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O sermão de Domingo passado, chamado "Quem manda aqui?", pode ser ouvido aqui (ou no Spotify).
Religião e Panque-Roque. De Tiago de Oliveira Cavaco.
O sermão de Domingo passado, chamado "Quem manda aqui?", pode ser ouvido aqui (ou no Spotify).
Esta sexta-feira sai um som novo chamado “Bato Palmas na Igreja”. Nele participa o LEONB e a Carol Bazzo. É uma canção especial porque as vozes deles levam-na para lugares onde sozinho não chegaria. Se Deus quiser, esta canção vai integrar um álbum que planeio para breve, também chamado “Bato Palmas na Igreja”. De certo modo, é o meu primeiro disco assumidamente cristão.
Explico: acho que não acredito em música cristã mas apenas em música. Ela pode ser feita por cristãos ou não—é isso. Mas, por outro lado, não posso ignorar que se convencionou chamar “música cristã” a algo que se desenvolveu sobretudo a partir dos anos setenta, com a conversão de muitos hippies americanos ao cristianismo (rock cristão, diziam na altura). Nos anos oitenta a coisa cresceu (era então habitual falar em “Christian Contemporary Music”), chegando até aos escassos adolescentes evangélicos de Portugal, como eu.
Cresci numa relação complicada com essa música, dita cristã. Por um lado, ela consolava-me quando os Iron Maiden eram demasiado inseguros para uma audição que se queria pia. Os Petra não eram tão pesados mas os Stryper, quando descobertos, encheram-me as medidas. Era pouco o que chegava cá mas o suficiente para me marcar a mim e aos meus amigos da Igreja Baptista de Queluz: One Bad Big, quando o punk nos piscou o olho; The Crucified, quando nos tornámos mais hardcore; Bob Dylan (na fase evangélica) quando a Faculdade nos exigia alguma erudição; e isto sem esquecer os clássicos que eram a Amy Grant e o Michael W. Smith, apropriadamente ostracizados pela nossa teenager necessidade de sons mais agressivos.
Por outro lado, a minha vaidade sempre me fez sentir superior aos rótulos seguros de uma música certinha para consumir. Era óbvio para mim que o cristão mais talentoso era aquele que era ouvido por não-cristãos. Play it safe sempre foi uma banhada para quem, como eu, queria ter jogo de choque. A verdadeira conquista é atingir quem está do outro lado, certo? As guerras ganham-se assim e, também por isso, nunca me interessou pregar para o côro ou receber o reconhecimento de quem já acredita no que acredito. A nossa editora, a FlorCaveira, foi construída nessa mistura complicada entre não querer negar as nossas raízes religiosas ao mesmo tempo que procurava os corações dos ímpios. Religião & Punk Rock, right? Johnny Cash uber alles, cantando sobre Jesus ao mesmo tempo que dava o middle finger aos guardas-prisionais de Folsom.
O que tem mudado então? Entre muitas coisas, muda-me o facto de ser pai de quatro miúdos que hoje vão dos 18 aos 12 anos. Getting to the point: quando és pai de quatro miúdos evangélicos, tendes a amá-los. Os meus miúdos são os miúdos evangélicos que menos vergonha tenho de amar e que me levaram à conclusão de que amar mais miúdos não-evangélicos do que miúdos evangélicos é uma estupidez do caraças. Na prática, era isso que durante anos fazia, perdido no meu narcisismo. E é agora para mim um credo: os artistas evangélicos são uns cagões da treta (pardon my french) porque ainda não assumiram a acepção de pessoas que fazem ao preferirem pessoas não-evangélicas sobre as evangélicas. Os artistas evangélicos são cidadãos em estado de negação, que não sabem lidar com as suas origens, que tendem a querer ignorar para conquistar as pessoas mais sofisticadas que são as não-evangélicas, e por isso é que tresandam a cobardia e se andam a “desconstruir” (como os saloios agora dizem).
Já estão a ver onde quero chegar: quero que os artistas evangélicos se rebentem todos nos seus diversos dilemas de auto-estima. É por eu seu um deles que falo com tanta paixão nisto. O que sei é que a arte que será verdadeiramente eterna é aquela que, por ser fruto do verbo divino, declara Cristo. Por isso, e por muito subtilmente sofisticada que possa ser uma música que alude sem escarrapachar na nossa cara uma mensagem evangélica directa (como tanto tento fazer), é que, das duas, uma: se ela não estiver firme no “fiat” original, será desfeita. Deal with it.
Pior do que ser um artista evangélico, é ser um não-assumido. Este é um assunto que não dá para elaborações simples e bonitinhas. Temos de encarar que é um negócio quebrado. Se nos Estados Unidos já sabemos topar à légua a mania que os artistas evangélicos não-assumidos têm, vinda desses conflitos internos que os entopem em angústias infantis, no Brasil também já nos estamos a habituar (os artistas evangélicos andam a descobrir aos trinta anos causas que vaporosamente os devem redimir como a “brasilidade”—céus! Quem quer saber de brasilidade? O Brasil em si já chega!). Em Portugal, ainda somos demasiado insignificantes para merecer alguma real atenção mas a tentação para nos armarmos em profissionais da aflição artística já cá mora. É preciso ter cuidado.
Enfim, dei uma grande volta para expurgar os meus próprio vícios… O que me anima aos 44 anos é chegar a um ponto onde já deveria ter chegado há muito: não ter vergonha da minha fé e assumi-la. E se ela não cair bem aos miúdos não-evangélicos que durante décadas preferi aos evangélicos? Azar o deles. Hoje, graças aos meus filhos, sei que qualquer geração de hipsters passa (os meus filhos são totalmente indiferentes aos críticos musicais que durante anos quis convencer). A vantagem de ser um has-been artístico, como sou, é que quem é esquecido já está mais no futuro do que aquele que é lembrado. Seremos todos poeira na terra, já dizia o Tom Waits. Se algum dos nossos refrões louvando Cristo chegar às bocas futuras, aí sim: teremos conseguido alguma arte.
Eu, músico evangélico que faz uma música que não é bem evangélica, assumo-me: venha daí um álbum novo que meta medo ao Diabo (e aos filhos dele). Que invoque o Deus trino com a religião e punk rock que ao longo dos anos tem sido a casa da FlorCaveira. Se sentirem o som, tanto melhor. Se não, paciência. O louvor, finalmente começo a ver, não será para mim, de qualquer modo. See ya in the pit!