta. E como o Pr. Tim Keller explica com talento em “Falsos Deuses”, os piores ídolos não são desejos de praticar o mal, mas a nossa paixão por coisas boas que se torna a razão última da nossa vida. Ou, usando a linguagem do Catecismo New City, “idolatria é crer nas coisas criadas em vez do Criador”. Voltando a James K. A. Smith:
“Os pastores precisam de ser etnógrafos do dia-a-dia, ajudando os paroquianos a ver o seu próprio ambiente como formador e, demasiadas vezes, deformador”. Se tivermos pastores que são cegos aos ídolos da sua cultura, temos pastores que entregam as suas ovelhas aos lobos.
Esta volta toda para regressar ao ponto em que estávamos, da conversa com os alunos do Seminário Martin Bucer. Perguntei-lhes assim:
“Se tivessem de dizer qual o maior ídolo dos brasileiros, que ídolo seria esse?” E não tive de esperar muito para ouvir o Samir Mesquita acertar na mouche: “a alegria”.
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É possível a alegria ser um ídolo? É possível uma coisa boa como a alegria tornar-se uma coisa má? Claro que sim. Um duplo “claro que sim”! O Diabo especializa-se precisamente nesta suave degeneração das bênçãos que Deus nos dá.
O talento de Satanás não é criar coisas. Satanás não tem poder para criar nada. Satanás apenas tem poder para pegar nas coisas criadas e adulterá-las ao ponto em que de frutos saborosos elas passam a frutos podres. A natureza do pecado não é essencialmente criativa mas essencialmente degenerativa. Na Bíblia o único que cria é Deus. Satanás é o especialista em macaquear criação. Mas quem macaqueia criação, não cria - quando muito, finge que cria. E a idolatria é um fingir que se cria, através de alguma coisa que não é Deus a tentar passar por ele.
Por isso mesmo, o truque da idolatria não é parecer coisa má, mas parecer coisa boa. Logo, não é de estranhar que o mal que há em nós, perversamente ajudado pelo Diabo, seja capaz de tornar uma coisa boa como a alegria numa coisa má - num verdadeiro ídolo. A existência do povo brasileiro é a prova provada de que uma bênção como a alegria pode ser tornada numa maldição.
O Brasil está tão fascinado pela alegria que esquece que ela é uma dádiva de Deus, e não o próprio Deus. De tão obcecado pela alegria, o Brasil faz da dádiva o doador, outra definição possível para a idolatria. Que a alegria é boa, ninguém deve duvidar. Mas quando o brasileiro vive para ser feliz, ele obriga Deus a reduzir-se a uma das bênçãos que de Deus vem. Só que acontece que Deus é sempre maior que as bênçãos que dá. As bênçãos são o que vem de Deus. Não é Deus que vem das bênçãos. Viver obcecado pela alegria é esperar que da criação nasça um criador. Como a Bíblia diz, é pegar um pedaço de madeira e esculpi-lo com todo o rigor para que se chegue a um ponto que o resultado seja um deus. Pode haver muito talento na navalha, mas não dá para sacar o Deus verdadeiro de um pedaço da sua criação.
Entender que um dos grandes ídolos da cultura brasileira (se não o maior) é a alegria também é mais fácil tendo em conta que na Europa tudo é diferente. Nessa mesma conversa com os alunos do Seminário Martin Bucer, sugeri que
um dos grandes ídolos de Portugal, por contraste com o Brasil, é o da consciência. Neste sentido, a consciência é um ídolo que pode se encontrado um pouco por toda a Europa. Matthew Arnold diz em “Culture and Anarchy” que a ideia principal da cultura grega é a espontaneidade da consciência (e daí o herói grego), ao passo que a ideia principal da cultura hebraica é o rigor da consciência (daí o santo judeu). De uma forma ou de outra, a Europa volta-se para dentro de si mesma enquanto as outras culturas saem lá para fora para curtir a vida.
No caso português, esta idolatria da consciência vê-se na conclusão que é tirada de que a pessoa virtuosa é a que tem noção da realidade à sua volta. Quem não tem consciência da realidade está numa posição de infância moral e não merece grande confiança. Logo, a seriedade pesa mais do que a alegria (ainda que as conclusões a que se chega com a nossa seriedade possam ser pouco sérias). Noutro sentido,
as pessoas alegres são olhadas com desconfiança porque, provavelmente, ainda não atingiram a devida consciência da realidade à sua volta. Gosto de ilustrar isto com uma pequena história pessoal.
Há uns anos, quando estávamos a abrir uma igreja nova em S. Domingos de Benfica, tínhamos uma vizinha no andar de cima do pequeno salão onde nos reuníamos. Como podem imaginar, o equilíbrio entre o som provocado pelo cântico dos hinos e a sala de estar da D. Alice (nome fictício) era delicado. A nossa liturgia, à falta de isolamento acústico eficaz, entrava pela casa dos nossos vizinhos mesmo que eles não quisessem ir assistir ao culto. O resultado é que a nossa relação complicou-se. Num dos momentos de diálogo mais tensos a D. Alice disparou que a nossa fé não deveria ser séria tendo em conta “que as pessoas saem da igreja a rir”.
Para a D. Alice, enquanto símbolo do Portugal católico, sair da igreja a rir era uma blasfémia - religião não combina com riso. Numa versão mais secularizada, podíamos dizer que, para os portugueses, ter noção da realidade implica sabermos que ela não está para alegrias. O mundo é fundamentalmente trágico (e aqui recordamo-nos de Miguel de Unamuno e “Do Sentimento Trágico da Vida”).
O que faz uma cultura que se convence que a existência é essencialmente trágica? Uma cultura que se convence que a existência é essencialmente trágica tende a sobrevalorizar traços de carácter como a introspecção, a prudência, a desconfiança, a suspeita. Qualquer gesto que pareça mais exuberante sugere inconsciência, falta da devida adequação à realidade. Se a esta equação europeia adicionarmos valores especificamente portugueses, chegaremos à saudade e, no pior das hipóteses ao fatalismo.
Portugal não é um país fatalista porque tem uma paixão por finais infelizes. Portugal é um país fatalista porque sinceramente crê que finais felizes são finais fingidos. O final feliz é um sobrenatural para o qual Portugal não tem o luxo da fé.
Nos últimos anos, com a imigração brasileira em Portugal, o choque cultural vê-se em todo o lado. Sobretudo na questão religiosa. As igrejas evangélicas são vistas como um exotismo típico dos brasileiros, pessoas suficientemente ingénuas ao ponto de acreditarem ainda tão inocentemente na religião, e numa religião evangélica em particular ainda mais delirante no seu optimismo. O mesmo se aplica, com outros graus, aos norte-americanos. O cristianismo evangélico é para a Europa uma espécie de resistência ao mundo moderno, uma fé com características tão fora-deste-mundo que para serem aceites a pessoa tem mesmo de deixar de querer fazer parte dele.
Para os portugueses, os brasileiros podem dar-se ao luxo de serem evangélicos porque ainda estão numa fase adolescente em que não perceberam o mundo como ele é realmente é. Os brasileiros podem ser alegres, pensam os portugueses, porque a alegria só dura enquanto não se caiu na real (usando uma expressão das telenovelas brasileiras). Mais dia menos dia, vai acabar.
A verdade é que a minha viagem ao Brasil fez-me entender que se, sem dúvida, o ídolo brasileiro é o da alegria, o fatalismo português é um ídolo tão ou mais vesgo no modo como olha para o universo. Na idealização portuguesa da consciência, nós fazemos daquilo que é supostamente trágico uma razão para não vermos mais além. Dizendo de um outro modo mais bruto: nós, portugueses, temos um medo sincero da alegria. E a minha tese é que
o medo sincero que temos da alegria tem a ver com a suspeita que também albergamos, ainda que inconfessada, de que se a alegria nos contagiar, a nossa vida mudará. E nós portugueses, e como já disse antes, fugimos da mudança porque a mudança parece uma perda da nossa identidade. Para uma cultura que sobrevaloriza a consciência, a mudança é um passo em direcção do absurdo: a pessoa sabe lá em que estado é que vai regressar da alegria?
A ironia é que uma parte do que torna hoje o cristianismo arriscado é precisamente esta ligação à alegria.
O cristianismo, ao oferecer alegria a quem crê, parece mandar para o lixo os últimos séculos de árdua conquista de consciência. A Europa pensa que valores como o pensamento científico, o Estado moderno e o direito à cidadania fundada no princípio do indivíduo, só se atingiram porque tiveram de ser arrancados das mãos da religião. Por isso mesmo, a Europa, tão esclarecida na sua modernidade, entra em crises de negação sempre que o presente lhe dá resultados opostos às suas previsões secularizadas. Mais ainda. A Europa, sempre que invadida por imigrantes que, como brasileiros ou outros povos do mundo não-europeu, lhe trazem religião de volta, julga que corre o risco de voltar à escuridão da Idade Média, controlada tiranicamente pela Inquisição. Acontece que a realidade é mais complicada do que a simplificação laica que a Europa aprecia.
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Durante a semana que passei no Seminário Martin Bucer, em S. José dos Campos, reparei que tinha uma pequena alergia a manifestar-se na pele, junto ao meu pulso esquerdo. Um dia depois tinha alastrado um pouco, à zona do cotovelo. No outro, já quase chegava ao ombro e tinha chegado também ao braço esquerdo. A Marilene deu-me um creme e um comprimido que comecei a tomar, até ao fim da semana. Isto aconteceu na segunda-feira. De facto, na sexta,
quando me preparava para ir para S. Paulo, a alergia tinha recuado. Pensei: está resolvido.
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Durante a semana no sítio do Seminário Martin Bucer, apareceu uma cobra junto ao corredor dos quartos onde os homens dormiam. Não a vi na ocasião, só mais tarde fotografada pelo telemóvel do caseiro, o Irmão Edvânio. Ele tentava ver que tipo de cobra era. Numa pesquisa na internet, a aparência dela combinava com uma qualquer das mais venenosas e perigosas. Ora, a facilidade com que um brasileiro diz que matou uma cobra que pode ser das mais mortíferas impressiona sempre um português. Fiquei a saber que
enquanto dormia podiam rastejar criaturas que numa trincadinha me enviariam de volta ao Criador. A partir desse dia passei a olhar sempre para baixo da cama antes de me deitar, e para dentro dela, não fosse ter uma serpente no quente dos meus lençóis.
O Brasil é um país onde a natureza te pode matar de um modo mais constante e criativo. Não nos deve admirar que a crença em Deus se torne, consequentemente, mais natural. Se vivemos vidas muito protegidas da possibilidade de a natureza dar cabo de nós, vamos passar a pensar que não há assim tanto do qual nos devamos proteger. Pessoas que se protegem precisam mais de ajuda.
Deus é mais útil para quem pode ser trincado pela natureza. Por outro lado, a ecologia desses lugares também se torna menos fantasiosa. O planeta é fantástico mas é melhor ter cuidado com ele.