Ainda sobre ser de direita ou de esquerda
[É possível que este texto o aborreça por ser longo ou o irrite por ser desbocado (ou provoque outro sentimento qualquer). Envolva-se nele apenas se estiver interessado em também orar pelo seu autor, amando-o mesmo que o mais fácil seja odiá-lo.]
Um dos desafios espirituais mais difíceis da minha vida é
aprender a estar quieto e calado. Nos últimos anos tenho tentado que a minha comunicação na internet seja mais ponderada e, portanto, hoje tendo a desconfiar de alimentar discussões num meio tão dado ao impulso e pouco favorável à reflexão séria. Espero, no entanto, que as notas que vou acrescentar em relação
ao vídeo e texto de sexta-feira possam ser úteis para ficarmos mais firmes na Palavra de Deus.
Não quero entrar numa lógica circular mas, sinceramente, algumas das reacções ao que escrevi acerca de "direita e esquerda fazerem parte da equipa que odeia Jesus" apenas comprovaram a tese apresentada. Para já, porque a reacção ao texto foi a típica de quando alguém já está tão fascinado com o encanto de uma causa que, julgando-a atacada num texto que lê desatentamente, parte para o ataque. Quando escrevi, o que estava em causa não era a pertinência do uso de termos como "ser de direita" ou "ser de esquerda", mas como o texto bíblico de Marcos 3 nos mostra que o ódio de Jesus vem de pessoas que se acham de direita e de pessoas que se acham de esquerda (aceitando o uso flexível de termos a épocas anteriores à sua criação). Quando escrevi, o que estava em causa também não era o envolvimento do cristão na política ou uma apologia ao voto em branco. É triste que tantos evangélicos, que não deviam desistir de serem conhecidos como o povo da Palavra, sejam leitores tão deficiente dela(s). Um texto deve ser lido competentemente e um vídeo deve ser visto competentemente.
A incompatibilidade entre a fé cristã e a esquerda é daquelas coisas que nos desprestigia só por termos de a justificar. Vou dar-me ao luxo de escrever com um tom paternalista agora, por isso, se não estiverem com uma dose extra de generosidade, abandonem este texto e vão fazer algo que não vos chateie tanto. Meus queridos: a realidade existe independentemente do romance que criámos a partir de ideias que nos agradaram sem que as entendêssemos. Do mesmo modo como eu, que não me formei em medicina, não vou medicar os meus filhos a partir de opiniões que fui criando cá para mim, um cristão só pode dizer-se de esquerda porque, da mesma maneira negligente, desvaloriza o modo como ela encarna historicamente e o que ela implica no modo de olhar para o mundo. Um cristão de esquerda é um gnóstico que crê que há uma esfera mais elevada onde as coisas existem espiritualmente, independente da dimensão do que é carne e osso.
Para ilustrar a incompatibilidade entre cristianismo e esquerda, cito alguém que percebe mais do assunto do que eu, o Carl Trueman, num texto que merece ser lido na totalidade:
"Marx believed that human identity is constituted by social relationships; but—and here is the crucial move—those social relationship are not, as with Hegel, determined by thought, by ideas. They are, at root, material—specifically, they depend on the nature of one’s place in the economy".
Não dá para ser cristão e ser de esquerda porque ser de esquerda é partir do princípio que a identidade fundamental da pessoa é o lugar que ela ocupa na economia. Claro que muita teologia que veio depois de Marx tentou dar mais carninha a este osso, insuflando teologia à força para dentro de uma leitura completamente desteologizada da realidade. A causa que também é bíblica, de valermos as pessoas em circunstâncias económicas difíceis, tornou-se para muitos uma tentativa de pôr espírito numa tese que crê que tudo o que realmente há é só material. Mas, por muito bem intencionada que seja, não funciona: a esquerda cristã está destinada ao fracasso porque quer dar alma a uma luta que não acredita nela.
Por isso, meus tontos irmãos evangélicos que se consideram de esquerda (eu disse que ia ser paternalista): cresçam para o facto de que as ideias têm causas e consequências e, como Jesus, fazem-se carne e osso. O mundo não é o delírio gnóstico em que vocês vivem. Como diz o Ben Shapiro, "facts don't care about your feelings". Se se querem afirmar de esquerda, força. Da minha parte têm um escárnio que tento conter, porque um cristão não deve celebrar a estultícia alheia, e têm também a minha solidariedade, porque também caio frequentemente em fantasias pessoais que quero impor ao mundo. Orarei por vocês e espero que orem por mim.
Mas deixem-me agora dedicar-me aos outros tontos irmãos evangélicos, os que se dizem de direita. Esperava-se das pessoas que não caem na tentação moralmente bem intencionada que é afirmar-se cristão e de esquerda, a continuação do uso desse discernimento. Afinal, se discerni que o Diabo é bem sucedido na minha vida porque me convence a abraçar coisas que me parecem boas mas, que no fim, são reveladas como não tão boas como pareciam, e se esse discernimento me impediu de me querer afirmar como cristão e de esquerda, por que razão é que devo parar de usar esse belo discernimento para me afirmar cristão e de direita? As pessoas que não são de esquerda, discernindo o perigo de acreditarmos na bondade das causas independentemente da existência do mal dentro de nós, deveriam entender que o mesmo perigo, ainda que com manifestações diferentes, continuará a existir na direita. Simplificando mais ainda: as pessoas que têm o bom senso de não serem de esquerda, deveriam entender que ser de direita é apenas a outra face da moeda do mesmo erro.
Deixem-me tentar ilustrar este ponto regressando ao texto bíblico de onde nasceu toda esta questão, em Marcos 3:1-6. Ninguém começou a conspirar contra Jesus porque ele condenava em nós o que reconhecemos como mal. A conspiração para matar Jesus nasce do facto de ele condenar em nós o que reconhecemos como bem. E é aqui que a minha paciência tende a diminuir e a fazer-me querer tratar todas as pessoas que não entenderam isto como se fossem atrasados mentais (como se eu mesmo não fosse um deles, passando décadas da vida surdo à lição que agora quero gritar aos outros... enfim...). Das pessoas que não são de esquerda espera-se uma maior consciência do perigo das boas intenções, consciência essa materializada na hesitação em encontrar caminho a partir de uma identidade ideológica. Os de esquerda é que devem ser os crentes nas boas ideias, nos ideais; os outros devem, neste sentido, ser apenas os desconfiados. Logo, não faz sentido que um desconfiado das boas ideias e dos ideais se sinta confortável em dizer-se de direita porque nessa hora ele já passou a acreditar num ideal alternativo, completamente à medida do anterior que condenou.
Os cristãos acreditam que o bem que têm para fazer, fazem-no independentemente da bondade que têm. Os cristãos fazem o bem apesar da sua bondade, porque até a bondade que têm está corrompida pela existência do mal em nós. Voltando a Lutero, o pecado não é o que fazemos, o pecado é o que somos. Claro que o evangelho nos chama a fazer o bem, e quem não o fizer, peca (como explica o Apóstolo Tiago). Mas o bem que fazemos nunca pode ser o que somos, porque o bem que fazemos é o que Jesus é em nós, matando o nosso velho eu para uma nova criatura em que já não vivemos nós, mas Cristo (como Paulo explica em Romanos e Gálatas). Logo, um cristão não pode essencialmente ser de esquerda ou essencialmente ser de direita porque ser de esquerda ou ser de direita é fundamentar a nossa identidade no bem de um posicionamento ideológico. As pessoas que encontram bem num posicionamento ideológico são as que estão prontas para atacar qualquer pessoa que possa colocar em causa essa mesma qualidade do nosso posicionamento. O que é que elas geralmente fazem com pessoas assim, que colocam em causa o bem da nossa ideologia? O que fizeram com Jesus as pessoas que confiavam na bondade do seu posicionamento ideológico, seja ele de esquerda ou de direita: matar.
Um dos melhores efeitos do meu vídeo e do meu texto foi demonstrar a agressividade de cristãos que se dizem de direita, apelidando de "bobagem" o que tinha escrito e dito, e, numa escala mais pequena, a ausência de consequência intelectual dos cristãos que se dizem de esquerda. Dependendo da lado da tentação para onde caímos, os resultados são diferentes mas o sentido de ofensa pessoal é o mesmo. Cristãos de esquerda e direita sentiram-se ofendidos porque o que leram e viram arrancava uma parte importante daquilo que tomam como a sua identidade. O que vos quero dizer é que essa é precisamente a atitude que ajudou os fariseus e herodianos a serem tão competentes em conseguirem espetar Jesus numa cruz. Com dizia John Stott, "antes de olharmos para a cruz como algo feito por nós, temos de olhar para a cruz como algo que nós próprios fizemos".
Permitam-se um à parte, num texto que já segue insuportavelmente longo, para malhar especialmente nos palermas dos meus irmãos evangélicos que supostamente fazem parte da minha equipa teológica, a equipa calvinista. Que haja cristãos que se dizem calvinistas (vêem como não tenho problemas com rótulos? - amo o rótulo calvinista!) e que vêm para o meu mural chorar como criancinhas porque alguém lhes disse que a direita faz parte da equipa que odeia Jesus, é só uma prova que eles são tão calvinistas como eu sou esquimó. Um calvinista tem de ser um especialista em auto-suspeita, em saber mesmo que o pior pecador à face da terra é ele próprio e não os outros. Um calvinista não defende causas além de Cristo porque um calvinista sabe que somos fábricas de ídolos, como já dizia o bom João. Está a nascer uma raça de calvinistas no Brasil que é tão espiritualmente estúpida que o Diabo nem precisa de se dar ao trabalho de os tentar.
E permitam-me um novo à parte, num texto que já segue insuportavelmente logo, para apontar outro dedo ao Brasil. Em Portugal também detestamos quando um não-português fala sobre os defeitos portugueses. Portanto, sejam pacientes comigo. E aproveito ainda para dizer que o que vou afirmar agora, expando mais num livro que sairá, se Deus quiser, ainda este ano, chamado "Arame Farpado no Paraíso - o Brasil visto de fora e um pastor visto por dentro". O Brasil actualmente é o espírito da conspiração para matar Jesus feito país: as pessoas entregam-se ao ódio por não tolerarem que a bondade que julgam ter seja posta em causa. A comunicação entre brasileiros, no palco das questões políticas, é a triste defesa da razão de cada um sobre a falta de razão do outro. E, tragicamente, tantos cristãos evangélicos embarcam nessa cantiga odiosa. Reparem que não estou a dizer que, por exemplo, se fosse brasileiro não votaria Bolsonaro (graças a Deus, não tenho de me preocupar com isso). A questão não é essa. A questão não é tanto o mal das coisas em si, mas como as coisas estão a ampliar o mal em nós (Jesus explica isto em Marcos 7). E isto, em grande parte, aplica-se também aos Estados Unidos. E, mais, aplica-se, no fundo, a toda a comunicação feita na internet, sem o rosto sagrado do outro diante de mim e que facilita que o meu dedo prima o gatilho (logo, aplica-se também aos portugueses e a todas as pessoas no mundo).
Este texto tortuoso não deve ser usado para defender a neutralidade política ou o não-envolvimento cívico do cristão, mas deve ser usado para desistirmos de defendermos a qualidade do nosso melhor, esteja esse melhor na política ou noutro lado qualquer. Que haja uma reacção tão territorial de defesa de uma ideologia só significa que o nosso coração, amando o que nos parece bom na nossa identificação política, está pronto para se portar mal com qualquer pessoa que coloque isto em causa. É por isso que, ao terceiro capítulo do evangelho de Marcos, Jesus já está a ser tramado, e que tramados ficaremos pela aparente justiça própria que nos seduz em qualquer partido político.