segunda-feira, dezembro 28, 2020

Uma Doença Chamada Protestantismo VI (e último)

O evangelho deste Papa é o evangelho não ser necessário


Este último texto acerca da encíclica “Fratelli Tutti” é, à semelhança dela, algo difícil de ler. Ao sentir a necessidade de terminar esta via dolorosa de, como anti-católico primário que sou, escrever criticamente sobre este documento papal, procuro um ponto final que sirva de remate. A questão é que, se as linhas do Papa não são as mais direitas, é também para mim difícil evitar conclusões atravessadas. E, no entanto, obrigo-me a uma necessária e final: o evangelho do Papa Francisco em “Fratelli Tutti” é o evangelho não ser necessário.

Quando se lê “Fratelli Tutti” não é de modo algum claro que a conversão ao cristianismo seja uma necessidade. Se não és cristão mas tentas ser bom, ok. Se és um muçulmano e tentas ser bom, ok. E por aí fora. É só ir trocando as identidades religiosas. Estamos todos a tentar viver juntos e tentarmos ser amigos uns dos outros é, fundamentalmente, a única coisa a exigir. Reparem: concordo que tentarmos ser amigos uns dos outros não é coisa pouca hoje ou em qualquer outra época, mas como contributo central de um líder religioso parece-me manifestamente pouco. Nem nada remotamente parecido com uma conversão religiosa se arranja?

Isto levar-nos-ia a investir algum tempo a compreendermos como Catolicismo e Protestantismo vêm a conversão de modos diferentes. E não temos como, nestes textos. Tenho de me satisfazer generalizando que a conversão é no Catolicismo um processo dinâmico ao ponto de não depender da decisão pessoal, uma vez que a Igreja, confundindo-se com Cristo, pode cuidar da nossa salvação além do nosso descuido privado. No Catolicismo a salvação é uma questão de tal modo colectiva que a pessoa pode ser salva independentemente da vontade de não ser ou de nem sequer acreditar que é necessário ser. Esta ideia é potente porque, de certo modo, ultrapassa a urgência tradicional que o assunto durante milénios teve: se for possível que a salvação da minha alma se alcance independentemente do que penso ou faço acerca dela, torna-se possível salvar-se uma geração que nem sequer concorda com o conceito de precisar de ser salva. E “Fratelli Tutti” contribui para este processo.

Como já escrevi, quando comecei a ler “Fratelli Tutti” tentei usar um esquema que no passado tinha usado, muito mais exaustivo. O que é que isso significava? Se concordasse, tomava nota; se discordava, tomava nota. Transcrevo o método.

- “Reagir com um novo sonho de fraternidade e amizade social que não se limite a palavras” é todo um programa que, por simpático que soe, parece excluir as tradições cristãs que não estabeleçam a mesma dicotomia assumida entre fraternidade e palavras. “Renascer um anseio mundial de fraternidade”. Esta linguagem de sonho é recorrente e, na minha opinião, demasiado abstracta.

- O papa tem razão quando aponta que a fragmentação que a Covid 19 deixou exposta é um assunto que desmascara as teses mais optimistas acerca da felicidade da nossa ligação via tecnologia.

- Fico com a ideia que, junto com a pertinência da crítica a um momento em que “ressurgem nacionalismos fechados” (ponto 11), deveria vir a crítica aos momentos em que o excesso oposto também gera outros problemas. Os problemas de uma época que se encanta com nacionalismos são óbvios, mas os problemas de uma época que se julga imune a eles não mereceriam alguma nota crítica também? Afinal, poucas décadas depois, todos esse nacionalismos regressam deixando a nu a nossa suposta imunidade a eles—não há nada a aprender aqui?

- O Papa tem razão em criticar o “desconstrucionismo em que a liberdade humana pretende construir tudo a partir do zero”. Mas também é certo que, por outro lado, Roma parece contribuir para uma idealização da liberdade, como vocação natural do homem (ponto 13). Se é mau julgarmos que somos assim tão livres para fazermos o que queremos, por que razão o Catolicismo não contribui mais demonstrar que existir é muito mais complicado do que uma simples realização na nossa liberdade?

- O Papa tem razão ao apontar o “mecanismo político de exasperar, exacerbar, polarizar” (ponto 15). “Vencer torna-se sinónimo de destruir” (p. 16)—verdade: veja-se na internet a popularidade de vídeos de Chico destrói Zé, etc. “Precisamos de nos constituirmos como um nós que habita a casa comum” (p. 17).

- O Papa faz bem em falar da desvalorização dos que “ainda não servem” (pobres, deficientes ou bebés) e dos que “já não servem” (velhos).

- O Papa tem razão quando fala “na obsessão por reduzir os custos laborais” (p. 20).

- O Papa tem razão na expressão de novas formas de racismo (p. 20).

- Se o ponto 23 corajosamente afirma a necessidade de as mulheres serem justiçadas, por que não se materializa essa afirmação em exemplos concretos?

- O Papa tem razão em denunciar a escravatura (p. 24).

- É fácil falar contra muros quando se vive dentro dos mais intransponíveis (p. 27).

- Por que razão parece tão desagradável ao Papa afirmar que Deus poderia estar a usar esta crise do Corona Vírus como castigo? No fundo, todos podemos dizer que o Corona Vírus é responsabilidade de qualquer pessoa (a China por ser uma ditadura, Trump por ser grunho, nós por tratarmos mal o ambiente), menos de Deus.

- O ponto 37 forma um espantalho do assunto da emigração. As “abordagens económico-liberais” supostamente defendem “que é preciso evitar a todo o custo a chegada de pessoas migrantes”? Em que mundo vive o Papa? E, depois, sob os migrantes cai uma romantização. Mal neles parece ser impossível. O mal fica do outro lado do muro, nos que os evitam (sendo que me parece contraditório como o Papa critica muros e depois erguê-los tão claros na separação que faz entre opressores e oprimidos). Vá lá, mais tarde também se falará no direito a não emigrar (p. 38).

- No ponto 43 o Papa tem razão ao apontar a insuficiência das relações digitais. “A agressividade social encontra um espaço de ampliação incomparável nos dispositivos móveis e nos computadores” (p. 44). Há manipulação de consciências e até do processo democrático.

Estão a ver como a coisa ficava. Chata. É claro que o Papa se farta de dizer coisas acertadas. Não valia a pena prosseguir com este método em centenas de afirmações papais e posteriores comentários meus. Quem sou eu para me colocar numa posição de ponto opinativo? Por uma questão de pertinência tenho de me concentrar em fazer aquilo que provavelmente outros não farão. E não digo isto no sentido em que me cabe um papel iluminado de apontar ao Papa o que outros não têm capacidade. Mas interessa-me assumir que, como leitor português e Protestante, devo incidir sobre uns aspectos em detrimento de outros. Por isso preferi resumir em três pontos negativos a leitura de um texto que, naturalmente, também me desperta a concórdia.

Receio que no parágrafo 190 encontremos um trágico resumo de toda a encíclica “Fratelli Tutti”: “Parece uma utopia ingénua, mas não podemos renunciar a este sublime objectivo”. Concordo porque, de facto, a encíclica resvala continuamente para um tom utópico. Parece-me sinal de presença de espírito o Papa admitir que assim pareça. Coisas difíceis são tornadas fáceis e fáceis difíceis, o que não ajuda a um discurso rigoroso sobre assuntos complicados. Por exemplo, no ponto 258, após milénios de tradição de discussão do conceito de guerra justa, o Papa Francisco atinge o assombro beatífico de, finalmente, poder concluir que “hoje é muito difícil sustentar os critérios racionais amadurecidos noutros séculos para falar de uma possível “guerra justa”. Nunca mais a guerra!” Uau. Como é que se reage a uma afirmação deste calibre sem ceder ao cinismo?

O capítulo VII, que versa a guerra e a pena de morte tem a espessura argumentativa de uma opinião que, na melhor das hipóteses, se ouviria de alguém participando numa classe de Escola Dominical. Estou a tentar conter-me mas luto contra mim mesmo (!): o modo como este Papa inspira os Católicos a despacharem a questão da pena de morte, saltando de nenúfar em nenúfar em piruetas epistemológicas, oferecerá ao mundo uma nova geração de acérrimos defensores dela—aliás, isso já é constatável. Portanto, guerra justa? Nem pensar. Pena de morte? Nem pensar. A facilidade de tornar o complicado simples continua.

No ponto 213, o Papa tenta fundamentar na transcendência a dignidade de cada pessoa. Isto significa tentar explicar porque cada pessoa tem valor em si num mundo que, cada vez menos crente em absolutos, tem dificuldade em defender a vida de todos (a solução de Peter Singer, por exemplo, como um dos pensadores que hoje sustenta a dignidade humana fora da transcendência, sugerindo que a vida que merece ser defendida é a que tem consciência do prazer e sofrimento, abre espaço para uma ética de aborto e até o infanticídio). Francisco escreve assim:

“213. Se devemos em qualquer situação respeitar a dignidade dos outros, isto significa que esta não é uma invenção nem uma suposição nossa, mas que existe realmente neles um valor superior às coisas materiais e independente das circunstâncias e exige um tratamento distinto. Que todo o ser humano possui uma dignidade inalienável é uma verdade que corresponde à natureza humana, independentemente de qualquer transformação cultural. Por isso o ser humano possui a mesma dignidade inviolável em todo e qualquer período da história, e ninguém pode sentir-se autorizado, pelas circunstâncias, a negar esta convicção nem a agir em sentido contrário. Assim, a inteligência pode perscrutar a realidade das coisas, através da reflexão, da experiência e do diálogo, para reconhecer nessa realidade que a transcende a base de certas exigências morais universais.

214. Aos agnósticos, este fundamento poder-lhes-á aparecer como suficiente para conferir aos princípios éticos basilares e não negociáveis uma validade universal de tal forma firme e estável que consiga impedir novas catástrofes. Para os crentes, a natureza humana, fonte de princípios éticos, foi criada por Deus, que em última análise confere um fundamento sólido a estes princípios.[203] (Nota de rodapé: Como cristãos, acreditamos também que Deus dá a sua graça para se poder agir como irmãos.) Isto não estabelece um fixismo ético nem abre a estrada à imposição dum sistema moral, uma vez que os princípios morais fundamentais e universalmente válidos podem dar lugar a várias normativas práticas. Por isso, fica sempre um espaço para o diálogo.”

Dá vontade de dizer: o que é que me escapou? Como é que ficou estabelecido que a dignidade das pessoas é superior às coisas materiais? O Papa limitou-se a ficar na lógica circular de dizer “Que todo o ser humano possui uma dignidade inalienável é uma verdade que corresponde à natureza humana, independentemente de qualquer transformação cultural.” Como é que isto é para um agnóstico um “fundamento suficiente”? Afinal, logo a seguir o Papa reconhece que o elemento distintivo, que realmente justifica a superioridade da dignidade humana em relação às coisas materiais, provém de terem sido criados por Deus, “que em última análise confere um fundamento sólido a estes princípios”. O que nestes dois parágrafos está é, na melhor das hipóteses, a afirmação de um valor da vida com base transcendente que, certamente, não precisa da “imposição dum sistema moral”, mas fica por explicar de onde surge tão harmoniosamente esse “espaço para o diálogo”. Resumindo muito, muito, muito o problema: como é que pessoas que não tomam como “fundamento sólido” a crença que Deus existe podem aceitar que toda a vida humana é sagrada por ter sido “criada por Deus”? Afinal, se Deus não existir é absurdo ter o sagrado da vida humana dependente dele. Logo, a vida humana tem de ser defendida a partir de outra perspectiva qualquer, que não a transcendente. O espaço de diálogo tem de assentar em qualquer outro pressuposto que ficou por ser referido pelo Papa Francisco, ao ter mencionado uma transcendência que não é consenso para quem não acredita nela. A argumentação lógica deste ponto é um grande buraco.

Por outro lado, vale a pena reparar no detalhe: como é que o alicerce de toda a encíclica, vindo da tradição de Assis de que todos os homens são irmãos, pode ser reduzida a uma nota de rodapé que nunca é explicada? Como se justifica que “como cristãos, acreditamos que Deus dá a sua graça para se poder agir como irmãos”? Isto, que não dava para fazer um semestre de Hermenêutica no Seminário Teológico Baptista de Queluz, dá para safar o homem do Vaticano? O pressuposto de “Fratelli Tutti” é corrido a nota de rodapé

Diria que este foi o ponto mais filosófico que a encíclica tentou estabelecer, mas tão aereamente que sabe ao filme “Frozen”: já passou. É para uma tradição filosófica tão consolidada assim, representada por um Papa com argumentos destes, que a Igreja Católica Romana trabalhou durante supostos milénios? Céus. Ao lado disto, bem aventurado o fundamentalismo mais primata! E por falar em fundamentalistas primatas, dêem-me licença para terminar a árdua leitura de “Fratelli Tutti”. Concluo que a argumentação é para quem precisa do que através da aparência não conseguiu: parece bastar um texto que soe bonito. No fundo, o bruto é quem não adere a essa beleza e exige-a expressa em termos razoavelmente razoáveis, permitam-me a redundância.

O dilema Católico no Século XXI é sério. Por um lado, Igreja Católica é a instituição que na cristandade maior objectividade reclama para si, enquanto depósito de autoridade da continuidade apostólica, continuidade apostólica essa que, na sua perspectiva, efectivamente pode distinguir o seu cristianismo como o mais autêntico de todos os outros. Para a Igreja Católica, a Igreja Católica não é uma questão de opinião mas de objectividade. Mas, tragicamente e de outra perspectiva!, a Igreja Católica tem em décadas recentes relativizado a crença em grandes afirmações teológicas objectivas (sobretudo a partir do Concílio Vaticano II). O Catolicismo de hoje relativiza a Teologia ao mesmo tempo que não prescinde do estatuto incontornavelmente teológico de se apresentar como a instituição realmente detentora da universalidade cristã. É um jogo perigoso: Roma mete-se em namoricos pós-modernos ao mesmo tempo que se diz tradicionalmente casada. Como se diz agora, há muita skin in the game.

Qual me parece o resultado final (a mim e, naturalmente, a muitos mais)? O cristianismo romano, à força da pressão recente por tanta inclusividade, vai prescindindo de ser razoavelmente cristão. Sobretudo nas mãos de um Papa certamente mais progressista do que Bento era, o evangelho agora é o evangelho não ser preciso. O cristianismo romano é o cristianismo não ser fundamental. O discurso do fundamental passa a ser marca de todos aqueles que são caracterizados, claro está!, como fundamentalistas. Para esta Igreja Católica Romana a verdadeira salvação é não precisarmos de ser salvos uma vez que, olhando Deus para as boas intenções de cada pessoa independentemente do seu credo, só uma pequeníssima quantidade de gente conseguirá ser tão moralmente desastrada ao ponto de acabar condenada. Se em tempos a fé cristã anunciava ser possível o milagre de pecadores se salvarem através de Jesus Cristo, para muitos hoje o milagre é alguém poder ser tão incompreensivelmente mau que mereça o Inferno. Quem estará lá? No empobrecimento fatal da nossa imaginação moral, enfiamos lá o Hitler, e uns quantos racistas e abusadores sexuais.

O Catolicismo hoje, junto com todas as expressões religiosas tidas como não-fundamentalistas, encarnam o mantra que nos acompanhou durante a pandemia: vai ficar tudo bem. Se cada um de nós der o seu melhor, Deus, sendo justo mas não se armando em picuinhas, vai receber todos no Paraíso. E esta é a suprema fatalidade romana do Século XXI: depois de milénios a temermos pelas nossas almas, chegámos hoje à conclusão que, bem vistas as coisas, nascemos para grandes destinos. Doente é quem considera que pode dar-se o caso de a humanidade ter à sua espera outra coisa que não a glória devida. Num mundo predestinado para tão infinitas luzes, destoam todos os que descobrem trevas. O Protestantismo torna-se da ordem da perturbação mental (o Protestantismo e qualquer outra expressão religiosa que questione tão triunfais desfechos). Creio que preciso de continuar a escrever acerca da bem-aventurança da doença num tempo obcecado com a saúde mental. Termino esta colecção de textos com o consolo de, na minha obsessão pela palavra, encontrar na biblioteca bíblica e na tradição milenar cristã um desfile de gente tão ou mais perturbada do que eu, crente que por muito difícil que seja compreender uma existência em que, sem voto na matéria, ingressámos a pique, mais incompreensível é ainda a graça de Cristo poder salvar doentes como nós.



terça-feira, dezembro 22, 2020

Uma Doença Chamada Protestantismo V

O mal para este Papa é o mercado

Quando comecei a ler “Fratelli Tutti” comecei por tomar notas ponto a ponto. Depois tive de desistir. Não valia a pena. Para o Papa Francisco o mal tem uma forma e chama-se mercado. Se a palavra “pecado” é pouco usada, quando se usam termos como “mercados”, “economia global”, “poderes económicos transnacionais”, “ditames do paradigma eficientista da tecnocracia”, e “formas políticas, mesquinhas, e fixadas no interesse imediato” (apenas para enumerar algumas passagens), quase todo o pecado lá fica. O Papa tende a aliviar os termos quando o assunto é a maldade nos homens, mas não quando o assunto é a maldade dos sistemas económicos. Além dos “nacionalismos fechados”, não vi muito mais a merecer a correcção papal.

Assumo o desconforto por ter de voltar a referir uma crítica que tenho feito ao longo dos anos—começo a ficar parecido com pessoas de uma tese só (no fundo, quem não é?). Vale-me o facto de, há cerca de dois anos, o Jordan Peterson ter dito o mesmo por outras palavras no encontro com o Slavoj Zizek. À semelhança do que a análise marxista faz, há neste Papa a tendência de desantropomorfizar o homem, enquanto criatura moralmente responsável, e a antropomorfizar os sistemas económicos. Simplificando muito, muito: a gente não é má, o uso do poder é que a estraga. Se me parece razoável reconhecer que a crítica marxista teve a pertinência de sublinhar injustiças nos sistemas económicos, fossem eles mais ou menos institucionalizados, por outro lado, caiu numa utopia milenar ao planear uma solução através da recuperação dessas estruturas pelos trabalhadores oprimidos. A subtileza com que Marx observava que uma economia podia até sonambulamente impedir o desenvolvimento de quem participava nela, resvalou, na resposta sugerida ao problema, para uma fé em que os prejudicados, se conscientes, poderiam inspirar um futuro surpreendentemente vacinado contra explorações semelhantes. Se lucidez era o que animava Marx a desmascarar o capitalismo, ela foi tragicamente substituída por uma esperança que em nada se distinguia de uma crença religiosa—algo como “bem aventurados os oprimidos porque eles reinarão sobre a terra”. Esta é uma incoerência abundantemente sentida no último século e tal por uma multidão crescente que estuda o comunismo. 

Não faria muito pela minha reputação dizer que o Papa Francisco é marxista. Mas que exibe o mesmo trajecto fleumático do marxismo, é facto. As veemências de Francisco acendem-se com instituições e apagam-se com indivíduos. Alguns exemplos: se, no ponto 275, o Papa reprova as “filosofias materialistas que divinizam o homem e colocam os valores mundanos e materiais no lugar dos princípios supremos e transcendentes”, qual a força desse argumento quando, sob o uso de uma crítica às estruturas que supostamente encerram o poder, o ser humano acaba, pela pena da encíclica, livre de responsabilidades pelas suas escolhas? No fundo, não é esta também a “divinização do humano” a entrar pela porta do cavalo no discurso de Francisco? Se o mal parece sobretudo no uso perverso das instituições, que responsabilidade nos pode ser atribuída, afinal? A dimensão subjectiva (no sentido do sujeito pessoal) do pecado sabe a pouco na escrita de Francisco.

E vou até ao ponto da confissão do absurdo de alguns dos meus sentimentos quando leio o Papa: ele faz-me sentir bem. Reparem: tenho pouco dinheiro, quando comparado com boa parte das pessoas à minha volta em posições de responsabilidade, e até o poder que como pastor exerço diante da comunidade cristã que integro está sempre irremediavelmente demasiado dependente das minhas capacidades de persuasão durante a prédica. Na prática, tenho pouco capital e pouco poder com que oprimir os outros. Na minha vida, estou sempre a centímetros de me mandarem pregar para outra freguesia. As pessoas que me acusem de manipulação já o farão da perspectiva de se terem livrado dela. Tudo isto, fazendo de mim um fraco capitalista e um opressor bastante incompetente, livra-me das poucas palmadas que o Papa quer administrar. O Papa faz-me sentir um tipo razoavelmente não-tão-mau-assim. O maior vinco moral quando leio o Papa é alguma coisa parecida com “Tiago, põe-te a pau para não ganhares muito dinheiro porque se isso acontece acabas a ser cruel para os outros” e, ao constatar que a minha conta bancária não cresce, tenho de vontade de responder-lhe dizendo: “Missão cumprida, Papa! Não é por aqui que o gato vais às filhós!” 

Mais exemplos. No ponto 12, Francisco mostra-se seguro a afirmar que a economia global quer impor um modelo cultural único. Mas, noutras ocasiões, acusa-se a economia global (seja lá o que for que ela significa) de tudo fragmentar, “debilitando a dimensão comunitária da existência”. Quem está então por trás dos “poderes económicos transnacionais que aplicam o lema “divide e reinarás””? Quais os rostos concretos das pessoas por trás destes poderes, afinal? Se o Papa denuncia tanto, por que não dar mais nomes aos bois? Se o interesse de estarmos juntos “não interessa aos poderes económicos” (p.18), como é que acabamos tão juntos no tal modelo económico único? Se é certo que há alguma justiça em dizer que a maior riqueza de hoje produz novas formas de pobreza, por outro lado afirmar que “a pobreza analisa-se e compreende-se sempre no contexto e possibilidades reais de um momento histórico concreto” pede maior concretização. Alguma comparação ajudaria. E lá voltamos ao território onde, da ausência de concretização de alternativas, passamos para uma concretização ultra-realista dos males do sistema: “um modelo económico fundado no lucro” (p. 22). Resumindo: quando fala acerca dos males do capitalismo, a certeza do Papa é total; quando fala acerca de alternativas, o silêncio também.

Por muito que me esforce, é difícil não ser cínico a ler este Papa escrevendo sobre economia. Tudo bem, sei que ele é o Papa e isso significa para muitos o grau de importância espiritual maior que um homem pode ter. Mas a verdade também passa por aqui: se eu falasse com um grau de selectividade tal, que me levasse a dar o total das minhas emoções a apontar o problema e pouco em concreto em relação às soluções, quem é que me daria crédito? É tempo de os Católicos assumirem que, enquanto o Papa falar desta maneira tão pouco rigorosa acerca de questões económicas, mais difícil fica a tarefa de a Igreja Católica Romana poder ser tida em conta no assunto. Se não duvido que muitos lerão a crítica económica do Papa Francisco como um gesto de coragem, outros, nos quais me reconheço, têm de a ler com condescendência.

Há na análise económica do Papa uma simplicidade que me parece esbarrar com a experiência física de visitar a sua casa. E neste ponto já calculo que alguns amigos Católicos possam objectar, “Tiago, não acredito que vais usar esse argumento…” E, eu, tenho de assumir o embaraço de o usar, de facto. Se, ao longo de toda a bibliografia do Papa Francisco, a ajuda aos pobres é fundamentalmente o núcleo da fé vivida (não posso estar aqui a colocar citações directas senão este texto seria ainda mais enfadonho), por que razão o Vaticano ainda projecta tão persistentemente uma imagem de opulência? Estive lá enquanto turista mas até um cidadão na reprovável condição de turista dificilmente consegue, depois de ter estado no Vaticano, tolerar sermões tão enfáticos na nossa culpa em relação à pobreza mundial. Bem sei, bem sei. É quando se chega ao argumento de dizer ao Papa para vender o ouro que tem, que sabemos que o debate teológico só sobreviverá com muito esforço. Mas, o que farei? Também gostaria de ter evitado chegar a este ponto, mas Francisco não facilita a vida a ninguém. Mesmo tendo em conta os formidáveis empreendimentos da Igreja Católica Romana contra a pobreza ao longo dos séculos e hoje mesmo, falta ao Papa um exercício pastoral além da obsessão com as nossas carteiras. Serei o primeiro a concordar que a carteira fala do que o coração está cheio, mas tudo seria muito mais simples se a perdição em nós fosse essencialmente a nossa desastrada gestão de capital. Quinhentos anos depois, parece-me que Roma continua a ser a Igreja em que o mais importante pode ser resolvido com dinheiro, dinheiro esse estranhamente parado quando diz respeito às suas próprias instituições. E não me parece que a solução vá acontecer apenas livrando-nos dos sapatos vermelhos do excêntrico e germânico Sucessor de Pedro anterior. 

Abro novamente a possibilidade ao problema ser inteiramente meu e, burro que sou, ainda estar por descobrir a possibilidade de autoridade moral para malhar na riqueza dos outros quando a nossa própria riqueza está escarrapachada aos olhos de todos. Mas reconheço que me é doloroso ler que a “efetiva distribuição do poder, sobretudo político, económico, militar e tecnológico, entre uma pluralidade de sujeitos e a criação dum sistema jurídico de regulação das reivindicações e dos interesses realiza a limitação do poder”, quando tão pouco esforço parece existir para estes mesmos limitarem o seu poder, também através do muito dinheiro que têm. A Igreja Católica Romana não me parece a instituição mais indicada para se sentir à vontade em sugerir que o poder dos outros seja limitado… Sobretudo o poder que se converta, usando uma expressão muito nossa, em guito. Lutero também ardia quando a Itália se armava em santa para lhe ir ao bolso. Já que estou numa de me permitir algumas ousadias ao nível da retórica, permitam-me: enquanto Roma não se desfizer mais do muito guito que tem, que força tem o seu argumento de sugerir franciscanismos a mim, que pouco tenho comparado com a maior parte dos grandes defensores de Roma à minha volta? Enquanto a maior crítica moral do Papa for a económica, pouco ele terá a dizer aos que de economia têm pouco. Roma fala para ricos: culpados porque o são, e nessa culpa mantidos enquanto santificam uma pobreza que lhes abre os cordões à bolsa. Não é, por isso, de estranhar que o último século tenha afastado os pobres do Catolicismo e atraído-os para o Protestantismo pentecostal em que ninguém está mais perto de Deus por não ter guito e interessa até, vejam bem!, aproveitar a oportunidade para ter algum. Tem graça tudo isto e a isto também se chama graça comum.

Não sendo economista e não percebendo nada de economia, cheira-me a queimado quando um homem geralmente calmo perde as estribeiras ao falar acerca das finanças dos outros (a única outra excepção foi quando Francisco se zangou e bateu na mão daquela penitente asiática—um momento de rara humanidade com o qual muito empatizei, como se costuma dizer agora). Para não acharem que perco toda a objectividade: esta acrimónia em relação aos mercados não existia em Bento, mesmo tendo em conta que também denunciava os males económicos. Quando em “Deus Caristas Est” chega ao ponto 26, Ratzinger escreve com um cuidado ausente em Francisco: “Do ponto de vista histórico, a questão da justa ordem da colectividade entrou numa nova situação com a formação da sociedade industrial no Oitocentos. A aparição da indústria moderna dissolveu as antigas estruturas sociais e provocou, com a massa dos assalariados, uma mudança radical na composição da sociedade, no seio da qual a relação entre capital e trabalho se tornou a questão decisiva — questão que, sob esta forma, era desconhecida antes. As estruturas de produção e o capital tornaram-se o novo poder que, colocado nas mãos de poucos, comportava para as massas operárias uma privação de direitos, contra a qual era preciso revoltar-se.” Há mal nos mercados modernos, certamente (há mal em tudo, caríssimos!), mas isso combate-se com conhecimento e não com demonização.

Vejam como uma crítica ponderada se faz. Bento ainda: “o marxismo tinha indicado, na revolução mundial e na sua preparação, a panaceia para a problemática social: através da revolução e consequente colectivização dos meios de produção — asseverava-se em tal doutrina — devia dum momento para o outro caminhar tudo de modo diverso e melhor. Este sonho desvaneceu-se. Na difícil situação em que hoje nos encontramos por causa também da globalização da economia, a doutrina social da Igreja tornou-se uma indicação fundamental, que propõe válidas orientações muito para além das fronteiras eclesiais: tais orientações — face ao progresso em acto — devem ser analisadas em diálogo com todos aqueles que se preocupam seriamente do homem e do seu mundo.” Bento diz que temos de mudar os males do mercado compreendendo os erros da simplificação marxista e conversando com os economistas, não caindo em caricaturas grosseiras. Reparem a diferença entre a crítica económica de um Papa e de outro.

Do Papa, de quem julgo que se pode esperar a espessura moral de poder confrontar-nos com a cupidez da nossa carteira e de tantos outros vícios do nosso coração, convém outra amplitude. Certamente que há coisas acertadas que afirma, como a dignidade e o direito ao trabalho como vocação humana, e como até a “maturação de instituições internacionais mais fortes” que impeçam uma ditadura do lucro. Mas a minha tarefa aqui, como se o óbvio precisasse de sê-lo mais ainda, é quebrar o franciscano consenso. Por aqui me fico, por enquanto.



sexta-feira, dezembro 18, 2020

Uma Doença Chamada Protestantismo IV

A Riqueza Deste Papa É Franciscana

Chegamos à parte mais analítica destes textos de um anti-católico primário. Não esqueça que é analítica na medida do possível, sem esquecer que, sendo criaturas do Génesis 3 num mundo que quer parar no 2, temos sempre análises muito discutíveis. Ainda assim, são tentativas sinceras de ler o mundo—viver nele sem o tentar ler seriamente é a pior tragédia que nos pode acontecer. O Inferno começa assim, com pessoas criadas pela palavra que se recusam a reconhecer o texto que escrevem. Avante, portanto!

Vou resumir a minha leitura em três pontos essenciais, neste caso negativos. Isso não me deve impedir de reconhecer aspectos positivos, que tentarei notar. Mas tenho de tentar ser o mais objectivo possível quando estamos encharcados em elogios ao Papa Francisco e a esta última encíclica. Geralmente esse excesso de elogios lida muito pouco com o texto em si. Compreendo e aceito o que o Alfredo Teixeira disse quando afirmou que, com Francisco, a verdadeira encíclica é ele mas, com este Protestante obcecado com a palavra, têm de se aguentar à bronca: calhou-me a mim a tarefa de ter de prestar alguma atenção ao que o texto do “Fratelli Tutti” realmente afirma.

No fundo, um Protestante julga que vive num filme criminal americano: “tudo o que diz pode ser usado contra si”. É isto mesmo. Palavras leva-as o vento? As palavras são o que nós mais realmente somos. Até falarmos, ensaiamos. Quando falamos, agimos como não agimos sem palavras. Também por isto Jesus disse que: “porque, pelas tuas palavras, serás justificado e, pelas tuas palavras, serás condenado” (Mateus 12:37). Isto não significa que as palavras não podem ser usadas como disfarce do que realmente somos. Certamente que podemos aprimorarmo-nos na hipocrisia, discursando mentiras. No entanto, não é pelo facto de a palavra poder ser uma simulação que ela perde o seu carácter sagrado, de constituir a realidade mais real. Vamos lá então ao ponto um.

I. A riqueza deste Papa é franciscana

Quando Jorge Bergoglio escolheu um nome o resultado foi Francisco. Não há Papa Francisco sem Francisco de Assis. A coerência deve ser entendida mas não deveria ter-se tornado uma exclusividade. Se é facto que logo ao ponto 1 de “Fratelli Tutti” Francisco não esconde as cartas, receio que isso acarrete esconder tudo o que está além de Francisco de Assis. Ancorar em Francisco de Assis “o essencial de uma fraternidade aberta” é, para todos os efeitos, optar por ouvir sobretudo uma voz única em relação ao assunto da fraternidade, em vez de optar por ouvir mais umas quantas. Nessa medida, há uma contradição: até que ponto é que ter a “abertura” de Francisco de Assis é fechar a porta a muitos outros que, na história diversa da Igreja, não enquadram o assunto da fraternidade da mesma maneira?

No ponto 2 prossegue esta ingenuidade hermenêutica ao usar com tão poucas qualificações a ideia do Francisco de Assis, “que se sentia irmão do Sol”, numa época com simpatias praticamente panteístas que dificilmente caracterizavam a época de Assis. Nós, que estamos hoje tão prematuramente dispostos a relativizar o valor dos seres humanos, colocando-os ao nível dos animais (e outras criaturas de Deus), não mereceríamos do Santo Padre alguma explicação na linha de: “atenção pessoal que Assis dizer-se irmão do Sol não é bem a mesma coisa de dizermos o mesmo em 2020”? Parece-me que Assis se dizia irmão do Sol para que os cristãos do seu tempo valorizassem a Natureza, coisa provavelmente árdua na altura. Hoje o nosso problema é provavelmente o oposto, ao idolatrarmos a Natureza como a divindade mais acessível que o velho Deus Pai, Filho e Espírito Santo não consegue ser. Aqui o contexto pode ser tudo. Deixem-me elaborar mais.

Chesterton dizia, ao escrever sobre Tomás de Aquino e o nosso próprio Francisco de Assis (!), que cada santo confrontava os pecados do seu tempo*. “Um dos paradoxos da história é que cada geração é convertida pelo santo que se encontra mais em contradição com ela. E assim como S. Francisco se dirigia ao Século XIX prosaico, assim S. Tomás tem mensagem especial a dirigir à nossa geração, um pouco inclinada a descrer do valor da razão”. Como quem diz: o contexto é muito importante. Deixem-me fazer por isso algum, vasculhando rapidamente na história.

Francisco de Assis (1182-1226) faz parte de uma época logo posterior à Primeira Cruzada (Alexius I Comnenus, Imperador Bizantino, 1081-1118, tinha feito campanha para ela, resistindo ao avanço islâmico)**, ***. Isto significa que a época de Francisco de Assis é marcada por uma cristandade que se afirma muito pela força das armas, da manutenção de uma cultura cristã em oposição à expansão muçulmana. Não é de estranhar portanto que, numa cristandade com licença de porte de armas, apareça uma forma de pacifismo como reacção. O lugar de Assis deve ser apreciado tendo em conta este contexto. A Francisco de Assis deve ser reconhecido o mérito real de ter ido contra à corrente.

Hoje, só com muito anacronismo ou ignorância histórica alguém diria que o cristandade passa pelas mesmas tentações. Onde existem em 2020 expressões cristãs armadas? Nem os rednecks evangélicos, exagerados pelo horror europeu, abrem fogo quando Trump perde, contrariando as teses que demonizam o sul norte-americano porque é sempre mais fácil quando as pessoas que odiamos têm um arsenal pronto a balear os mártires das nossas simplificações morais. Logo, e voltando ao Papa Francisco, ter uma autoridade na cristandade que faz um zoom heróico numa figura como Assis sem panorâmica, corre o risco de banalizar o contexto dele (em que, de facto, sobressaía da maioria) e o nosso (que dificilmente se distingue dessa maioria). Simplificando mais ainda: para uma cristandade que até dificuldade tem de compreender um momento histórico em que a expressão da fé cristã andava de mãos dadas com acções militares, o que ganhamos com uma expressão pacifista descontextualizada? Para nós, precocemente convencidos de que religião nunca casa com resistência física, termos mais de uma mensagem pacifista é, mais do que pregar para o côro, levar areia para a praia. A menos que tomemos as nossas conclusões de 2020 como superiores às do passado (um problema Católico Romano, de crer numa revelação progressiva através do Magistério da Igreja, que não temos agora como explorar devidamente)…

Mas deixem-me dar mais contexto ainda: se, no final do Século X e no início do primeiro milénio, os Papas eram essencialmente figuras decorativas, submissas aos senhores Italianos e Alemães, com o início do Século XI, e graças a movimentos de reforma interna e intelectual como o de Cluny, estávamos então perante uma Igreja que se repensava e com o poder político a crescer. É nesta altura que, por exemplo, os Papas jogarão com o poder que têm de excomungar como uma arma de destruição maciça. Nós, que somos portugueses, deveríamos ter a noção disto até porque só pudemos ser país quando o Papa nos deixou. O zénite deste processo vê-se quando Inocêncio III declara poder espiritual e temporal absoluto, no Século XII. Também é por isto que coisas como a Magna Carta acontecem, procurando-se sistemas de controlo do poder numa época em que ele facilmente se absolutiza, mesmo dentro da Igreja. Caramba, se não acreditam em mim, pelo menos dêem-se a uma rápida e semi-envergonhada busca na Wikipédia, minha gente!

Ora, é neste contexto que Francisco de Assis atinge uma pertinência especial. Quando a Igreja é tentada em mandar em todos os homens, é de facto incrível que um homem dentro dela se equipare aos bichinhos. As coisas não acontecem num vácuo. Assis tenta evangelizar o Sultão do Egipto, como expressão valente de outra maneira de fazer cruzadas. Ao contrário dos Papas do seu tempo, Francisco dedica-se aos pobres e a ele mesmo ser pobre. Hoje, o Papa assumir no Século XXI um pressuposto que é praticamente exclusivo a Francisco de Assis convida a que continuemos às voltas com o tempo, não acertando em nenhum. Se num tempo em que a Igreja era tentada em mandar em todos os homens era especial um Assis que se equiparava aos bichinhos, talvez não seja absurdo dizer que, num tempo em que todos os homens estão equiparados aos bichinhos, valia a pena a Igreja tentar realmente mandar em algum deles.

Não vale a pena indicar mais exemplos em “Fratelli Tutti” porque Assis é um pressuposto: quando não está explícito, está implícito. Verifiquei e já escrevia isto quando li “Laudato Si”, a encíclica de Francisco de 2015:

“A inspiração constante a partir de Francisco de Assis, como exemplo de desapego e generosidade, desequilibra frequentemente o tom para um semi-panteísmo. (…) Abreviando muito: como Roma tende a enfatizar o pecado como uma coisa que acontece sobretudo na carne das pessoas (sobretudo no domínio do sensual), a cabeça das pessoas e a criação tornam-se áreas aparentemente mais desinfestadas de pecado. Por isso, mais facilmente Roma cai em idealizações acerca da pureza do campo e da pureza dos nossos cérebros (olá, lei natural!), ao passo que os protestantes orgulhosamente constroem cidades e malham na reputação da filosofia. Apesar de o Papa dizer com a cabeça que o problema não começa nos lugares mas em nós, é como se com o coração acabasse a sugerir que a terra, bem abraçada por nós, nos pode dar já o paraíso. Essa é uma das razões que tornam Francisco de Assis frequentemente difícil de aturar. Dá vontade de dizer: casa-te lá com os passarinhos e deixa o povo da cidade trabalhar em paz! Talvez haja uma romantização do campo exagerada em frase como: “Não é conveniente para os habitantes deste planeta viver cada vez mais submersos em cimento, asfalto, vidro e metais, privados do contacto físico com a natureza” (no ponto 44).

Para não dizerem que fiz este trabalho com má vontade (numa determinada acepção, claro que o fiz com má vontade porque má vontade é o meu estado por defeito), comparei com Bento XVI. Reli o “Deus Caritas Est”, esse sim, um trabalho de Teologia, de exegese, de escrita enxuta e envolvente, sem um momento de redundância. Reparem, o assunto é o amor, completamente dentro do território da fraternidade e da amizade social, objectivos desta “Fratelli Tutti” (daqui a pouco, no terceiro ponto, já regresso a Bento para intensificar o assunto de uma distinção conceptual importante, acerca do amor universal e se acerca de todos os homens pode ser dito, na interpretação Católica Romana, serem irmãos). No ponto 40 de “Deus Caritas Est” escreve Bento****: “Figuras de Santos como Francisco de Assis, Inácio de Loyola, João de Deus, Camilo de Léllis, Vicente de Paulo, Luísa de Marillac, José B. Cottolengo, João Bosco, Luís Orione, Teresa de Calcutá — para citar apenas alguns nomes — permanecem modelos insignes de caridade social para todos os homens de boa vontade”. Junto com Francisco de Assis estão mais nove—que falta que nos fazem nas linhas deste Papa argentino. Que pena que é que Francisco seja tão exclusivamente franciscano no modo como apresenta a riqueza da sua igreja.











Bibliografia

1. “São Tomás de Aquino”, G. K. Chesterton, 1933.

2. “Charts Of Ancient And Medieval Church History”, John D. Hannah, Zondervan, 2001.

3. “Chronological And Background Charts Of Church History”, Robert C. Walton, Zondervan, 1986.

3. “Deus Caristas Est”, Bento XVI, 2005.

20

Se por alguma razão tivesse de escolher apenas um disco das muitas dezenas que já fiz, era este. Queluz Está A Arder faz vinte anos. 20. Foi para isto que se fez o 25 de Abril e a FlorCaveira. Ouçam nas plataformas digitais.



quinta-feira, dezembro 17, 2020

Uma Doença Chamada Protestantismo III

 Ler A Sério

Estes textos são sobre Catolicismo e a última encíclica do Papa Francisco em particular, “Fratelli Tutti”. Não tenho levado levemente a tarefa de, como pastor protestante, ler: ler, em primeiro lugar, a Bíblia, minha “regra de fé e prática”, como diz o jargão evangélico; e ler também os que me cercam, sejam-me eles mais ou menos próximos. Os Protestantes são os cristãos que mais obcecadamente crêem que o texto é tudo (porque o Verbo que criou tudo é Deus em Cristo encarnado), por isso acreditem quando digo: um cristão tem de ser um leitor sério.

Tenho tentado ser este leitor sério, como cristão que sou. No caso concreto de ser um Protestante num país Católico, devo reconhecer como ainda mais urgente a tarefa de ler o Catolicismo porque sou uma criatura inevitavelmente rachada entre a minha fé e a minha cultura. Sou um Protestante de credo e um Católico de cultura, por muito que me custe o dilema. Mas isso, ao invés de relativizar tudo, deve contribuir para levar a sério as leituras que faço do mundo à minha volta. É o facto de a nossa existência ser complexa que torna a nossa necessidade de leitura ainda maior e mais cuidada.

O Papa Francisco é o Papa que mais li. Apanhei o Papa Paulo VI (que não conta porque nasci em 1977), João Paulo II, Bento XVI e Francisco. Mais do que apenas ler Bento XVI, admirei-o. Como dizer isto sem desvalorizar o que creio que divide tragicamente Catolicismo do Protestantismo? Bento XVI era alguém que, com tudo o que nos separava, sentia como parte da minha equipa. Por um lado, agradeço que ele se tenha ido embora porque simplificou a minha vida de anti-católico primário. Creio sinceramente que Bento não me faria ser católico mas, sem dúvida, tornava muito menos heróica a tarefa de amar os meus adversários teológicos.

É hoje a minha convicção que Bento XVI teria sempre de deixar de ser Papa porque ser Papa não é para quem é tão pouco Católico Romano como ele estruturalmente era. Onde quero chegar com isto? O Catolicismo hoje não precisa de dar grande uso à Teologia. Bento XVI era um teólogo e um homem que vivia melhor quando escrevia e, nesse sentido, um Papa demasiado culturalmente Protestante. Atenção que não estou a negar Teologia ao Catolicismo. O que aqui está em causa é reconhecer que, à medida que o Ocidente se tem secularizado (independentemente da tese de secularização que nos pareça mais verificável), o Catolicismo sobrevive sobretudo não pela defesa racional que faz do seu credo, mas mais através de como a consegue dispensar (numa conversa que tive para o meu podcast “Odeio Artistas”, posterior à escrita deste texto, o Rui Ramos chamou a minha atenção para o facto do alemão Bento, como o polaco João Paulo, serem Papas de fronteira europeia, onde não podia ser assumido que as pessoas à sua volta eram cristãs—logo, pastoreavam sob um princípio muito mais apologético do que Francisco*). 

Num mundo encantado pela ideia de que o sentido depende de cada um, o Catolicismo investe astutamente no seu capital místico. Charles Taylor, filósofo católico, explica em “The Secular Age” que deixámos de precisar do transcendente para encontrar sentido para a nossa existência**. Até os crentes já não crêem como os crentes no passado. Os crentes podem até continuar a acreditar num Deus transcendente, mas a convicção que têm nele fundamenta-se essencialmente numa base imanente, do conforto subjectivo que extraem dessa crença no alegado sobrenatural. A Teologia fica para os poucos sofisticados, que ainda acreditam num mundo ultrapassado que carece de uma verdade exposta também em termos da sua objectividade. Claro que existem outras dinâmicas a acontecer dentro do Catolicismo, sendo uma delas a de que gosto de chamar de Neo-Tomismo-Triunfalista, mas não dá para ir agora a todo o lado (no Neo-Tomismo-Triunfalista o passado é revisto e purgado para se apresentar livre do pecado contemporâneo do relativismo, como se a fé dos pré-modernos fosse mais fé do que a nossa, e o presente Católico é idealizado como a cura dos males modernos trazidos, claro está, pela fragmentação Protestante—neste sentido, muitas conversões ao Catolicismo, mais do que serem a favor de Cristo, são hoje contra este mundo moderno).

Uma amostra anedótica mas eficaz da astúcia católica nadando as águas contemporâneas é o seu fascínio pelo mistério. Escrevi sobre este assunto no livro “Cuidado Com O Alemão—Três Dentadas Que Martinho Lutero Dá À Nossa Época”***. Tentando simplificar um assunto vasto, diríamos que não há, de facto, tradição cristã sem o reconhecimento do mistério. Mas historicamente o mistério jogava a favor da nossa devoção a um Deus que era de tal modo extraordinário que estava além da nossa capacidade de o compreender. Hoje é minha convicção que o mistério é a carta sacada não porque amamos um Deus que apesar de real nos escapa, mas porque através desse mistério podemos continuar a amarmo-nos principalmente quando escapamos de uma fé real—como vêem, suspeito altamente do apego actual ao mistério. O misticismo dos nossos dias tem pouco do passado, em que uns quantos se separavam dos homens para se darem mais a Deus. O misticismo de hoje é, usando o abracadabra do mistério, darmo-nos mais aos homens assumindo menos de Deus. Por pouco sofisticada que seja a minha tese, creio que o mistério é hoje tão valorizado porque nos permite evitar o desprestigiante discurso de “sim, sim, não, não”, que o Nosso Senhor menciona no Sermão do Monte (Mateus 5:37). Nem é preciso voltar a dizer: guardo a carteira sempre que que a palavra mistério suscita arrebatamentos múltiplos à minha volta (perdoem-me a metáfora mas assim ficam com a ideia mais rigorosa de como acendo com este tipo de banhas da cobra).

Bento XVI era óptimo para quem ainda crê que não é estranho à fé algum tipo de consistência racional. Mas, reconheçamos, é um negócio ultrapassado. Quando Bento escrevia, havia credo; quando Francisco escreve, há essencialmente convívio. Claro que não precisamos de colocar as coisas em termos de dicotomia mas entendem onde quero chegar. O Catolicismo, para resistir como uma fé popular, não se pode dar a luxos como os de ter Papas como Bento. A resignação de Bento seria o suficiente para suscitar muita reflexão ao Catolicismo. Mas o Catolicismo tem entendido que a sua manutenção não vai lá assim com tanta reflexão. E o êxito praticamente instantâneo de Francisco apenas comprovou que o caminho era outro. Teve graça aquele alemão que quando escrevia até ao luxo da Teologia se dava. Mas para quê tanto trabalho? A tradição Católica do último século não é a da Teologia mas a da superação contemporânea dela. Teologia é para os ingénuos que ainda acreditam num mundo acerca do qual se pode dizer coisas objectivas. O segredo parece ser o insuportável cliché de que compete à beleza salvar o mundo, roubado a um Dostoievsky que provavelmente seria dos primeiros a premir o gatilho diante da popularização espertalhona que do que ele disse fizeram.

A minha tarefa de ser um anti-católico primário era mais difícil com Bento porque Bento resvalava aqui e ali para ser um Católico com horizontes além do Vaticano II, onde a Teologia foi actualizada pela superação dela. Quando Bento escrevia, havia o reconhecimento de uma riqueza de tradições cristãs várias e até em conflito. Por um lado, o mundo era menos simples na pena de Bento e isso servia de teste a quem o acompanhava. Por outro, o que Bento propunha era mais claro porque a exigência de uma compreensão histórica tornava mais consistentes as conclusões a que chegava. Isto tornava o papado de Bento menos popular, porque mais certo da necessidade de manter dogmas, o verdadeiro alho para os nossos focinhos vampirescos do Século XXI. A minha conclusão é que Ratzinger, um dia mais sincero com o sarilho onde estava metido, deve ter citado aos quadros superiores do Vaticano aquela quadra famosa de “A Comédia de Deus”, filme do João César Monteiro, dita magistralmente pela personagem protagonizada por Luís Miguel Cintra****:


“Quando eu subi aos Céus

Disse para todos os mortais

Tramem-se vocês agora

Que a mim já não me tramam mais”


Resumindo: Bento entendeu que não havia mais lenha para queimar. Voltou aos livros e abandonou um trabalho que deles pouco precisa. Veio o Papa Francisco e a minha tarefa era, como bom Protestante que tento ser, lê-lo. Em 2013, quando foi reconhecido pela Cúria, entrei com tudo. Pelo menos, oito vezes tentei escrever algo com consistência acerca dele. Fiz uma pesquisa rápida pelo que publiquei no meu blogue, a Voz do Deserto, e deixo convosco um mapa ilustrativo de tentar ser um bom Protestante, lendo seriamente o Papa Francisco.

Eis a lista e links de coisas escritas directamente acerca do Papa (de parte ficam outras que, podendo ter sido influenciadas pela leitura de algo acerca dele ou do Catolicismo em geral, não tratam imediatamente do seu ministério):


1. Texto “Deus nos livre da Religião Sem Inferno”, comentando declarações do Papa acerca do Inferno, de 10 de Junho de 2013 (https://vozdodeserto.tumblr.com/post/52632144445/deus-nos-livre-da-religião-sem-inferno).

2. Texto “Trinta e duas coisas que gostei de ler e cinco coisas que não gostei de ler na Encíclica Luz da Fé de Francisco I”, de 24 de Julho de 2013 (https://vozdodeserto.tumblr.com/post/56340909042/trinta-e-duas-coisas-que-gostei-de-ler-e-cinco).

3. Texto “O Papa Solnado”, de 25 de Setembro de 2013 (https://vozdodeserto.tumblr.com/post/62231261565/o-papa-solnado).

4. Texto “Roma Take II”, de 1 de Outubro de 2013 (https://vozdodeserto.tumblr.com/post/62811014543/roma-take-ii).

5. Texto “Acerca da minha curta participação na reportagem da RTP sobre o Papa”, de 22 de Outubro de 2013 (https://vozdodeserto.tumblr.com/post/64781710706/acerca-da-minha-curta-participação-na-reportagem).

6. Texto “Notas sobre a Exortação Apostólica do Papa Francisco (um work in progress)”, de 2 de Dezembro de 2013 (https://vozdodeserto.tumblr.com/post/68774019390/notas-sobre-a-exortação-apostólica-do-papa).

7. Texto “Notas sobre a Exortação Apostólica do Papa Francisco (um work in progress) II”, de 3 de Dezembro de 2013 (https://vozdodeserto.tumblr.com/post/68884907019/notas-sobre-a-exortação-apostólica-do-papa).

8. Texto “Lendo A Exortação de Francisco, parte 3”, de 13 de Dezembro de 2013 (https://vozdodeserto.tumblr.com/post/69875963858/lendo-a-exortação-de-francisco-parte-3).

9. Texto “Orações juntas e separadas”, de 11 de Março de 2015 (https://vozdodeserto.tumblr.com/post/113347590944/oracoes-juntas-e-separadas).

10. Texto “Laudato Si do Papa Francisco”, de 9 de Setembro de 2015 (https://vozdodeserto.tumblr.com/post/128705496004/laudato-si-do-papa-francisco).

11. Texto “Se os judeus não precisam de ser evangelizados Jesus na cruz teve o que merecia”, de 18 de Janeiro de 2016 (https://vozdodeserto.tumblr.com/post/137546201014/se-os-judeus-não-precisam-de-ser-evangelizados).

Dá para ver que a esmagadora maioria de coisas que escrevi foi no primeiro ano de pontificado de Francisco. Não quero que soe mal mas isto apenas ilustra que nem foi tanto a minha desistência mas mais o facto incontornável de o Papa Francisco não ser, digamos, um homem que tem o seu forte no que diz ou no que escreve. Fico sempre espantado quando vejo gente a falar de obras-primas ao ler Francisco. Caramba. Não me lixem (e já estou a ser eu a lixar o meu próprio português ao dar asas à minha sinceridade). Há até quem olhe para este “Fratelli Tutti” como um ápice na carreira deste Papa. Com elogios destes ninguém precisa de rogar pragas… Podemos despachar rapidamente esta questão do estilo da escrita de Francisco porque ela pouco desempenha. Assumamos que, até quando os textos vão conceptualmente mais longe, não deixam de ser monótonos.

Esta última encíclica, em particular, é especialmente penosa porque em grande parte se limita a condensar o que Francisco já disse antes, sem o acréscimo de novo rasgo ou argumento. Quando a lia, quis desconfiar do sentimento de monotonia que rapidamente se apoderou de mim, mas foi com alguma coerência que, ao consultar o texto que escrevi acerca do “Laudato Si”, já lá estava registado o que agora me parecia repetitivo. E acho que o melhor é evoluir mesmo para a leitura de “Fratelli Tutti”—que será no próximo texto. See ya in the pit!











Bibliografia:

1. Conversa com Rui Ramos no podcast “Odeio Artistas” publicada a 26 de Novembro de 2020.

2.  “A Secular Age”, Charles Taylor, 2007.

3. “Cuidado Com O Alemão—Três Dentadas Que Martinho Lutero Dá À Nossa Época”, Tiago Cavaco, 2017.

4. “A Comédia de Deus”, João César Monteiro, 1995.

quarta-feira, dezembro 16, 2020

Uma Doença Chamada Protestantismo II

Um Anti-Católico Primário Assume-se

Gosto de pensar que este texto não é para quem desejar brilhar com tiradas que nos põem nos tops das redes sociais. Exige alguma concentração e isso tende a ser custoso para quem anda a caçar likes. Nestes parágrafos ponho o coração na boca para vos confessar a minha condição cardíaca de cada vez que tenho de reflectir sobre documentos da Igreja Católica Romana. Ainda não é agora que avalio mais simples e analiticamente o “Fratelli Tutti” (está quase!). Aqui continuo apenas à porta, tentando da melhor forma que consigo assumir os meus preconceitos, conceitos, e pós-conceitos, até porque, como já vos tentei explicar assumindo que sou uma criatura do Génesis 3 num mundo que quer parar no 2, não acredito em leituras neutras.

Quero começar por reconhecer que não sou indiferente aos evangélicos que hoje em dia querem dar uma de sofisticação intelectual alinhando com o que o Papa Francisco diz (tendo a odiá-los), e quero reconhecer que não sou indiferente aos católicos romanos que me tratam com generosidade e inspiram a minha fé (tendo a amá-los e tentei fazer-lhes alguma justiça no texto anterior). Estes dois tipos de pessoas interferem com a paz de espírito de que careço para ler “Fratelli Tutti” e, por isso, não tenho como negar a existência de um conflito interno. Bem-vindos à minha leprosa leitura do Papa, sempre caindo aos pedaços ao mesmo tempo que crê que uma limpeza maior tem de ser possível.

Comecemos pelo que sou: um “anti-católico primário”. A palavra “primário” é-nos hoje especialmente ofensiva. Quando é colocada depois de alguma classificação, tem o poder de nos reduzir a bestas. Quando sou chamado de “anti-católico primário”, ou eu mesmo assumo que o sou, é provável que se torne moralmente aceitável que o que quer que diga acerca do catolicismo não mereça ser tratado com seriedade. Se, sendo o tal “anti-católico primário”, me tornar parecido com uma besta, a única seriedade que podem ter comigo é a de não reconhecerem humanidade à minha posição—fico fora do jogo, algures no universo dos primários, ou mesmo dos primatas. A melhor interacção que existirá será eu poder ser contemplado por seres humanos, dignos dessa humanidade, que me poderão ver a mim, dentro de uma jaula adequada para a minha condição primata. Resumindo: ser um “anti-católico primário” torna-me bicho do zoo. Cá estou eu, semi-enjaulado neste texto para o proveito da vossa observação.

Mas sabem, não me interessa contestar que usem a palavra “primário” para mim porque acredito que ela me elogia. O meu anti-catolicismo primário não é apenas um instinto animal, ainda que reconheça que também há muito de irracional nele. Sim, reconheço que, por ser Protestante num país de maioria Católica, é fácil (muito fácil mesmo) reduzir os erros do mundo ao Catolicismo. E reduzir os erros do mundo ao Catolicismo não mostra grande inteligência, reconheço. No entanto, há no meu anti-catolicismo um carácter primário que resulta de crer que ser anti-católico é uma consequência de compreender as coisas principais—daí a palavra “primário”. Onde quero chegar é a esta afirmação: com toda a aparência de burrice, creio que há alguma inteligência em assumir-me como “anti-católico primário”.

Há alguma inteligência em assumir-me como “anti-católico primário” porque o Catolicismo, como qualquer religião, ao fazer afirmações de tendência absoluta acerca da existência, trata de assuntos principais ou primários. Não é possível não exercermos algum tipo de comportamento primário em relação à religião quando a religião exerce um tipo de comportamento primário em relação a todas as pessoas. Independentemente do credo específico de qualquer religião, cabe-lhe pronunciar um juízo principal sobre a existência, juízo esse que inevitavelmente integra o universo das crenças principais na vida do que crê. É por isso que as pessoas que, reivindicando algum tipo de adesão religiosa, fazem-no relativizando o alcance dogmático das suas crenças, são o pior tipo de trafulhas. Até o relativismo é uma forma de dogma. E ser relativista em relação a uma religião que supostamente se confessa é afirmar dogmaticamente que nada é dogmático (podemos fazê-lo por sermos burros ao ponto de não compreendermos a falácia em causa, ou porque simplesmente queremos mesmo endrominar os outros, entre outras hipóteses).

Logo, assumir-me “anti-católico primário” é apenas tomar como principais as coisas que digo em relação ao que o Catolicismo toma como coisas principais. Ser um primário em assuntos de religião não é apenas o reflexo possível de ser uma besta (possibilidade essa que, em relação a mim, continuo a não descartar); é também em função daquilo que pode ser o melhor em mim, ao distinguir as coisas mais importantes das outras (esta ideia expressa em inglês é que resultava mesmo: being primary about religion is not only about what may be beastly in you; it may be about what you indeed know best). Chamarem-me “anti-católico primário” pode ser o melhor elogio que recebo vindo de pessoas que apenas queriam insultar-me. E, sabem, sentir-se elogiado pela tentativa de insulto dos outros é, para mim, uma religião—também é isso que me torna Protestante e assumidamente “anti-católico primário”.

Em função da lógica muito estreita que quero estabelecer neste texto (porque, como já devem ter entendido até aqui, sou todo acerca de lógicas estreitas), resumiria o Catolicismo a um insulto na tentativa de um elogio. É isso mesmo: é assim que quero resumir os milénios de discussão dentro da Cristandade. Por que considero o Catolicismo errado? Porque o Catolicismo insulta-nos enquanto nos tenta elogiar. Porque considero o Protestantismo certo? Porque, se na vida há algum elogio possível, será certamente e apenas através do insulto. Nas crenças religiosas não há grande hipótese de nos esquivarmos de paradoxos, por isso, escolha o seu (os anti-religiosos hão-de chamar-lhes pura e simplesmente contradições).

De cada vez que leio um documento oficial da Igreja Católica Romana, e da pena do Papa Francisco em particular, não consigo evitar convulsões salivantes, próprias de quem se toma como reencarnação rústica de Lutero num país que nunca o respeitou. Como me costuma dizer um colega pastor, num português evangélico e cuidado, “até me bolso todo”. Sabem, parte do problema é o esquema heróico que o Protestantismo infantilmente concede a qualquer Gru, o mal disposto (no Brasil, “Meu Malvado Favorito”). Onde o Catolicismo adora a acção certa para atingir o bem, os Protestantes adoram fazer coisas que parecem erradas para se livrarem do mal. São duas religiões opostas, neste sentido. Reconheço que o excesso Protestante é o do trolha entornado: a leitura literal da Bíblia já lhe serviu de bagaço no mata-bicho matinal e, com a marreta na mão, rebentar tudo é apenas vocação divina. Mas estes excessos revelam entendimentos sobre a existência realmente antagónicos e que nos melhoram a vida quando compreendidos.

Como vos disse, não é neste texto que vou entrar na leitura crítica de “Fratelli Tutti” do Papa Francisco. Isso, se Deus quiser, ficará para o seguinte. Para o efeito pretendido destas linhas, tudo isto é prolegomena. Mas é um ponto de partida necessário da viagem. Há algumas coisas que elogiarei no texto sobre o que escreveu o Papa Francisco. Como calculam, as coisas que não acho elogiáveis serão aquelas onde me exprimirei com mais exuberância. No entanto, tomei como necessário o reconhecimento formal destas tais duas visões contrastantes e totais que separam Protestantismo e Catolicismo (não me posso ocupar neste texto das margens existentes em ambos, de Católicos que operam sob lógica Protestante, e de Protestantes que operam sob lógica Católica—a vida é tramada e o pessoal tem de aprender a orientar-se nela e, por isso, give me a break). E o fundamental, quando leio o Papa, é lamentar que ele me ofenda tanto enquanto me julga elogiar. O pior nesta ofensa, nem é a dor por me sentir mal-tratado; é o que calculo ser a alegria dentro do Papa por estar convencido de que me ama mesmo. Estes romanos são loucos… Como é que o Vaticano pode estar tão certo do que diz só porque o que diz parece bonito?

Não me parece ser justo culpar um Católico por ser coerentemente Católico. Mas, por outro lado, também não me parece justo tomar como Católico o que um Católico toma como essencial à sua fé em 2020, só porque ele assim julga. Ou seja, para se ser realmente Católico não basta afirmar-se (daí que a piada se constrói acerca da certeza que um Protestante assume em seguramente ser mais Católico do que os Católicos Romanos). Portanto, uma das minhas reclamações fundamentais em relação ao “Fratelli Tutti” será, não apenas da ordem mais filosófica que até aqui tenho tentado apontar, mas de ordem histórica. E esse continua a ser dos pontos mais fracos da história do Catolicismo contemporâneo: a ânsia de universalidade (sendo a Igreja de todos os tempos em todos os lugares e para todas as pessoas) tende a verter-se na típica abstracção que não lida muito bem com a chatice dos factos históricos. O Catolicismo contemporâneo exige uma releitura histórica altamente selectiva para poder mostrar-se inclusivo.

Como é que funciona esta releitura histórica selectiva para efeitos de inclusividade total? Usando de omissões brutais e de simplificações ainda maiores. Dou agora um breve exemplo do “Fratelli Tutti”, que explorarei posteriormente nos próximos textos: a tradição franciscana (de Francisco de Assis) é usada como lógica global da encíclica, ignorando qualquer outra tradição dentro da Igreja, como se a história se fizesse de superação simples em superação simples (aliás, esta questão da “superação simples” dava pano para mangas porque traduziria a influência hegeliana no Catolicismo contemporâneo, mas agora vocês não estão com pachorra para este rumo da conversa—nem eu!). A pessoa não precisa de ter um doutoramento em Idade Média para saber que a Cristandade sempre reconheceu dentro de si debates que eram reflexo de entendimentos contrastantes: basta ter visto o “Nome da Rosa” em filme, e nem sequer ter tido a fortuna de ler o romance do Umberto Eco, para recordar as acessas discussões acerca da personalidade de Jesus (neste caso, se ele e os discípulos riam ou não). Simplificando: a postura de Francisco de Assis, que se colocava como irmão universal de todas as criaturas (animais incluídos), é uma tradição dentro de inúmeras na historia da Igreja. Repito: uma entre inúmeras. No entanto, o Papa assume-a como se história de divergências não existisse. Chapa-a na introdução e a partir daí é piloto automático. Será que, se alguém disser que no cristianismo há espaço para não concordar com a ideia de irmandade universal, nesse sentido, está errado? Aos olhos de uma interpretação histórica rigorosa, não. A prova é que, no geral, o Protestantismo, como fenómeno histórico consequente dos debates que existiam dentro da Igreja, e não fenómeno histórico consequente da imposição deles, continua a não assumir o que o Papa toma como óbvio.

Por isso, o Catolicismo insulta-me quando julga me elogiar. O Catolicismo tem vindo a aperfeiçoar o dom incrível de reclamar para si pessoas que, com alguma razoabilidade, não querem nada com ele. Esta última encíclica é especialmente insuportável porque parte do princípio que chamar todas as pessoas de irmãos é o segredo para ninguém cometer o sacrilégio de julgar que pode não pertencer à família. Em várias expressões da cristandade não se assume que, por todos termos sido criados por Deus, somos filhos dele—assim é na tradição à qual pertenço (muito sucintamente, filhos de Deus são os que através da fé em Cristo são tornados seus filhos adoptivos). Não nego a necessidade de reconhecermos semelhança entre todos os seres humanos: é isso que está em causa doutrina verdadeiramente universal entre todas as tradições cristãs de considerarmos que todo o ser humano é feito à imagem e semelhança de Deus. Não nego a necessidade de reconhecermos a amizade como o melhor caminho entre todos e tornar isso uma preferência nas sociedades que desejamos. Todas estas são preocupações que partilho com o melhor que o Papa escreve nesta encíclica. Mas, como anti-católico primário que sou, quero apenas defender um mundo em que, por triste que pareça, me assista a liberdade de sair da casa do Papá, que é a palavra que está por trás de Papa. Até para ser um Filho Pródigo que regressa, talvez seja útil não partir do princípio que qualquer casa é de família.



terça-feira, dezembro 15, 2020

Uma Doença Chamada Protestantismo

Uma entrada na minha leitura da última encíclica do Papa—Problemas no Paraíso

A história destes textos anti-católicos, aos quais resolvi chamar “Uma Doença Chamada Protestantismo”, começa com um convite que recebi dos Jesuítas para comentar a última encíclica do Papa Francisco, “Fratelli Tutti”*, a 12 de Novembro de 2020. Comigo estaria o Alfredo Teixeira e a Matilde Torres moderaria a conversa. O encontro foi na Brotéria, a secular publicação Jesuíta que agora tem casa na antiga Hemeroteca, lugar que no passado foi arquivo de imprensa e que serviu universitários dos anos 90, como eu, quando precisavam de vasculhar jornais antigos (o meu curso de Ciências da Comunicação ia dos filmes ao jornalismo, passando pelas agruras filosóficas da linguagem). O espaço está uma elegância e a sala onde nos juntámos, no primeiro andar, apesar do corona vírus, encheu-se (respeitando a “distância de segurança”, claro). Como é que as pessoas conseguiram estar concentradas nos nossos discursos com um tecto daquela categoria? E, a partir do lugar onde estávamos, devo reconhecer a mesma elegância também no modo como os Jesuítas, entre outros católicos em Portugal, me tratam. Eu, que não me encaixo naquilo que me parece ser o ecumenismo apressado da praxe, tenho de admitir que a generosidade deste convite, que me chegou pelo Padre Francisco Mota, faz parte da bênção consistente e repetida de ser muito bem acolhido pelos diálogos católicos de Lisboa.

E é por Lisboa e pelos seus diálogos que me vejo forçado a começar. Estes textos são sobre o meu anti-catolicismo primário, claro. Mas só posso lá chegar obliquamente. Antes tenho de começar onde raramente começo, que é por esta coisa boa de ser bem recebido. Por que é que geralmente não começo com a coisa boa de ser recebido? Porque, enquanto cristão evangélico, os meus pontos de partida não são feitos de boas notícias. Enquadrar a existência primeiramente através dos seus aspectos positivos é, no geral para mim, um equívoco. Ser bem recebido é o facto perturbador da minha existência. A graça é do domínio do não-natural. O natural, o expectável, o previsível, o seguro, é saber que não somos bem recebidos. Não somos bem recebidos porque nascemos em conflito com tudo: connosco próprios, com os outros, com Deus. Vou usar uma linguagem teológica para exprimir isto de outra maneira, ainda que corra o risco de alienar já uns quantos leitores: a questão não é apenas que pequemos; somos pecado. O problema não é a vida ser difícil; o problema é que a dificuldade é, essencialmente, a vida. Por isso, não posso partir do princípio que é tudo normal quando me tratam bem. Quando sou bem tratado, devo notar o facto como um árbitro apita uma falta: geralmente o jogo não se joga assim.

Tudo isto que aqui atalho, tem milénios de discussão. Não posso fazer justiça a esse tempo imenso porque a minha tarefa não é escrever História. Falo enquanto protestante que sou, resumindo e simplificando, usando imagens agigantadas ao ponto da distorção, porque, como dizia a Flannery O’Connor, “quando não podes assumir que o teu auditório tem as mesmas crenças que tu tens, tens de tornar a tua perspectiva visível aos outros através do choque—para o duro de ouvido, gritas; para o quase cego, desenhas figuras grandes e surpreendentes”**. Quem desejar ir ao assunto de um modo mais profundo e sistemático, leia, por exemplo, acerca de como os conceitos de graça e natureza diferem entre Catolicismo e Protestantismo. O teólogo holandês protestante do início do Século XX, Hermann Bavinck, explicava tudo isto muito bem na sua “Reformed Dogmatics”***, assinalando que no Protestantismo a graça de Deus não é o contrário da natureza humana mas o contrário do pecado. Como assim? Para Roma, a história da salvação é essencialmente a natureza humana a ser elevada, através da graça divina, ao ponto de Deus se tornar homem—por isso o Catolicismo é fascinado pelo homem porque o homem é o que Deus quis ser. Para a Reforma, a história da salvação é essencialmente a natureza a ser criada e restaurada, ao ponto de Deus se fazer homem para tratar do estrago—por isso o Protestantismo é fascinado pelo pecado porque o pecado é o que absurdamente queremos ser em vez de termos comunhão com Deus. O Catolicismo é vidrado nas coisas boas; o Protestantismo nas más.

É difícil começar uma história pelas coisas boas na medida em que estou inclinado para acreditar que uma história só começou a sério quando algo de mal sucedeu. Esta pequena história, que gera estes textos anti-católicos, começa, todavia, com a tal contradição desta coisa boa da generosidade Jesuíta. E lá estou, numa noite de Outono, ouvindo o Alfredo Teixeira falar acerca da última encíclica do Papa Francisco, descobrindo uma tese nela que me parece melhor ainda do que nela consegui efectivamente ler. A tese do Alfredo era sucintamente a de que o cristianismo, formando-se no primeiro século mediterrânico a partir de casas, agregados familiares, onde todos são iguais, do pai à mulher e passando pelo escravo, ofereceu uma alternativa ao espaço hierárquico do Império Romano. Assim, a fé cristã mudou as cidades a partir do lar, inspirando um ideal de universalidade em que todos podemos ser irmãos. À medida que conversávamos, o Alfredo Teixeira adiantou, todavia, uma observação que, sendo igualmente aguda, me pareceu resumir melhor a questão quando o assunto é este Papa: “a encíclica é o próprio Papa”. E isto foi dito sobretudo tendo em conta as minhas opiniões, menos abonatórias acerca de “Fratelli Tutti” (que passarei a explicar mais à frente nos textos seguintes), que estabeleciam uma comparação entre Francisco e Bento XVI, para concluir que o forte do primeiro nunca foi o que diz ou o que escreve.

Foi importante para mim ouvir o Alfredo a apontar o hemisfério sul como característica incontornável do Papa Francisco, de um homem que veio de onde a riqueza não é tanta e a Teologia tende a enquadrar essa convivência próxima com a pobreza. Certíssimo, reconheço. Mas, por outro lado, o provável, neste caso, é encarnarmos as nossas preferências papais sobretudo a partir das nossas circunstâncias económicas. E assim, está-se mesmo a ver, corro o risco de ser o homem branco que prefere teólogos europeus mais analíticos. Não quero resvalar para o cinismo mas quem é que hoje em dia se quer orgulhar de ser um homem branco que prefere teólogos europeus mais analíticos? No fundo, não seria preferível que a conversa fosse menos marcada pelas preferências e mais pela capacidade de encontrarmos alguma casa naquilo que, de facto, está num texto que se propõe ser um instrumento de guia pastoral? Se é certo que, como Protestante, não reconheço formalmente autoridade numa encíclica papal, por outro, gostava de tomar esse texto como mais do que apenas um reflexo de circunstâncias, sejam elas económicas, políticas, culturais, you name it. As características específicas de um Papa argentino não precisam de ser o essencial acerca dele, até por todas as competências universais que a Igreja Católica Romana espera dele. É verdade que o Alfredo Teixeira também apontou o facto de vivermos numa época em que os Papas estão biografados, e isso interfere no modo como lidamos com eles. Quando antigamente não circulava tanta informação acerca da história pessoal de cada Papa, a relação dos fiéis com ele estava mais simplificada à sombra da autoridade, digamos mais estável, que deles se esperava. Ainda assim, espero por uma relação mais marcada pelo que está escrito quando o que está em causa, através da publicação de uma encíclica, é aquilo que se escreveu. Portanto, se o Papa escreveu, convém que o texto desempenhe algum tipo de papel objectivo além dele mesmo.

Bem sei que, nós Protestantes, vivemos a reduzir a vida a textos—não é possível escaparmos dessa condição. Quando no encontro na Brotéria veio o período de perguntas e respostas, algumas das questões dirigidas a mim queriam-me a reagir em relação a uma atitude do Papa além do texto da encíclica, em direcção ao espírito que animou a escrita independentemente do sucesso que conseguiria ter ou não naquilo que escreveu. Entendi a preocupação mas senti-me na obrigação de explicar que essa dicotomia entre texto e intenção é-me fundamentalmente estranha. A cabeça Católica reconhece a acção divina sobretudo no que está além do texto, daí a valorização do mistério a partir do que não se sabe e toda uma tradição mística em que o centro da adoração, na transubstanciação da missa, é o que não precisa de discurso (quando o mistério é nas Escrituras enquadrado a partir do que foi revelado—planeio escrever um pequeno livro no futuro chamado “Against Mystery”). Esforcei-me, por isso, por explicar que, para um Protestante, o discurso não é um factor de exclusão mas de inclusão. Para um protestante a Teologia não é o que fica para os sofisticados da fé mas para os simples. Como um Protestante crê que a palavra é a unidade constituinte de todo o Universo, criado por ela e habitado extraordinariamente por ela quando se fez carne em Jesus, enquanto não há palavra, não há vida. A palavra, podendo e devendo manifestar-se em Teologia, não é um incómodo mas o verdadeiro acolhimento de qualquer pessoa.

Esforcei-me, portanto, para explicar que uma encíclica que rapidamente assume concórdias prévias entre escritor e leitores, sob o pretexto de uma fraternidade universal óbvia, pode até parecer o acto de uma grande generosidade. Mas pode também oferecer uma formidável exclusão para quem crê que compete ao texto, no reconhecimento da diferença entre interlocutores, a possibilidade da persuasão. Ou seja (e mesmo tendo em conta que à frente desenvolverei o ponto): quanto menos necessidade o Papa sente de me convencer, assumindo que sou seu irmão, mais excluído fico da conversa, se tiver alguma objecção a esse pressuposto de fraternidade. Nesta medida, como o Papa Bento XVI não pressupunha uma comunhão prévia de perspectivas com os leitores das suas encíclicas, e, pelo contrário, reconhecia nos seus próprios textos as objecções que poderiam existir, traduzia, na minha opinião, um gesto dialogante muito mais concreto e eficaz. Apesar de o Rafael Lucas Pires, que estava no auditório e que com piada, no período de perguntas e respostas, ter dito que só um Protestante para atacar um Papa a partir de outro Papa, competiu-me dizer que os consensos que este Papa assume não são necessariamente assim tão óbvios para outros mesmo dentro do Catolicismo. Resumindo: não sou eu que quero ser do contra à força toda; talvez sejam os outros que teimem em querer que todos sejam a favor.

Falta à imaginação Católica, parece-me, uma maior concretização do problema da maldade. No geral, os Católicos esperam mal do mal, o que os empobrece espiritualmente. Como o convívio com os textos é menos intenso, a memória está menos avivada para o facto de que os conflitos nas Escrituras não começam com o mal a aparecer pronunciadamente como mal. O problema do mal no cristianismo bíblico não é a sua existência inqualificada; o problema do mal no cristianismo bíblico é que o mal existe qualificadamente, de um modo tal que na aparência do bem ele já lá reside. No que diz respeito aos acontecimentos fundadores, e neste caso falo da tentação de Adão e Eva, o pecado não se deu por uma escolha consciente do mal mas por uma decisão a favor de um bem sustentado pela mentira. Não é completamente a mesma coisa um erro que é um não a Deus, e um erro que é um sim ao Diabo. Os sins que todos nós damos ao Diabo não estão geralmente enquadrados por uma escolha consciente a favor do mal, mas por termos uma visão tão distorcida do bem que o encontramos no seu oposto. Uma visão acerca de nós próprios que acolha esta consciência do que está tão essencialmente errado acerca de nós enriquece-nos, paradoxalmente, para sabermos esperar não só mal do mal, mas esperarmos também mal do que parece ser bom. Como o povo costuma simplificar, de boas intenções está o Inferno cheio.

Logo, termino este texto de introdução à minha leitura de “Fratelli Tutti” com uma admissão que funciona como pressuposto (ou até possível chave de leitura, como hoje se tornou cliché dizer): apesar de toda a generosidade prévia do Catolicismo, que se manifesta em convites prontos para diálogos e documentos muito inclusivos, compete-me sempre tentar lê-lo. Tentar ler é para mim uma parte inegociável seja do que for. Para mim, ler é existir e implica a possibilidade de descobrir problemas onde outros podem só ver paraísos. Sou uma criatura do Génesis 3 num mundo que insiste em parar no 2.











Bibliografia:

1. “Fratelli Tutti”, Papa Francisco, 2020.

2.  “Mystery And Manners”, Flannery O’Connor, 1970.

3. “Reformed Dogmatics”, Herman Bavinck, 1895–1901.


segunda-feira, dezembro 14, 2020

Ouvir

O sermão de Domingo passado, chamado "Transformar lágrimas em alegria", pode ser ouvido aqui e no Spotify.

sexta-feira, dezembro 11, 2020

Os Punhais

A última canção dos Punhais chama-se “Fogo no Rabo” e quer funcionar, na pior das hipóteses, como um isqueiro em tempos de Inverno. Para tentar pôr alguma coisa a arder insiste naquele punk que não se envergonha de ser pop, festival da canção até (via Da Vinci). São dois minutos e pouco de estrofe, ponte e refrão em harmonias contagiosas, com direito a solo de guitarra campeão e final à Frozen. Sentem o vosso coração a aquecer? Ouçam em qualquer plataforma digital!





Fogo no Rabo — o vídeo

quinta-feira, dezembro 03, 2020

O Spotify a dizer os discos que mais ouvi este ano

 

terça-feira, dezembro 01, 2020

Ouvir

O sermão de Domingo passado, chamado "Promessas de Deus em Circunstâncias dos Diabos", pode ser ouvido aqui e no Spotify.