A teologia como treino para o Céu
Se já não é fácil ser português, imaginem o que é ser português e evangélico. É dureza. Um dos problemas de ser português e evangélico é que à condição de ser português, e portanto ser naturalmente inclinado à murmuração, adiciona-se a murmuração suplementar de, ao ser evangélico, se murmurar por ser parte de uma minoria religiosa. O português já murmura por ser uma minoria no mundo (somos tão poucos portugueses para tanto mundo...); o português evangélico murmura ainda mais por ser uma minoria num mundo já em si minoritário (somos tão poucos evangélicos para já tão poucos portugueses...). O português evangélico é uma máquina de murmuração como poucas existem no mundo.
Esta capacidade omni-murmuratória em organismos tão simples produz reacções especialmente agrestes em circunstâncias em que um português evangélico tem de se relacionar com um evangélico de outro país que eventualmente deseje ajudá-lo. Quanto mais o português evangélico precisa de ajuda de evangélicos não-portugueses, mais delicada é a sua reacção. Quanto mais carente é o português evangélico, mais hostil se pode tornar à ajuda oferecida. É um bicho complicado, o português evangélico.
Ora, uma das áreas de maior necessidade dos portugueses evangélicos é a formação teológica. De um modo geral, se algum português evangélico deseja uma formação teológica realmente séria, tem de procurá-la fora do seu país. Isto não significa que não existem escolas teológicas em Portugal a fazer um trabalho valoroso e até heróico. Simplesmente significa que esse trabalho valoroso e até heróico que as escolas teológicas fazem em Portugal não chega para que a formação teológica dos evangélicos portugueses chegue a ser realmente séria. E este "realmente séria" aplica-se à necessidade que os evangélicos portugueses já exigem e aplica-se à necessidade que os não-evangélicos portugueses exigem dos evangélicos portugueses. Ou seja, a carência que temos de uma formação teológica realmente séria existe porque as pessoas dentro da igreja merecem-na e porque as pessoas fora da igreja também a merecem. A nossa despreparação actual desajuda quem já está na igreja e muito mais aqueles que estão fora.
Uma dos factos que tem impedido que os portugueses evangélicos sejam pessoa teologicamente sérias é a dicotomia infantil que separa fé de conhecimento. Em grande parte continuamos a ser cristãos com problemas com a ideia de que Jesus também quis salvar os nossos miolos (como se essa parte física que é o nosso cérebro fosse demasiado rasteira para merecer o amor do Salvador). Apesar de nos dizermos cristãos vindos da Reforma Protestante, continuamos na velha tradição que idealiza a ignorância como via verde da virtude. Acontece que a pobreza de espírito que Jesus elogia no sermão do monte (Mateus 5:3) não é a burrice mas a humilde. Confundir humildade com burrice é mais próprio dos burros que dos humildes, mas não quero dar demasiadas asas à minha correcta exegese bíblica, não vá uma parte dos leitores deste texto zangar-se desnecessariamente comigo. O essencial é isto: o conhecimento teológico só assusta quem, lá está!, tem medo do conhecimento teológico. O problema é que o medo de conhecer a revelação de Deus nunca foi uma maneira alternativa de estar mais perto dele. A Bíblia rejubila em todas as suas páginas diante do nosso conhecimento de Deus porque para a Bíblia o conhecimento devido é sempre um modo de comunhão. Só aceita a dicotomia quem quiser ficar nas trevas em lugares onde há luz.
Separar fé de conhecimento leva a um clima de suspeita com qualquer iniciativa que desempoeiradamente anseie uma formação teológica séria, esforçada, transpirada (daquelas que cansam mesmo na cabeça). O que tem acontecido em Portugal é que as escolas teológicas, bem intencionadas mas já influenciadas pelo clima de suspeita criado pela aceitação consciente ou inconsciente da dicotomia que separa fé de conhecimento, optam por cursos que secundarizam a teologia para oferecer em alternativa uma espécie de formação suplementar. Valendo-se da ideia de que o que é preciso é concentrar-nos na prática quotidiana do dia-a-dia das igrejas, abandona-se uma formação teológica séria para oferecer
workshops avançados para professores de Escola Bíblica Dominical. Sei que exagero um pouco mas o exagero de infantilizar a formação teológica parece-me pior que o meu.
Ora, um dos projectos mais ambiciosos para o qual tenho tentado influenciar outros, além de mim próprio e da igreja local de que faço parte, é a educação teológica. A Igreja da Lapa projecta uma nova escola teológica para Lisboa. A nossa firme convicção de que Lisboa precisa de um Seminário Reformado anda de mão dada com a convicção de que, sozinhos, os lisboetas não chegam lá. A nova instituição de ensino teológico de que Portugal precisa só existirá com a ajuda de não-portugueses. Por isso, cremos que para que este sonho português se concretize será necessário muito trabalho e recursos vindos do estrangeiro. Por força da língua portuguesa, é forçoso e recomendável que muita da ajuda nos chegue do Brasil.
É aqui que, apesar de não estar dentro deste projecto de futura escola teológica da Igreja da Lapa, entra o Seminário Martin Bucer. Durante as semanas que passei recentemente no Brasil, investi tempo conhecendo o trabalho do Seminário Martin Bucer. O Seminário Martin Bucer tem uma origem europeia alemã. Se não conhecem quem foi Martin Bucer, verifiquem porque ele é uma das vozes mais inspiradoras da Reforma Protestante. O Seminário Martin Bucer tem estendido as suas asas no mundo lusófono que é o Brasil e, naturalmente, projecta chegar a um ponto muito mais pequeno mas necessário do mundo lusófono: Portugal. E isso, se Deus permitir, está quase a acontecer. Apesar de o plano que o Seminário Martin Bucer tem para Portugal não resolver já as muitas e profundas necessidades portuguesas, a ajuda intermédia a que se propõe no imediato é preciosa.
Há o plano de já no próximo mês de Maio acontecer a primeira semana intensiva do Seminário Martin Bucer em Portugal. Por ser uma semana intensiva, há características específicas (que devem ser consultadas no site,
aqui). Entre os professores presentes nesta semana, eu serei um deles, ensinando acerca da relação entre fé e cultura. No entanto, gostava de vos falar muito brevemente na pertinência daquilo que o Seminário Martin Bucer já oferece, tendo em conta as necessidades do contexto evangélico português. Vou fazê-lo em cinco tópicos apenas.
- O Seminário Martin Bucer acredita desavergonhadamente no conceito de pastorado. Certamente que nem todos os alunos são ou virão a ser pastores, mas aqui o conceito de vocação divina não é encarado com desconfiança pós-moderna. A palavra "liderança" não serve aqui para tranquilizar os achaques daqueles que se sentem contemporaneamente ofendidos pela "excelente obra" mencionada pelo Apóstolo Paulo.
- O Seminário Martin Bucer acredita desavergonhadamente no estudo das línguas originais [apesar de não fazer parte da primeira semana intensiva]. Hebraico é hebraico e grego é grego e o facto é que foram estas as línguas que Deus, de um modo algo caprichoso, é certo!, decidiu revelar-se. Temos de lidar com o facto, caríssimos. E lidar com o facto é aprender estas línguas. Elas só estão mortas nas bocas de quem não as aprende (e contra mim falo, ao escrever isto).
- O Seminário Martin Bucer acredita desavergonhadamente no passado. Acreditar no passado é uma ofensa para quem só sente as necessidades de hoje. O Seminário Martin Bucer respeita os credos históricos e toda a papelada escrita por santos de outros tempos e de outros lugares. Quem só quiser tratar dos seus problemas, vulgarmente conhecidos como "as questões do aqui e do agora", é melhor manter-se longe. Lá gasta-se muito tempo tentando aprender com a tradição, a democracia dos mortos (como dizia esse santo romano chamado Chesterton). É abençoadamente
creepy.
- O Seminário Martin Bucer acredita desavergonhadamente na Reforma Protestante. Este ano toda a gente comemora os 500 anos da Reforma Protestante, até o Papa. Por isso não espanta que até evangélicos assustadiços tenham de gastar um ou outro minuto reconhecendo a existência de Martinho Lutero. Mas no Seminário Martin Bucer a Reforma é todos os dias. Não existe actualmente em Portugal qualquer instituição de ensino teológico que seja assumidamente reformada - é triste mas é verdade. No Martin Bucer não é vergonha ter uma linha doutrinária assumida, antes pelo contrário. Isto não significa que os alunos tenham de chegar previamente arregimentados mas significa que se sabe qual a direcção que o ensino toma.
- O Seminário Martin Bucer acredita desavergonhadamente em Jesus. O Seminário chega ao ponto de achar que
"não há salvação em nenhum outro; porque abaixo do céu não existe nenhum outro nome, dado entre os homens, pelo qual importa que sejamos salvos" (Actos 4:12). Antes que os abutres poisem por tão estreita e intolerante leitura do fenómeno religioso, eu gostaria de estar por perto. Ensinando, aprendendo, seja o que for. Mas admitindo que se há lugar certo para morrer, é aquele em estamos em comunhão com o Criador porque conhecemos a palavra através da qual se revelou.
Tendo escrito tudo isto, que este texto sirva como um relato pessoal de quem gostou do que viu no Brasil e acredita que é preciso que algo parecido aconteça cá. Depois, é preciso ainda muito mais (que é aquilo que queremos fazer com a escola teológica futura da Igreja da Lapa). O resultado final deve ser menos murmuração e mais louvação. Se portugueses vão estar nos novos céus e na nova terra, é bom que comecem a preparar-se para louvarem como deve ser - boa formação teológica é o treino aqui para uma adoração completa lá.