APRENDER A
ESCREVER (Encontro Refletir, 30 de Maio de 2018)
Quero começar por
lutar contra uma dicotomia infeliz que, em grande parte, teima em persistir
dentro de muitos cristãos evangélicos. Essa
dicotomia separa letra do espírito, e inspira-se numa leitura apressada de
2 Coríntios 3:6, que diz: “porque a letra
mata, mas o espírito vivifica”. Não sendo o meu propósito pregar-vos este
texto, não resisto a deixar que o contexto enxote leituras preguiçosas.
Na segunda carta
de Paulo aos Coríntios um dos assuntos é a existência de supostos novos super-apóstolos
que diziam que Paulo estava ultrapassado. Creio que não é exagerado colocar
esta oposição entre Paulo e os seus acusadores nestes termos: estes últimos
apresentavam o seu ministério praticamente em termos de super-poderes, como se
o verdadeiro apostolado fosse uma capacidade especial. Ora, Paulo faz nesta
carta uma viagem que parece uma montanha-russa para dizer que, mesmo no campo
das capacidades especiais, os adversários de Paulo ainda tinham muita sopinha
para comer. No capítulo seis isto é ilustrado no currículo inultrapassável de
sofrimentos, e no capítulo 11 o mesmo vem em dose renovada, com menção ao topo
dos topos, em termos de experiências espirituais: o arrebatamento aos céus,
fosse ele em espírito ou corpo. A ideia era basicamente esta: mesmo que a questão fosse colocada em
termos de capacidades ou experiências pessoais, ninguém batia Paulo.
Neste sentido, a “letra”
do verso 6 do capítulo 3 não pode ser dissociada do que Paulo rejeita, de uma
interpretação da fé completamente centrada no indivíduo e naquilo de que ele é
capaz. A “letra” era para os legalistas o seu super-poder, do mesmo modo que os
novos apóstolos demonstrariam os seus poderes espirituais especiais muito
superiores aos de Paulo. No caso dos legalistas, eles não são pessoas que
respeitam a lei de Deus, mas pessoas que a tornam pequena à medida dos seus
próprios interesses. O legalista domina astutamente a lei, em vez de se deixar
dominar pela lei. Actualizando, o
legalista ou o super-apóstolo é um cristão que domina a parte do cristianismo
que lhe agrada, impedindo que seja o cristianismo a dominá-lo a ele. A
“letra” é o domínio que lhe é conveniente.
É a esses a quem
Paulo tem de lembrar que esse tipo de selecção interesseira da lei, essa “letra”,
é mortal. Porque é uma letra que dispensa o seu autor, o próprio Deus que se
revela através do Espírito Santo nos escritores da revelação. Devemos
compreender isto de uma vez por todas: o
legalista, a pessoa centrada na “letra”, é alguém que faz de uma escolha
selectiva da lei de Deus um modo de se afirmar a si mesmo, e não um modo de
afirmar o autor da lei que é Deus. O futuro do legalista, ou de qualquer
pessoa que age selectivamente com a fé, é a morte porque sem Deus não temos
vida.
Quero fazer uma ligação a outro texto bíblico, que
serviu de refeição do sermão passado que preguei, nas palavras de Jesus no
Sermão do Monte (5:17-20): “17 Não
penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim para revogar, vim para
cumprir. 18 Porque em verdade vos digo: até que o céu e a terra passem, nem um
i ou um til jamais passará da Lei, até que tudo se cumpra. 19 Aquele, pois, que
violar um destes mandamentos, posto que dos menores, e assim ensinar aos
homens, será considerado mínimo no reino dos céus; aquele, porém, que os
observar e ensinar, esse será considerado grande no reino dos céus. 20 Porque
vos digo que, se a vossa justiça não exceder em muito a dos escribas e
fariseus, jamais entrareis no reino dos céus”.
Assim muito
rapidamente, há aqui alguns valores que quero sublinhar para a nossa reflexão:
1. Para Jesus, o seu Reino (o grande
assunto do Sermão do Monte) constrói-se
como cumprimento do passado e não como rejeição dele. Simplificando muito,
diria: qualquer expressão cristã que desdenha o valor da tradição cristã,
desdenha do futuro do próprio Reino de Deus.
2. Jesus liga o cumprimento de regras éticas
que são independentes de nós (ou a lei, se preferirmos) à experiência completa do seu Reino.
Simplificando muito, diria: qualquer expressão cristã que valorize a
experiência subjectiva sobre verdades morais objectivas é uma obliteração,
ainda que inconsciente, da vivência plena do Reino de Deus.
3. Jesus reconhece o empenho nas pessoas que
falham na compreensão fundamental da lei, tornando-se legalistas, como os
Fariseus. Simplificando muito, diria: qualquer expressão cristã que não
procure um empenho maior do que o empregue por aqueles que a rejeitam, perde a
oportunidade de experimentar o Reino de Deus na intensidade desejável por Jesus.
Porque começo com
uma introdução potencialmente tão chata o assunto “Aprender a escrever”? Porque
receio que nos faça bem, como ponto de partida, reconhecer que, enquanto
cristãos evangélicos, temos caído em alguns erros:
1. Temos nutrido,
ainda que sem querer, uma cultura que olha com suspeição para toda a leitura e
escrita, que não estejam estritamente ligadas à fé. Nesse sentido, alimentámos
um anti-intelectualismo que, ironicamente, nos torna vulneráveis a qualquer
coisa que não aprendemos a ler. Debaixo
da ideia certa de valorizar a leitura a Bíblia acima de qualquer outra,
frequentemente metemos nela tudo o que lá não está porque não sabemos ler o
resto. Dizendo à bruta: não aprendemos a escrever porque temos medo de ler.
Desdenhamos da tradição milenar de escritos cristãos e de outros, como se o
passado fosse desligado do Reino futuro. Neste erro mais facilmente caem os
fundamentalistas.
2. Por outro lado,
e talvez no outro extremo, alimentamos uma tendência anti-dogmática como se o
reconhecimento corajoso e formal de verdades absolutas fosse contrário ao plano
de Jesus para o seu Reino. Tomamos a teologia e o estudo sistemático da
Escritura como um terreno que diminui a liberdade do Espírito, como se a
revelação escrita fixa na Bíblia não fosse trabalho da liberdade do Espírito
Santo. Jesus levou a teologia a sério ao ponto de discuti-la logo aos doze anos
com os mestres em Jerusalém e ao longo de toda a sua vida, mas nós
consideramo-nos mais espirituais do que o próprio Cristo, como se ele
desperdiçasse com ninharias um tempo que nós não temos. Empobrecemos a nossa coragem teológica andando a reboque das tendências
externas à Igreja, disfarçando o nosso medo pós-moderno de humildade
epistemológica. A este podemos chamar o erro dos relativistas e das suas
diversas auto-denominadas pós-teologias.
3. Como sugestão
de superação deste impasse, quero resumir a minha proposta. E, como podem
antecipar, a solução será sempre Cristo. Claro que reconheço o erro que tão bem
o Apóstolo Tiago apontou, de sermos apenas ouvintes da palavra e não
cumpridores. Venho de um contexto calvinista em que é elevado o risco de
policiamento teológico desgarrado de uma experiência humilde e concreta de
Jesus nas nossas vidas. Conheço bem a atracção do legalismo porque o meu
coração é tendencialmente legalista. Mas também sei que o relativista cai no
mesmo erro, apenas usando a outra face da moeda. Quer o legalista, quer o
relativista concentram a sua fé em si mesmos: o primeiro, no que faz; o
segundo, no que não precisa de fazer. O legalista faz para ser é bom; o
relativista, como já é bom, não precisa de fazer. Não vos falo nem do legalista
nem do relativista, mas da palavra viva que é Jesus. Cristo é a salvação do legalista e do relativista e ele manda-nos fazer
um melhor trabalho do que qualquer um deles. Logo, temos de estar atentos
ao que se escreve à nossa volta.
O cristianismo é uma fé da palavra. É
da palavra que tudo acontece. Nem é justo dizer que é uma fé de palavra e acção
porque só pode haver acção se houver palavra. Génesis 1 e João 1 explicam-nos
que é a palavra que cria tudo. Vivemos numa época que diz que as palavras são
aquilo que os homens quiserem fazer delas, mas nós sabemos que, na verdade, os
homens é que são feitos pela palavra. Numa fé assim não dá para desvalorizar
leitura e escrita porque de cada vez que alguém lê ou escreve está a manusear a
célula fundamental de tudo o que existe: a palavra. A palavra é importante ao
ponto de, tendo criado tudo, se ter tornado, ela mesma, criatura em Jesus
Cristo. A palavra é o mais importante
porque Cristo, sendo a palavra feita pessoa, é o mais importante. O sentido
da nossa existência é caminharmos em direcção ao dia em que a palavra, em tudo
o que tem de físico, nos mostrará o seu rosto. A palavra é uma pessoa tão boa
que merece que a adoremos por toda a eternidade. O Apocalipse descreve a
presença desta palavra junto de nós, Jesus Cristo, com uma potência tal que o
sol é uma fraca iluminação comparado com ela (Apocalipse 22:4-5). Temos de
desprezar a dicotomia que separa a palavra da acção – com Cristo, a segunda é
sempre consequência da primeira.
Foi o
cristianismo, herdeiro do Judaísmo, que valorizou a escrita e a leitura como
nenhuma outra religião. Fazendo uma ligação muito directa, deixem-me perguntar:
como é possível que pastores e líderes cristãos sejam pessoas de pouca leitura
e pouca escrita? Não me interpretem mal. Não estou a dizer que todos temos de
nos armar em intelectuais. Mas, de facto, todos
temos de ser leitores capazes porque ser cristão é, basicamente, saber ler. O
cristão lê que Cristo, a palavra que encarnou, é Deus. Neste sentido, a
salvação é sempre uma leitura. Não é casual que o Judaísmo tomasse a
capacidade de um menino saber ler como um início da sua verdadeira capacidade
moral. É, por isso, especialmente chocante, que a fé da palavra passe por uma
religião que tem medo suscitar a leitura dos crentes.
Num mundo feito pela palavra de Deus, tudo
é texto. O universo é um texto e até nós, como criaturas criadas pela
palavra, somos textos. Escrever ou ler é apenas viver. A questão não é aprender
a escrever. Escrever já todos escrevemos, mesmo que sem colocarmos coisas no
papel. A questão é ganhar consciência do tipo de textos que estamos a escrever.
Basta acordar pela manhã e respirar, que esse já é um texto que estamos a
encarnar. A questão é escrevermos os nossos textos, vivermos as nossas vidas,
numa direcção concreta de encontro com a palavra encarnada que é Cristo.
Quero sugerir
algumas pistas simples, depois de uma reflexão que quis que fosse mais teológica
e filosófica. Vamos tentar encarnar sugestões práticas? E agora vou sentir-me
mais à vontade para me espalhar ao comprido.
1. Escrever bem é
um dom. Nem todos somos grandes escritores. Como a Bíblia nos ensina, tudo nos
é dado, para que ninguém se orgulhe. Logo, se tens um dom de palavra, que passe
pela oratória ou pela escrita, lembra-te de que vais ter de prestar contas a
Deus por aquilo que, sendo dele, ele te emprestou aqui. Se é o teu caso, o que tens produzido na tua vida com o dom da
palavra que te foi dado? Toma em consideração a ligação entre passado e
futuro que Jesus valoriza no seu Reino. Que herança da palavra estás pronto
para deixar aos que vêm a seguir a ti?
2. Se é certo que
nem todos temos o dom da escrita, todos escrevemos. O que tens tu decidido escrever numa era em que muitos mais se lêem uns
aos outros? Eu, que tenho pecados terríveis nesta área no meu passado,
quero encorajar-te: escreve para enfatizares que te vais encontrar com o verbo
vivo que é Jesus. Pega-te com os outros, pega-te contigo mesmo antes ainda, mas
em todas as pegas que te meteres faz por honrar o encontro futuro com Cristo.
Pastores e líderes, sejamos corajosos e cautelosos com o que escrevemos, por
exemplo, nas redes sociais. A nossa influência é real e teremos de prestar
contas dela.
3. Quando
escrevemos o que vivemos, é como se tivéssemos de viver novamente o que
escrevemos com o órgão da meditação aceso. O cristianismo deu no Ocidente uma
tradição de memórias e confissões, de romances e aventuras, porque escrever é
viver outra vez com mais consciência. Tens
essa prática de escrever sobre o que vives? És capaz de colocar em escrito
a confissão de um pecado, uma oração, uma determinação de mudança? Encorajo-te
a isso. O tema deste encontro é a Intimidade – não há verdadeira intimidade com
Deus, connosco próprios e com os outros sem uma meditação séria e a escrita é
uma arma nessa batalha.
4. Para os
pastores, e respeitando aqueles que seguem uma onda mais pentecostal,
encorajaria a pelo menos escreverem topicamente os seus sermões. O sermão é tragicamente um género literário
abandonado pelos seus maiores cultores, os cristãos evangélicos protestantes.
Certamente que a maioria não publicará os seus sermões em livro, mas um sermão
escrito é uma fonte de escrutínio, de reescrita, de reciclagem, de correcção
(quando necessário), de exortação à distância, entre outros aspectos. Continuo
a ficar humildemente surpreendido com o efeito da publicação de alguns dos meus
sermões, anos depois de terem sido pregados. Pastores, os vossos sermões
deveriam ser o rosto público do vosso ministério porque a fé vem pelo ouvir e
há muitos mais hoje que podem ouvir, através da tecnologia digital.
5. Se tivesses de citar dez livros que mudaram
a tua vida, além da Bíblia, conseguirias? Não precisas deles para entrar no
Céu, mas talvez dês melhor testemunho do Céu aqui na terra se, com a ajuda
destes livros, ganhares uma linguagem comum com aqueles que precisam da palavra
eterna e ainda não a ouviram. Dou dez dos meus, com uma pequena frase descritiva.
- "The
Screwtape Letters" de C.S. Lewis
Viver muito com
Deus deve levar-nos a perceber um pouco do diabo.
-
"Confissões" de Agostinho
A maneira de
escrever uma auto-biografia é descobrir a história de Deus na nossa própria
história.
- "Pensamentos"
de Pascal
Há obras
inacabadas que não acabam de nos inspirar.
-
"Huckleberry Finn" de Mark Twain
A viagem do jovem
Huck é um circuito de ternura digno de um homem completo.
-
"Ortodoxia" de Chesterton
O cristianismo é a
fé dos paradoxos.
- "Complete Short
Stories" de Flannery O'Connor
Ficções de uma
autora cristã no território do diabo.
- "Temor e
Tremor" de Kierkegaard
A história de
Abraão e Isaque nunca mais será a mesma.
-
"Institutas" de Calvino
A fé é mais do que
pensar, mas pensar faz parte da fé.
- Correspondência
com Erasmo de Martinho Lutero
Lutero é o
apóstolo da polémica redentora.
-
"Sermões" do Padre António Vieira
Portugal tem um
dos maiores pregadores da história e os portugueses não o querem ouvir.
Aprender a
escrever é natural para quem foi criado pela palavra e salvo pela palavra.
Cristo é tudo e a nossa leitura e escrita devem afirmar isso mesmo. Que Deus
nos ajude a todos!