Algumas impressões sobre o debate Peterson/Žižek
Há uma tendência popular de apontar a internet como a besta do Apocalipse. Pessoalmente não posso assegurar que ela não seja. Mas vejo-me obrigado a reconhecer que há coisas fantásticas a acontecer-me na vida que dificilmente aconteceriam sem que a internet desempenhasse o seu papel. Por exemplo, o debate entre Jordan Peterson e Slavoj Žižek aqui há uns dias.
Antes de partilhar algumas impressões, num texto bem ziguezagueante, quero tentar situar-me em relação a estes dois homens. Slavoj Žižek é um louco de esquerda cujo charme me atinge. Já li uma meia-dúzia de livros dele, recenseei uns quantos (para a extinta revista Atlântico e para a revista Ler), e, apesar de estar longe ideologicamente, estou mais perto em alguns domínios do que me agradaria reconhecer. Isto quer dizer que, por um lado, gostaria de que a vida fosse simples ao ponto de, por não ser de esquerda, pouco ou nada tivesse para elogiar ao Žižek . Mas a vida não é assim tão simples.
Acerca do Jordan Peterson não precisarei de dizer muito porque basta encaminhar-vos para o texto que, no ano passado,
escrevi acerca dele no Observador, e que é uma provinciana glória pessoal por ter sido o primeiro artigo sobre ele na imprensa nacional.
O Peterson é um amor recente e o Zizek é um amor/ódio antigo.
A primeira observação que quero partilhar é admitir que, ao comentar o debate Jordan Peterson vs Slavoj Žižek, também estou a fazer algo irritante que é dizer uma das melhores coisas é ter-se falado de um assunto acerca do qual já vos tinha falado mas que ninguém me ligou (vejam
aqui). Por isso, aceitem por uns instantes este momento de “eu sempre disse isso, eu sempre disse isso!” Esse assunto do qual vos falei e que ninguém me ligou é a rasura antropológica do marxismo:
o comunismo desantropologiza o homem para antropologizar as chamadas estruturas sociais. Esta é uma fraqueza intelectual tão patente que até um pateta como eu lá chega. Sinto-me bregamente vindicado pelos primeiros vinte minutos do encontro deste par de star-intelectuais.
A segunda observação é acerca da imprevisibilidade de como os intervenientes encarnam as suas ideias. Como a vida não é assim tão simples, a rasura antropológica que correctamente Peterson aponta ao marxismo é, de certo modo, invertida para que num discurso global acerca de sistemas económicos, Peterson, de facto, pareça o optimista (e, nesses termos, o ideologicamente raso), e Zizek encarne o pessimista (e, nesses termos, o pessimista antropológico). Isto significa que, ao assistir a este debate, frequentemente me senti acreditando em Peterson mas identificando-me com Žižek. Ou, se quisermos, não acreditando em Zizek mas não me identificando com Peterson. Ou sou eu que sou burro ou a vida pode mesmo ser complicada (há outras opções a considerar mas que agora não são assim tão importantes para este texto).
O problema de Peterson, de defender correctamente algo que não encarna eficazmente, é, obviamente, teológico. Como Peterson ainda não crê na ressurreição de Cristo, concebe uma existência em que a verdade pode ser independente daquilo que é carne e osso. Também é por isto que Peterson lê a Bíblia a partir de Jung, mas não consegue ler a Bíblia a partir da Bíblia. Peterson, como psicólogo que é, pode dar-se ao luxo de reciclar uns quantos gnosticismos arcaicos sem dar sinal de que compreende as suas consequências. Aliás, no pensamento de Peterson o homem precisa mais de uma terapêutica do que de uma salvação. O triunfo de Peterson é, numa época que tornou doentes em déspotas, reafirmar o valor da saúde. Mas aponto-lhe (eu e muitos outros) a insuficiência do tratamento sugerido. A insuficiência do doutor Peterson é, em ao registar as melhoras dos seus pacientes, perder algum respeito à doença deles. E por isso não é casual que no fim acabe por admitir que acredita que as pessoas são fundamentalmente capazes de ultrapassar o mal que enfrentam com o bem que podem produzir.
A isto não é estranho o movimento global de neo-tomismo-triunfalista dos nossos dias. O que quero dizer com neo-tomismo-triunfalista? Assim, para simplificar uma conversa que tem uma complexidade que naturalmente não domino, o neo-tomismo-triunfalista é, nas insónias da imanência pós-moderna, sonhar com a restauração de um reino milenar idealizado a partir de uma efabulação maniqueísta do passado. Como assim? O neo-tomismo-triunfalista é a crença de que o sarilho filosófico em que nos metemos é culpa dos pecados pretéritos dos outros. O neo-tomismo-triunfalista tem hoje uma força impressionante entre convertidos ao catolicismo e defensores reaccionários da cultura ocidental, um público extraordinariamente solícito a aceitar sistemas sacramentais que resolvem o mal do mundo a partir de penitências humanas (para entenderem mais acerca do neo-tomismo-triunfalista aconselho a leitura de “How (Not) To Be Secular”, uma leitura do filósofo católico Charles Taylor a partir do calvinista James K. A. Smith).
Peterson, apesar de ainda não se ter convertido ao catolicismo (parece andar perto - e, neste sentido, não vale a pena distinguir a Igreja Ortodoxa da Igreja de Roma porque em termos filosóficos elas operam segundo o mesmo código não-hebraico), e, apesar de não vestir oficialmente o equipamento do neo-tomismo-triunfalista, joga-lhe mais facilmente a táctica, fintando pelo flanco esquerdo do campo para evitar o bloco defensivo e desconfortavelmente logocêntrico de uma fé cristã que depende inteiramente da centralidade da palavra, sem as fissuras entre universais e factos às quais o velho Frei Tomás era tão dado. Ou seja, apesar de tanto espaço que concede ao problema do sofrimento, creio que Peterson tende a apreciar o cristianismo como uma vitória sofrida do bem, à la Roma, por oposição a encarar o cristianismo como o sofrimento vitorioso do mal, à la Genebra (Roma afirma hoje Cristo a partir do exemplo moral, onde o protestantismo teima na sua morte expiatória). Não é por isso de espantar que Žižek mais rapidamente admire o cristianismo pela afirmação da treva do que pelo triunfo da luz (vejam mais à frente, ainda que o faça citando o católico preferido dos calvinistas, Chesterton).
Bem, este texto está numa digressão das antigas… Vou tentar retomar: é aqui que faz toda a diferença o amor de Žižek ao Kierkegaard (atenção que o meu querido Kierkegaard não era imune a algumas tentações tomistas). Porque Žižek ama Kierkegaard, que por sua vez amava Lutero, que por sua vez amava Paulo, que por sua vez amava Cristo, que por sua vez amava o Pai (talk about real sucessão apostólica!), sabe que o pecado não é o que fazemos, é o que somos. Žižek pode ser pessimista, como um bom protestante tem de ser, porque sabe que a vida é mais acerca dos problemas que estragam as soluções, do que acerca das soluções que resolvem os problemas. Getting to the point: a salvação de Cristo impõe-se porque existir é fracassar no melhor que conseguimos. Não há triunfalismo ou optmismo que nos valha. Somos salvos porque somos tomados crucialmente por aquilo que não é nosso - a redenção acontece em nós por aquilo que fora de nós aconteceu antes.
Voltando ao debate, partilho ainda outras impressões. Peterson fala para ser entendido porque, ainda que não afirme a veracidade da ressurreição de Cristo, e, portanto, que o que é absoluto tem carne e osso para ser atestado por nós, crê que dar-se a entender é uma questão moral. Žižek, que não crê em qualquer absoluto moral, pelo menos na medida em que ele é entendido por um crente religioso, tem de falar de um modo que não se preocupe a dar-se a entender. Para o ateu, dar-se a entender é a persistência de um sintoma religioso. Žižek pode (e deve) ser confuso porque essa é uma consequência inevitável da sua visão sobre a realidade, de que Deus e o sentido não existem. Ponto para Peterson. Mas, calma. Porque isto da existência do sentido não significa uma vitória garantida daqueles que lhe reconhecem a necessidade.
As frases mais proféticas, as mais apocalípticas, aquelas que melhor revelam as incapacidades dos impérios supostamente omnipotentes deste século, são ditas por Zizek. Vou apontar três. “The main burden is freedom itself”. O neo-tomismo-triunfalista celebra a liberdade como se ela tivesse ficado acorrentada ao jardim do Éden; pois não ficou. Se a liberdade fosse a solução absoluta, Deus não teria feito um pacto com Abraão mas limitar-se-ia a espalhar urnas pela Palestina - como podem imaginar, não é essa a história das Escrituras.
Segunda: “never presume that your suffering is in itself a proof of your authenticity” - eis a racha do misticismo (romano e oriental) que, na idealização do sofrimento, e idealização essa que tenta Peterson, atribui ao ser humano a participação na reabilitação cósmica de todas as coisas. Valha-nos novamente Lutero: tudo o que de bom fazemos não é porque aqui estamos; é feito apesar de nós.
Terceira: “o mal é, de certo modo, mais espiritual do que o bem” (ou “a queda cria retroactivamente o lugar de onde caíste”). Estas frases são bebidas fortes; não dá para serem provadas por um miúdo qualquer. Mais tarde Žižek diz, com toda a razão, que o cristianismo é uma religião única porque não somos nós que vamos até Deus, mas Deus que abraça ele mesmo a distância que nos separa dele na cruz. Jesus é salvador porque ao pecado foi dada grande importância (e daí que não deixe de ser revelador que todos aqueles que se afastam da valorização do pecado, que tomam como um tique religioso primitivo, acabem como o pobre Padre Anselmo Borges, no outro dia na TV, a dizer que se Deus matou o seu Filho na cruz para nos salvar, então é porque Deus é pior que o Padre Anselmo - o Padre Anselmo pode dar-se ao luxo de considerar que a valorização do pecado desprestigia Deus porque o Padre Anselmo, graças a crer numa dialéctica espiritual assente em rituais que lhe aperfeiçoam a humanidade, considera que ser humano é, por natureza, tratar o divino como comum - é o oposto, padre pateta! - ser humano é fundamentalmente tratar o divino como outro - há certamente Génesis 1, em que somos criados à imagem de Deus, mas Génesis 3 muda tudo - o Génesis 3 pouco ou nada muda na Bíblia deste padre pateta).
Prossigamos que se não acabo louco a pensar em padres patetas do calibre do Padre Anselmo (que nem justiça faz ao nome que tem…). O debate Peterson/ Žižek foi também o que de mais parecido vi na vida entre o debate mundo velho versus mundo novo. A nossa tendência hoje, como Peterson demonstra competentemente, é tornar tudo político. Mas tornar tudo político é, por vezes, a maneira mais eficaz de não respeitar a largura do que também é político mas a político não se limita. Peterson vs Žižek também é um embate continental, de uma Europa velha, demasiado antiga para poder entregar-se ao luxo da esperança, com uma América que ainda esperneia quando a alfinetam no rabo (ainda que seja a versão mais europeia da América, um canadiano).
Por outro lado, os eixos de debate não são lineares. Há ocasiões em que aquilo que está em causa é epistemológico (ou teleológico, para ser mais preciso), sabermos se a existência de uma pessoa pode ser pautada por um sentido que possa ser conhecido (Peterson diz sim, Žižek não pode dizer sim). Há ocasiões em que aquilo que está em causa é estético, aderirmos a formas (elegância, lógica do argumento, clareza, execução do método combinado previamente, etc. - a favor de Peterson e contra Žižek ). Há ocasiões em que aquilo que está em causa é ontológico, saber se somos sobretudo a partir do que fazemos ou do que contemplamos (com a primeira a ser encabeçada mais por Peterson e a segunda mais por Žižek , parece-me). Isto serve apenas para constatar que neste debate as linhas supostamente ideológicas não chegam para explicar todas as tensões que nele acontecem e que, volta e meia, o herói e o vilão trocam de lugares. Se, no geral, creio que Peterson ganhou? Certamente. Mas, no particular, quem foi que, no meio das trevas, traduziu mais eficazmente a nossa necessidade de salvação? Sem dúvidas que foi Žižek. Obrigado internet por demonstrares com grande estilo que vitórias importantes também podem passar por protestos dos derrotados.