O disco novo do Ruben Alves
Dar valor às palavras não é um mau hábito. Imaginem então o cenário para quem acredita que o mundo foi criado através da palavra: onde ela existir, qualquer universo pode ser inventado.
Dê-se um salto para a música e para a música sem palavra em particular. Quem é pai de crianças pequenas conhece provavelmente a experiência de colocar uma canção instrumental e rapidamente ouvir uma queixa, de que assim, sem ninguém a cantar, não tem piada. Eu tenho essa experiência com as minhas crianças e as minhas crianças nem sequer serão as mais analfabetas musicalmente - caramba, todas as quatro aprendem a tocar violino.
Mas a verdade é que eu mesmo devo assumir a infantilidade persistente de alguém que só começou a ouvir atentamente música sem voz ou palavras demasiado tarde. O certo é que agora tenho uma dieta: tento que de manhã só essa música seja a que ouço. A razão não é porque assim fico mais capaz de me concentrar no trabalho; a razão é porque assim fico mais capaz de me concentrar na música mesmo. Quando as palavras não facilitam na música o caminho, ele tem de ser feito à custa de uma atenção que funciona sem uma orientação prévia - temos de descobrir o nosso caminho na música.
Aqui há dois meses o Ruben Alves despejou no Spotify um disco. Digo despejou porque não encontrei aquele tipo de alarido promocional que hoje se tornou obrigatório, de cada vez que música é publicada. Como o meu ano de 2018 já tinha sido em grande parte musicado pelo disco anterior do Ruben, apressei o passo e pus-me a ouvir "O Mais Pequeno Espaço Apreciável De Tempo". Sem apresentações prévias e sem mapas - só eu e o disco. Ouvi-o num dia. Ouvi-o no dia seguinte. Ouviu-no no outro ainda. Em quase todos os dias de 2019 tenho ouvido este disco.
As canções deste disco têm títulos. Uma canção chama-se "Semente em Terra Firme", que evoca uma lição que Jesus ensinou acerca da produtividade da palavra. A palavra semeia-se e é suposto que dê fruto, ainda que a maior parte dos terrenos possam tal não conseguir. Neste sentido, há uma espécie de milagre que acontece quando a palavra é acolhida - há os tais universos novos que podem nascer. Que este prodígio da palavra aconteça num disco em que ela nunca é dita mas que é o ponto de partida para tudo, só confirma que há um silêncio que é necessário para que realmente comecemos a ouvir a música. Eu continuo a escutar obsessivamente "O Mais Pequeno Espaço Apreciável De Tempo" porque o que o disco não fala é também o muito que me mostra.