Uma Doença Chamada Protestantismo VI (e último)
O evangelho deste Papa é o evangelho não ser necessário
Este último texto acerca da encíclica “Fratelli Tutti” é, à semelhança dela, algo difícil de ler. Ao sentir a necessidade de terminar esta via dolorosa de, como anti-católico primário que sou, escrever criticamente sobre este documento papal, procuro um ponto final que sirva de remate. A questão é que, se as linhas do Papa não são as mais direitas, é também para mim difícil evitar conclusões atravessadas. E, no entanto, obrigo-me a uma necessária e final: o evangelho do Papa Francisco em “Fratelli Tutti” é o evangelho não ser necessário.
Quando se lê “Fratelli Tutti” não é de modo algum claro que a conversão ao cristianismo seja uma necessidade. Se não és cristão mas tentas ser bom, ok. Se és um muçulmano e tentas ser bom, ok. E por aí fora. É só ir trocando as identidades religiosas. Estamos todos a tentar viver juntos e tentarmos ser amigos uns dos outros é, fundamentalmente, a única coisa a exigir. Reparem: concordo que tentarmos ser amigos uns dos outros não é coisa pouca hoje ou em qualquer outra época, mas como contributo central de um líder religioso parece-me manifestamente pouco. Nem nada remotamente parecido com uma conversão religiosa se arranja?
Isto levar-nos-ia a investir algum tempo a compreendermos como Catolicismo e Protestantismo vêm a conversão de modos diferentes. E não temos como, nestes textos. Tenho de me satisfazer generalizando que a conversão é no Catolicismo um processo dinâmico ao ponto de não depender da decisão pessoal, uma vez que a Igreja, confundindo-se com Cristo, pode cuidar da nossa salvação além do nosso descuido privado. No Catolicismo a salvação é uma questão de tal modo colectiva que a pessoa pode ser salva independentemente da vontade de não ser ou de nem sequer acreditar que é necessário ser. Esta ideia é potente porque, de certo modo, ultrapassa a urgência tradicional que o assunto durante milénios teve: se for possível que a salvação da minha alma se alcance independentemente do que penso ou faço acerca dela, torna-se possível salvar-se uma geração que nem sequer concorda com o conceito de precisar de ser salva. E “Fratelli Tutti” contribui para este processo.
Como já escrevi, quando comecei a ler “Fratelli Tutti” tentei usar um esquema que no passado tinha usado, muito mais exaustivo. O que é que isso significava? Se concordasse, tomava nota; se discordava, tomava nota. Transcrevo o método.
- “Reagir com um novo sonho de fraternidade e amizade social que não se limite a palavras” é todo um programa que, por simpático que soe, parece excluir as tradições cristãs que não estabeleçam a mesma dicotomia assumida entre fraternidade e palavras. “Renascer um anseio mundial de fraternidade”. Esta linguagem de sonho é recorrente e, na minha opinião, demasiado abstracta.
- O papa tem razão quando aponta que a fragmentação que a Covid 19 deixou exposta é um assunto que desmascara as teses mais optimistas acerca da felicidade da nossa ligação via tecnologia.
- Fico com a ideia que, junto com a pertinência da crítica a um momento em que “ressurgem nacionalismos fechados” (ponto 11), deveria vir a crítica aos momentos em que o excesso oposto também gera outros problemas. Os problemas de uma época que se encanta com nacionalismos são óbvios, mas os problemas de uma época que se julga imune a eles não mereceriam alguma nota crítica também? Afinal, poucas décadas depois, todos esse nacionalismos regressam deixando a nu a nossa suposta imunidade a eles—não há nada a aprender aqui?
- O Papa tem razão em criticar o “desconstrucionismo em que a liberdade humana pretende construir tudo a partir do zero”. Mas também é certo que, por outro lado, Roma parece contribuir para uma idealização da liberdade, como vocação natural do homem (ponto 13). Se é mau julgarmos que somos assim tão livres para fazermos o que queremos, por que razão o Catolicismo não contribui mais demonstrar que existir é muito mais complicado do que uma simples realização na nossa liberdade?
- O Papa tem razão ao apontar o “mecanismo político de exasperar, exacerbar, polarizar” (ponto 15). “Vencer torna-se sinónimo de destruir” (p. 16)—verdade: veja-se na internet a popularidade de vídeos de Chico destrói Zé, etc. “Precisamos de nos constituirmos como um nós que habita a casa comum” (p. 17).
- O Papa faz bem em falar da desvalorização dos que “ainda não servem” (pobres, deficientes ou bebés) e dos que “já não servem” (velhos).
- O Papa tem razão quando fala “na obsessão por reduzir os custos laborais” (p. 20).
- O Papa tem razão na expressão de novas formas de racismo (p. 20).
- Se o ponto 23 corajosamente afirma a necessidade de as mulheres serem justiçadas, por que não se materializa essa afirmação em exemplos concretos?
- O Papa tem razão em denunciar a escravatura (p. 24).
- É fácil falar contra muros quando se vive dentro dos mais intransponíveis (p. 27).
- Por que razão parece tão desagradável ao Papa afirmar que Deus poderia estar a usar esta crise do Corona Vírus como castigo? No fundo, todos podemos dizer que o Corona Vírus é responsabilidade de qualquer pessoa (a China por ser uma ditadura, Trump por ser grunho, nós por tratarmos mal o ambiente), menos de Deus.
- O ponto 37 forma um espantalho do assunto da emigração. As “abordagens económico-liberais” supostamente defendem “que é preciso evitar a todo o custo a chegada de pessoas migrantes”? Em que mundo vive o Papa? E, depois, sob os migrantes cai uma romantização. Mal neles parece ser impossível. O mal fica do outro lado do muro, nos que os evitam (sendo que me parece contraditório como o Papa critica muros e depois erguê-los tão claros na separação que faz entre opressores e oprimidos). Vá lá, mais tarde também se falará no direito a não emigrar (p. 38).
- No ponto 43 o Papa tem razão ao apontar a insuficiência das relações digitais. “A agressividade social encontra um espaço de ampliação incomparável nos dispositivos móveis e nos computadores” (p. 44). Há manipulação de consciências e até do processo democrático.
Estão a ver como a coisa ficava. Chata. É claro que o Papa se farta de dizer coisas acertadas. Não valia a pena prosseguir com este método em centenas de afirmações papais e posteriores comentários meus. Quem sou eu para me colocar numa posição de ponto opinativo? Por uma questão de pertinência tenho de me concentrar em fazer aquilo que provavelmente outros não farão. E não digo isto no sentido em que me cabe um papel iluminado de apontar ao Papa o que outros não têm capacidade. Mas interessa-me assumir que, como leitor português e Protestante, devo incidir sobre uns aspectos em detrimento de outros. Por isso preferi resumir em três pontos negativos a leitura de um texto que, naturalmente, também me desperta a concórdia.
Receio que no parágrafo 190 encontremos um trágico resumo de toda a encíclica “Fratelli Tutti”: “Parece uma utopia ingénua, mas não podemos renunciar a este sublime objectivo”. Concordo porque, de facto, a encíclica resvala continuamente para um tom utópico. Parece-me sinal de presença de espírito o Papa admitir que assim pareça. Coisas difíceis são tornadas fáceis e fáceis difíceis, o que não ajuda a um discurso rigoroso sobre assuntos complicados. Por exemplo, no ponto 258, após milénios de tradição de discussão do conceito de guerra justa, o Papa Francisco atinge o assombro beatífico de, finalmente, poder concluir que “hoje é muito difícil sustentar os critérios racionais amadurecidos noutros séculos para falar de uma possível “guerra justa”. Nunca mais a guerra!” Uau. Como é que se reage a uma afirmação deste calibre sem ceder ao cinismo?
O capítulo VII, que versa a guerra e a pena de morte tem a espessura argumentativa de uma opinião que, na melhor das hipóteses, se ouviria de alguém participando numa classe de Escola Dominical. Estou a tentar conter-me mas luto contra mim mesmo (!): o modo como este Papa inspira os Católicos a despacharem a questão da pena de morte, saltando de nenúfar em nenúfar em piruetas epistemológicas, oferecerá ao mundo uma nova geração de acérrimos defensores dela—aliás, isso já é constatável. Portanto, guerra justa? Nem pensar. Pena de morte? Nem pensar. A facilidade de tornar o complicado simples continua.
No ponto 213, o Papa tenta fundamentar na transcendência a dignidade de cada pessoa. Isto significa tentar explicar porque cada pessoa tem valor em si num mundo que, cada vez menos crente em absolutos, tem dificuldade em defender a vida de todos (a solução de Peter Singer, por exemplo, como um dos pensadores que hoje sustenta a dignidade humana fora da transcendência, sugerindo que a vida que merece ser defendida é a que tem consciência do prazer e sofrimento, abre espaço para uma ética de aborto e até o infanticídio). Francisco escreve assim:
“213. Se devemos em qualquer situação respeitar a dignidade dos outros, isto significa que esta não é uma invenção nem uma suposição nossa, mas que existe realmente neles um valor superior às coisas materiais e independente das circunstâncias e exige um tratamento distinto. Que todo o ser humano possui uma dignidade inalienável é uma verdade que corresponde à natureza humana, independentemente de qualquer transformação cultural. Por isso o ser humano possui a mesma dignidade inviolável em todo e qualquer período da história, e ninguém pode sentir-se autorizado, pelas circunstâncias, a negar esta convicção nem a agir em sentido contrário. Assim, a inteligência pode perscrutar a realidade das coisas, através da reflexão, da experiência e do diálogo, para reconhecer nessa realidade que a transcende a base de certas exigências morais universais.
214. Aos agnósticos, este fundamento poder-lhes-á aparecer como suficiente para conferir aos princípios éticos basilares e não negociáveis uma validade universal de tal forma firme e estável que consiga impedir novas catástrofes. Para os crentes, a natureza humana, fonte de princípios éticos, foi criada por Deus, que em última análise confere um fundamento sólido a estes princípios.[203] (Nota de rodapé: Como cristãos, acreditamos também que Deus dá a sua graça para se poder agir como irmãos.) Isto não estabelece um fixismo ético nem abre a estrada à imposição dum sistema moral, uma vez que os princípios morais fundamentais e universalmente válidos podem dar lugar a várias normativas práticas. Por isso, fica sempre um espaço para o diálogo.”
Dá vontade de dizer: o que é que me escapou? Como é que ficou estabelecido que a dignidade das pessoas é superior às coisas materiais? O Papa limitou-se a ficar na lógica circular de dizer “Que todo o ser humano possui uma dignidade inalienável é uma verdade que corresponde à natureza humana, independentemente de qualquer transformação cultural.” Como é que isto é para um agnóstico um “fundamento suficiente”? Afinal, logo a seguir o Papa reconhece que o elemento distintivo, que realmente justifica a superioridade da dignidade humana em relação às coisas materiais, provém de terem sido criados por Deus, “que em última análise confere um fundamento sólido a estes princípios”. O que nestes dois parágrafos está é, na melhor das hipóteses, a afirmação de um valor da vida com base transcendente que, certamente, não precisa da “imposição dum sistema moral”, mas fica por explicar de onde surge tão harmoniosamente esse “espaço para o diálogo”. Resumindo muito, muito, muito o problema: como é que pessoas que não tomam como “fundamento sólido” a crença que Deus existe podem aceitar que toda a vida humana é sagrada por ter sido “criada por Deus”? Afinal, se Deus não existir é absurdo ter o sagrado da vida humana dependente dele. Logo, a vida humana tem de ser defendida a partir de outra perspectiva qualquer, que não a transcendente. O espaço de diálogo tem de assentar em qualquer outro pressuposto que ficou por ser referido pelo Papa Francisco, ao ter mencionado uma transcendência que não é consenso para quem não acredita nela. A argumentação lógica deste ponto é um grande buraco.
Por outro lado, vale a pena reparar no detalhe: como é que o alicerce de toda a encíclica, vindo da tradição de Assis de que todos os homens são irmãos, pode ser reduzida a uma nota de rodapé que nunca é explicada? Como se justifica que “como cristãos, acreditamos que Deus dá a sua graça para se poder agir como irmãos”? Isto, que não dava para fazer um semestre de Hermenêutica no Seminário Teológico Baptista de Queluz, dá para safar o homem do Vaticano? O pressuposto de “Fratelli Tutti” é corrido a nota de rodapé.
Diria que este foi o ponto mais filosófico que a encíclica tentou estabelecer, mas tão aereamente que sabe ao filme “Frozen”: já passou. É para uma tradição filosófica tão consolidada assim, representada por um Papa com argumentos destes, que a Igreja Católica Romana trabalhou durante supostos milénios? Céus. Ao lado disto, bem aventurado o fundamentalismo mais primata! E por falar em fundamentalistas primatas, dêem-me licença para terminar a árdua leitura de “Fratelli Tutti”. Concluo que a argumentação é para quem precisa do que através da aparência não conseguiu: parece bastar um texto que soe bonito. No fundo, o bruto é quem não adere a essa beleza e exige-a expressa em termos razoavelmente razoáveis, permitam-me a redundância.
O dilema Católico no Século XXI é sério. Por um lado, Igreja Católica é a instituição que na cristandade maior objectividade reclama para si, enquanto depósito de autoridade da continuidade apostólica, continuidade apostólica essa que, na sua perspectiva, efectivamente pode distinguir o seu cristianismo como o mais autêntico de todos os outros. Para a Igreja Católica, a Igreja Católica não é uma questão de opinião mas de objectividade. Mas, tragicamente e de outra perspectiva!, a Igreja Católica tem em décadas recentes relativizado a crença em grandes afirmações teológicas objectivas (sobretudo a partir do Concílio Vaticano II). O Catolicismo de hoje relativiza a Teologia ao mesmo tempo que não prescinde do estatuto incontornavelmente teológico de se apresentar como a instituição realmente detentora da universalidade cristã. É um jogo perigoso: Roma mete-se em namoricos pós-modernos ao mesmo tempo que se diz tradicionalmente casada. Como se diz agora, há muita skin in the game.
Qual me parece o resultado final (a mim e, naturalmente, a muitos mais)? O cristianismo romano, à força da pressão recente por tanta inclusividade, vai prescindindo de ser razoavelmente cristão. Sobretudo nas mãos de um Papa certamente mais progressista do que Bento era, o evangelho agora é o evangelho não ser preciso. O cristianismo romano é o cristianismo não ser fundamental. O discurso do fundamental passa a ser marca de todos aqueles que são caracterizados, claro está!, como fundamentalistas. Para esta Igreja Católica Romana a verdadeira salvação é não precisarmos de ser salvos uma vez que, olhando Deus para as boas intenções de cada pessoa independentemente do seu credo, só uma pequeníssima quantidade de gente conseguirá ser tão moralmente desastrada ao ponto de acabar condenada. Se em tempos a fé cristã anunciava ser possível o milagre de pecadores se salvarem através de Jesus Cristo, para muitos hoje o milagre é alguém poder ser tão incompreensivelmente mau que mereça o Inferno. Quem estará lá? No empobrecimento fatal da nossa imaginação moral, enfiamos lá o Hitler, e uns quantos racistas e abusadores sexuais.
O Catolicismo hoje, junto com todas as expressões religiosas tidas como não-fundamentalistas, encarnam o mantra que nos acompanhou durante a pandemia: vai ficar tudo bem. Se cada um de nós der o seu melhor, Deus, sendo justo mas não se armando em picuinhas, vai receber todos no Paraíso. E esta é a suprema fatalidade romana do Século XXI: depois de milénios a temermos pelas nossas almas, chegámos hoje à conclusão que, bem vistas as coisas, nascemos para grandes destinos. Doente é quem considera que pode dar-se o caso de a humanidade ter à sua espera outra coisa que não a glória devida. Num mundo predestinado para tão infinitas luzes, destoam todos os que descobrem trevas. O Protestantismo torna-se da ordem da perturbação mental (o Protestantismo e qualquer outra expressão religiosa que questione tão triunfais desfechos). Creio que preciso de continuar a escrever acerca da bem-aventurança da doença num tempo obcecado com a saúde mental. Termino esta colecção de textos com o consolo de, na minha obsessão pela palavra, encontrar na biblioteca bíblica e na tradição milenar cristã um desfile de gente tão ou mais perturbada do que eu, crente que por muito difícil que seja compreender uma existência em que, sem voto na matéria, ingressámos a pique, mais incompreensível é ainda a graça de Cristo poder salvar doentes como nós.