Calvino esmaga o crânio de C. S. Lewis mas graças à ressurreição tudo acaba bem
Acabo de ler um capítulo das Institutas sobre a ressurreição que é muito bom. Tendo em conta que ainda ontem lia o C.S. Lewis comentar os Salmos e criticar que a crença na vida eterna servisse de base para a fé, não deixa de ser estimulante chegar ao Calvino e encontrá-lo a assumir de frente essa mesma tese. E, com toda a consideração pelas partes justas da crítica de Lewis, Calvino ganha. Calvino volta a afirmar aquilo que, no fundo, já Paulo tinha dito quando estabelecia que se não há ressurreição, somos os mais miseráveis de todos (1 Coríntios 15:13-17). Por impopular que seja hoje afirmar de um modo tão simples a crença na ressurreição, ela é o terreno firme da nossa esperança.
E aqui aproveito para fazer um à parte, para criticar a crítica de Lewis. Lewis deseja o melhor quando quer fundamentar no desejo pela presença de Deus a base do cristianismo, e assim espantar para longe uma fé que seja essencialmente uma questão de gerir consequências. Lewis quer que o nosso cristianismo seja efectivamente mais o nosso desejo de Deus do que o nosso desprazer pelo Inferno. E creio que esta crítica tem méritos, sem dúvida. O problema é que nesta crítica de Lewis pode crescer uma espécie de vaidade escondida. Como assim?
Se eu vou para o Céu não tanto porque tive medo de ir parar ao Inferno mas sobretudo porque desejei a presença de Deus, até que ponto é que não continuo na lógica retributiva? Afinal, neste esquema posso continuar a merecer o Céu por uma questão de recompensa, recompensa essa que premeia um desejo que internamente sinto - de estar perto de Deus. A questão é que acabamos com outro problema: que salvação existe então para quem não quer estar perto de Deus? Pior ainda: podemos acabar numa lógica mais perversa em que o Céu é o lugar dos que essencialmente são melhores, porque desejam a presença de Deus, e o Inferno é dos que são piores, que não a desejam. C. S. Lewis, ao querer criticar justamente a dureza do coração daqueles que desejam o Céu de uma maneira quase indiferente à presença de Deus, pode redundar numa dureza pior que é separar as pessoas entre aquelas que têm um desejo muito correcto de estarem perto de Deus e as outras. Num certo sentido, continuamos com uma lógica de mérito, em que para o Céu vão os bons e para o Inferno os maus.
Creio que nas Escrituras as coisas podem ser abençoadamente um pouco mais complexas (para serem mais simples no fim). Quando lemos a Bíblia, vemos o Céu e o Inferno como lugares que, de certa maneira, já escolhemos aqui, mas também os encontramos como lugares que não escolhemos aqui. Vou tentar explicar. Acho que não é irrazoável aceitar a ideia de Lewis, de o Inferno ser um lugar em que a porta está trancada por dentro (por quem lá está e lá quer continuar, decididamente longe da presença de Deus). Até porque vários textos bíblicos (como Romanos 1) nos lembram que não há nada pior do que Deus abandonar-nos às coisas que desejamos. Mas também podemos ver o Céu e o Inferno como os lugares que não escolhemos. E é neste segundo sentido que a graça de Deus serve melhor de desempate para ver quem vai para onde.
Uma das coisas realmente escandalosas na mensagem do cristianismo é que ela vai além do “fizeste isto, mereces aquilo”. E o problema é que na ideia de que o Inferno é escolhido aqui, permanecemos essencialmente no terreno do “cá se fazem, lá se pagam”, quase rasando uma versão cristianizada do karma. A questão é que o cristianismo é cristianismo precisamente porque troca as nossas voltas e mete gente ruim no Céu e gente boa no Inferno - novamente nos surpreendemos com o sentido de humor divino. E a graça pode ser graça, um elemento muito mais irrequieto do que os nossos méritos, porque pessoas que nunca desejaram a presença de Deus podem chegar ao ponto de passar a eternidade com ele. E é aqui que quero criticar o meu herói C. S. Lewis.
Eu amo o C. S. Lewis. Na prática, a minha vida é tentar ser como ele. O meu sonho é escrever aquilo que mais próximo chegue das “Screwtape Letters”, o meu ideal de perfeição literária. Mas o Lewis, que facilmente alveja o farisaísmo de tantos cristãos, cai frequentemente noutro. Qual é o farisaísmo do Lewis? O Lewis maneja habilmente os textos bíblicos, com um olho atentíssimo para aquilo que neles é fantástico (e o “Reflections on the Psalms” que estou a ler é extraordinário) mas acaba a confiar demasiado na sua própria cabeça. O grande problema do C. S. Lewis é que lê a Bíblia demasiado a partir da cabeça do C.S. Lewis. E ler a Bíblia a sério é procurar lê-la com a cabeça dela. Certamente que não é fácil. Mas o bom cristão lê a Palavra tentando entendê-la a partir dela mesma, e não a partir dele mesmo.
Vou tentar ilustrar. Neste caso, em que o Lewis critica justamente que se queira ir para o Céu essencialmente por medo do Inferno, paira sempre a ideia de que ele, o bom do Lewis!, é diferente e neste caso deseja a eternidade porque é desinteressado das consequências e unha com carne com Deus. Isto é ainda mais irritante do que querer ir para o Céu por ter medo do Inferno - sim, querer ir para o Céu porque se está apaixonadíssimo por Deus pode ser mais insuportável do que querer ir para lá por medo do Inferno (e daí a minha falta de paciência com místicos). É que, ao menos, a pessoa que quer ir para o Céu por medo do Inferno assume que é pecadora ao ponto de pensar no seu interesse próprio. Já o C. S Lewis pode passar a ideia de que a sua estadia no Céu é completamente justificado tendo em conta o amor desinteressado que sente por Deus. O Lewis é um pecador menos pecador e por isso ir para o Céu é mais justificável. Mas, assim, o Lewis fica longe de uma das coisas mais bonitas do cristianismo que é o Céu poder abrir-se a pecadores tão horríveis que viveram ao ponto de nunca terem desejado Deus. Quando é que o amor de Deus tem de ser mais esticado? Quando ama aqueles que já o amam naturalmente? Não (Jesus disse no sermão do monte que amar assim até os publicanos amavam, o que não é grande espingarda). O amor de Deus tem de ser mais esticado quando tem de ir ao ponto de amar pessoas que são tão ruins que só pensam na sua própria sobrevivência. Ter medo de ir parar ao Inferno torna-se uma excelente razão para ser alcançado pelo perdão de Deus.
Por que me inflamo tanto com estas questões? Por que sou tão obcecado a falar sobre Céu e Inferno? Caramba, é o segundo dia seguido a publicar textos sobre o assunto. Sou obcecado a falar sobre o Céu e o Inferno porque, ao contrário da imagem que a cultura que me cerca projecta acerca de si, eu não sou uma pessoa inclinada para ter bons sentimentos nem para fazer boas acções - eu não sou material de Paraíso. Este que vos escreve, marido de mulher, pai de filhos, pastor de igreja, escritor de livros, músico de discos, projecto de intelectual e revolucionário cultural em progresso, é no seu coração das criaturas mais desprezíveis que podem conhecer. O bem não me está na massa do sangue. Eu não sou o C. S. Lewis, desejante natural da presença de Deus (pelo menos não na maneira como me parece que esse desejo é descrito). O meu cristianismo não é desinteressado, focado fundamentalmente no amor que sinto por Jesus. É verdade que amo Jesus. Mas amo Jesus no meio de sentimentos e acções feias e, se não for a certeza da ressurreição, o bem que vivo nesta vida não chega para salvá-la.
Entendam isto: apesar do amor que já sinto por Jesus (porque o Espírito Santo já está em mim pela fé), esse amor daqui desta vida terrena não chega para me fazer viver para sempre. O que me vai fazer viver para sempre é o facto de Jesus já ter ressuscitado e de, nessa ressurreição dele, me garantir que ficarei a amá-lo para sempre na eternidade. O que me salva não é o amor com que respondo ao amor de Jesus; o que me salva é que, por causa do amor de Jesus, posso amá-lo de volta no poder do amor dele, não do meu. E é aqui que Calvino vê mais longe que o C.S. Lewis (apesar de eles nunca terem tido esta discussão, mas na minha cabeça ela faz sentido). Ou esperamos pela ressurreição que nos leva à vida eterna ou somos as piores pessoas de todas porque estamos satisfeitos nas qualidades que já temos agora. E para mim existem poucas arrogâncias piores do que a auto-satisfação. Reparem no paradoxo: ser um cristão completamente satisfeito aqui pode ser a maneira de ser o mais cagão dos pecadores (perdoem-me o português, mas acho que se justifica). E essa é uma coisa que cada vez me cheira pior, a abundância de cristãos satisfeitos com a sua fé iluminada (sejam católicos progressistas ou evangélicos armados em intelectuais, satisfeitinhos em terem uma fé mais inquieta e curiosa do que os outros, os evangélicos supostamente básicos).
Calvino sabia que que viver neste corpo ainda continua a ser uma prisão, não no sentido em que o corpo é mau em si mas no sentido em que ele impede a nossa união perfeita com Cristo (e por isso a Palavra diz que a nossa vida mais real está escondida em Cristo). Logo, é natural que o cristão seja necessariamente obcecado pelo Céu. O cristão que é obcecado pelo Céu não o é porque se acha melhor que os outros; o cristão que é obcecado pelo Céu é assim porque está farto de tudo o que dentro dele é mau. Hoje os cristãos obcecados pelo Céu recebem muita má imprensa quando, na verdade, são pessoas muito mais humildes do que aqueles que os criticam (que só estão a pensar na boa imprensa que é ser um cristão higienicamente não-obcecado pelo Céu e refastelados no conforto que sentem nesta vida). Por que não encontramos os católicos progressistas e os evangélicos armados em intelectuais a falarem de assuntos tão primitivos como a ressurreição e o Céu? Basicamente, porque se encontram satisfeitos com a popularidade que adquirem graças à sua fé mais esclarecida.
Por outro lado, desejar o Céu também é entender que não é só a nossa vida que convém resgatar, mas todo o Cosmos. Na verdade o Céu é os Novos Céus e a Nova Terra, a Nova Jerusalém. A realidade eterna é a da renovação de todas as coisas espirituais e físicas. Ao contrário do que se costuma dizer, os cristãos que desejam o Céu não o fazem por desprezar este mundo, mas por amarem-no ao ponto de quererem vê-lo em perfeição, completamente restaurado na eternidade.
Calvino sabia que era difícil acreditar na ressurreição do corpo, sendo este assunto um saco de pancada dos filósofos de todos os tempos que, naquele amedrontamento típico da filosofia, escolhiam selectivamente apenas a imortalidade da alma. No entanto, há dois terrenos bem firmes para acreditar nela.
Em primeiro lugar, é firme acreditar na ressurreição pelo facto de Jesus já ter ressuscitado. Os cristãos não acreditam na ressurreição a pensar neles, mas a pensar em Cristo. Cristo prometeu que ia ficar para sempre connosco. Surpresa das surpresas, depois de ter dito isto não é que morreu?! Mas, surpresa ainda maior!, não é que ressuscitou a seguir? Logo, e se partirmos do princípio que um milagre destes pode acontecer (princípio de onde eu parto), a um tipo que me prometeu uma coisa antes de morrer mas que, a seguir, ressuscitou, dou um enorme benefício da dúvida. Ou seja, se Cristo é uma pessoa que chega ao ponto de ser mais competente que a morte, vencendo-a, provavelmente é pessoa para honrar as promessas que faz. Se Cristo ressuscitou, é estúpido não acreditar no que ele disse. E se ele disse que ia ficar para sempre connosco, é porque vai mesmo. A ressurreição é a base da nossa esperança.
Tendo ainda em conta que a Igreja é o corpo de Cristo, no qual ele é a cabeça, não confiar na ressurreição é achar que a Igreja é como aqueles instantes em que o gato do País das Maravilhas ficava só em cabeça, sem corpo. A Igreja não é o Gato do País das Maravilhas, minha gente! E Calvino lembra ainda o detalhe de Jesus, depois de ter ressuscitado, não ter vindo exibir-se a Pilatos ou ao Sinédrio em jeito de “pessoal, engulam lá esta! Olhem para mim vivinho da silva!”. Não. Jesus foi mostrar-se às mulheres primeiro e aos discípulos depois para provar que o ponto mais importante da ressurreição não é o poder (é óbvio que Deus tem poder para ressuscitar, se ele teve o poder para criar o universo a partir do nada), mas o amor aos que lhe pertencem. Em segundo lugar, e é neste lugar do poder de Deus que reside a nossa confiança na ressurreição.
Este foi um texto sinuoso mas saiu-me da alegria de acreditar na ressurreição ainda com mais intensidade do que amo o C.S. Lewis. Clive, não te aborreças. Mas olha que o Calvino ainda via mais longe do que tu.