OUVIR PORTUGAL
– ENCONTRO CDS (4 de Junho de 2018)
[Na segunda-feira passada estive num encontro promovido pelo CDS para se conversar sobre as questões políticas da cultura. Senti que, em grande parte, fui desiludir aquela gente esperançosa. Não tenho qualquer solução para as questões do 1% do orçamento do Estado para a cultura porque, como lá disse, sou relativamente agnóstico em relação à cultura. Não sei se acredito assim tanto na existência da cultura, pelo menos como ela é falada pela maioria dos políticos. Valeu-me a generosidade das pessoas, que me ouviram sem me apupar, sobretudo da Raquel Abecassis, do Diogo Belford Henriques e da Assunção Cristas. Também me valeu o facto de ter conhecido o actor André Gomes, a enérgica Catarina Valença Gonçalves e o realizador de cinema Joaquim Sapinho (acho que eu e o Joaquim fizemos click). Segue o texto que serviu de base à minha bem-intencionada mas provavelmente intervenção-sabotagem do programa previsto.]
Estar num encontro com o título “Ouvir
Portugal” pode ser intimidante. Afinal, com cinco convidados, quase pode
parecer que me cabe, no mínimo, a responsabilidade de representar
quantitativamente 20% por cento da população portuguesa. Tenho medo de haver
alguém que possa esperar da minha parte esse nível de eco responsável. Não vou
ser capaz de o fazer.
Por outro lado,
também me intimida o facto de este “Ouvir Portugal” ser mais particularmente “sobre
cultura” e eu, ao contrário da maior parte das vezes, estar identificado, não
como pregador ou pastor evangélico que sou, mas como músico, que também sou.
Faz-me lembrar quando a minha filha mais velha, a Maria, começou na escola a
ter de preencher a minha profissão e preferia colocar músico em vez de pastor.
Não fujo de que músico também vou sendo, mas, mal por mal, sinto-me mais à
vontade na pele do lobo do que na pele do cordeiro. Creio que concordarão que os músicos, e os artistas no geral, tendem
a ser politicamente mais vistos como vítimas, e os pregadores como potenciais
opressores – calha bem porque raramente gosto de fazer parte dos bons.
Por isso perdoarão
a batota que vou fazer. Apesar de estar identificado como músico, e este evento
ser sobre a cultura, vou dar a volta e
usar uma definição de cultura que serve melhor as minhas preocupações
religiosas. Para isso, vou pôr-me à sombra do T.S. Eliot e do seu livro “Notes
Toward A Definition Of Culture”.
Segundo Eliot, o
pensador americano tornado inglês, não há desenvolvimento de uma cultura sem o
desenvolvimento de uma religião, e vice-versa. Isto não significa
necessariamente a dissolução da boa separação entre Estado e Igreja
(interessantemente, valor defendido pela confissão a que pertenço, os Baptistas,
há mais de 400 anos). Eliot sabia que quando, por exemplo, há atrito entre a
política e a religião, isso mostra que essa cultura se tornou mais complexa - e
essa complexidade e diferenciação geram níveis culturais diferentes. Por
exemplo, nas artes, à medida que uma sensibilidade cresce, outra pode diminuir
- não dá para haver todas as áreas a desenvolverem-se ao mesmo tempo. O que
retira a quem governa a preocupação de promover um programa de nivelamento
cultural dos cidadãos. Claro que, ajudados por Eliot, podemos entender o saudável que é um Estado preocupar-se com uma
alfabetização obrigatória sem que isso signifique uma política cultural
igualitarista - geralmente esta última tende a ser uma especialização das
ditaduras.
Eliot
preocupava-se com dois erros que são
dois extremos opostos: achar que a cultura pode sobreviver sem religião, e
achar que a religião é melhor quando se purifica dos supostos males da cultura.
Ele escrevia: “A sensibilidade estética
deve estender-se à percepção espiritual, e a percepção espiritual deve
estender-se à sensibilidade estética, antes de nos sentirmos capazes de julgar
acerca da decadência, do diabolismo ou do niilismo na arte (Aesthetic
sensibility must be extended into spiritual perpection, and spiritual
perception must be extended into aesthetic sensibility and disciplined taste
before we are qualified to pass judgment upon decadence or diabolism or
nihilism in art)”. Eliot tinha uma cabeça boa, não acham? Parece-me que
sim. Embora pode ser que haja alguns que pensem que já nos estamos a aproximar
do domínio de um sermão.
O valor que quero
sublinhar em Eliot nesta tarde é a ideia de que a nossa cultura é sempre o modo como vivemos a religião que temos,
mesmo que essa religião não tenha o nome de religião, mas seja simplesmente o
quadro de valores em que cremos. O que não podemos negar é que a palavra “religião”
tem vindo a ganhar uma carga complicada para uma cultura que, creio, foi em
grande parte produto dela. A prova é que até para um partido tido como
conservador, como o CDS, as questões “religiosas” se tornam difíceis de lidar.
Ora, como pastor evangélico, vou usar de uma liberdade que é a confissão de
pecados. Geralmente a confissão auricular católica romana é privada e prudente,
mas, como protestante que sou, posso dar-me ao luxo do oposto: vou aqui, diante
de todos, confessar publicamente o pecado de andar a votar no CDS nos últimos
anos. E é daqueles pecados complexos porque tenho ficado com alguns problemas
de consciência.
Tenho votado no
CDS porque, dentro dos partidos políticos portugueses, parece-me aquele que,
ainda assim, consegue assumir alguma relação entre culto e cultura: há aqui
alguma tradição de não ser pecado misturar convicções religiosas com convicções
políticas. Mas algumas das vitórias da
esquerda, que parecem vir com o carimbo do irrecusável progresso
civilizacional, como a despenalização do aborto e o casamento de pessoas do
mesmo sexo, têm permitido que gente como eu, que continua a tê-las como prejuízos
morais, só possa ser tolerada como os descendentes actuais do Diácono Remédios.
E já nem no CDS parece haver grande espaço para Diáconos Remédios como, à falta
de melhor referência, pessoas como eu possam ser comparadas. Sim, a minha
vantagem como pregador do evangelho é que não somente acredito em absolutos
morais como sou pago para os defender: é uma união interessante entre liberdade
religiosa e liberdade de mercado.
Ironicamente,
parece haver um consenso oficioso que junta as elites culturais às causas
típicas da esquerda para criminalizar na opinião pública a possibilidade de
qualquer perspectiva dissonante. Ou seja, reconheço que o meio artístico, precocemente convicto da sua abertura de horizontes,
e em Portugal blindado por uma espécie de mentalidade sindical, é hoje dos
meios mais hostis a qualquer dissonância ideológica. Por isso, e apesar de
haver quem me considere artista, talvez seja mais fácil confiar num político do
que num colega das artes. Mal por mal, os políticos passam a vida a mudar de
posição.
Para quem pode, na
sua liberdade, usar termos como “absolutos morais”, pode também dar-se ao luxo
de ser meio apocalíptico. Já conversei sobre este assunto com a Assunção
Cristas e com o Adolfo Mesquita Nunes, em conversas na Igreja que sirvo, na
Lapa (e que podem ser vistas no YouTube): está o CDS pronto e interessado em
valer quem hoje assume a forma provavelmente mais ousada e polémica de liberdade
artística e de expressão que é a religiosa? Se os detentores das auto-proclamadas conquistas civilizacionais, como
a despenalização do aborto e o casamento de pessoas do mesmo sexo, olharem para
vozes discordantes como a minha, e as legislarem como crimes de ódio, quem nos
vai valer? A minha experiência política não é grande, mas já vi na internet
um deputado do PS, uma filha de um Presidente da Assembleia da República e uma
ex-namorada de um ex-Primeiro Ministro insinuarem que vozes como a minha não
deveriam ser permitidas numa rádio pública, isto tudo a pretexto de uma canção
minha que, passando na Antena 3 tomava a liberdade de falar sobre um “maricas
que reinava com a t-shirt dos Suede”.
Termino resumindo: a minha
proposta para a melhor cultura do CDS deve ser um compromisso com um dos modos
mais ameaçados de liberdade artística que é a religiosa.