Além das afinidades prévias
É muito desinspirador que a nossa primeira reacção a algumas pessoas seja política. É certo que, sob certa perspectiva, tudo é político. Mas, por outro lado, tornamo-nos caricaturas de cada vez que reduzimos tudo a uma categoria essencial. A afamada polarização dos nossos dias passa por aqui. Sugiro, todavia, um teste no sentido contrário. Que tal se me testasse ao ponto de ouvir alguém como se fosse meu filho, mesmo quando é alguém que mais justificada ou injustificadamente me repugna? Façamo-lo como uma experiência, por incómoda que seja. Mas concebamos a possibilidade desse desconforto radical, de termos de lidar com alguém de quem não gostamos como se das nossas entranhas tivesse vindo. Afinal, certamente os nossos próprios filhos, por muito amorosos que nos pareçam agora, viverão com a possibilidade de se tornarem pouco atraentes aos olhos dos outros.
A possibilidade de o amor existir parece-me ter muito mais a ver com isto do que com um ponto de partida qualquer em que, por natureza, somos todos irmãos uns dos outros (sim, está para breve uma colecção de textos em que vou malhar forte e feio na última encíclica do Papa Francisco). Se o amor realmente existe, e acredito que sim, ele está muito mais na resistência à repugnância do que na afinidade prévia. As figuras bíblicas do amor fazem-se sempre numa vitória árdua sobre diferenças entre pessoas que eram moralmente compreensíveis (os judeus contra os povos que os maltratavam; o pai contra o filho que precocemente o tratou como se tivesse morrido pedindo-lhe a herança antecipada; o descrédito que os Samaritanos mereciam por promoverem uma cultura de assimilação das forças colonizadoras; e isto só para alguns exemplos clássicos). Amar impõe-se porque odiar é o mais fácil.
Escrevo isto porque estou a ouvir a conversa que tive com o Rui Ramos e que está hoje disponível nas plataformas digitais. Ouçam-na. Tenho andado entusiasmado com esta coisa dos podcast porque tenho tentado mesmo ouvir. É certo que por enquanto tenho conversado com pessoas com quem partilho afinidades prévias relevantes. Por exemplo, no caso do Rui, aproxima-me dele o cuidado com que escreve, revelando atenção ao que acontece. Ao contrário do que julgamos, e por estarmos permanentemente expostos a uma descrição sucessiva de acontecimentos por conta da comunicação social, assumimos que lhes estamos atentos. Permitam-me discordar. É muito desequilibrada a relação entre os muitos acontecimentos que nos são relatados e a atenção que lhes prestamos ao ponto de poder haver real revelação neles. Creio que muito nos é relatado e pouquíssimo nos é revelado.
Nesta conversa com o Rui interessa-me o facto de termos ido além do comentário político que, para todos os efeitos, é parte do trabalho diário dele (podíamos até ter gastado algum tempo no assunto que seria pertinente). Em menos de nada estávamos nos livros que nos mudaram, no temor diante de Deus, na necessidade de ler. Ler mesmo. Parece-me ter sido uma conversa valente e, arrisco até, uma conversa sobre o amor. Diverte-me que tudo isto possa acontecer além da minha imaginação num espaço que tem como lema odiar artistas.