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terça-feira, abril 19, 2022
A MELHOR PREGAÇÃO QUE OUVI NOS ÚLTIMOS ANOS (OU UM ELOGIO A ELIZEU RODRIGUES)
Olho para os últimos dez, quinze anos como bons na importância que deram à pregação. Mesmo que generalizemos falando de todo o meio evangélico (que é tão vasto e tão cheio de tantas diferenças), em 2022 é mais difícil ser um mau pregador. E é mais difícil em 2022 ser um mau pregador por várias razões mas certamente uma delas é o facto de a internet nos ter dado olhos para ver o que acontece nas outras igrejas. Antigamente, para sabermos o que acontecia na Igreja da Rua de Baixo, tínhamos de ir à Igreja da Rua de Baixo ou, pelo menos, saber de alguém que lá tinha ido. Agora, com todas as montras que a web abre, nós só não sabemos o que acontece na Rua de Baixo se não quisermos (e isto dá outro texto, provavelmente tão ou mais necessário do que este, que é o de escolhermos não ver tudo o que está nas montras da net como parte do nosso processo de santificação—mas fica para outra altura). O ponto agora é este: é mais difícil ser um mau pregador em 2022 porque, mostrando a internet onde estão os melhores, ser negligente no púlpito produz prejuízos mais imediatos.
Mas também há coisas más a vir desta boa, de se dar mais importância à pregação. Como temos um dom infindável de arruinar os dons de Deus, acontece produzir-se uma certa idealização do sermão que, em vez de o cultivar como a arma que ele é, o torna numa espécie de amuleto. Vejo isso a acontecer no meu contexto, que é o de um Baptista de persuasão calvinista. Entre Baptistas de persuasão calvinista, como eu, não é agora raro encontrar quem olhe para o sermão com lentes legalistas: “se fizermos assim e assado, certamente que nada falhará!” Eu, que creio que todo o sermão para ser sermão precisa de ser expositivo (expondo o texto onde o sermão se funda e não fazendo do texto um pretexto para se afirmar o que o texto não afirma), reconheço, ainda assim, que o meu pessoal (os tais de persuasão calvinista) volta e meia exagera na receita. Talvez por não haver entre pregadores uma grande cultura de estudo de textos (bíblicos e extra-bíblicos), estamos a pregar a Bíblia mais pobremente por conta de forçarmos uma visão idealizada do sermão expositivo. Não há nada como estudar a história e reconhecer que grandes pregadores dificilmente encaixariam nestes novos zelos de púlpito: Agostinho, Crisóstomo, Lutero, Spurgeon e Lloyd-Jones não seriam, segundo as perspectivas mais restritas, pregadores expositivos (e isto apenas para enumerar 5 dos meus preferidos).
Portanto, receio que tenhamos passado rapidamente de um extremo para o outro: se é mais difícil ser mau pregador hoje, também é verdade que em alguns contextos há bons pregadores que injustamente podem passar por maus. Com o é que isso acontece? Por exemplo, e como agora muito se diz, por tribalismo. Por conta deste tribalismo há uma riqueza na diversidade dos púlpitos evangélicos que não está a ser reconhecida. Quem se acha calvinista, não ouve não-calvinistas, e vice-versa. Há quem nesta fase da conversa recorde a amizade e admiração mútua que unia George Whitefield a John Wesley, mas até isso não comove todos. O facto de ser considerável o que está em causa nas diferenças doutrinárias que nos distinguem enquanto evangélicos, não deve impedir-nos de lucrar com a diversidade que caracteriza o Protestantismo. É nesta medida que continuo a usar uma frase que serve de lema para mim: quero ser Baptista pensando como um Presbiteriano e louvando como um Pentecostal. É vero que há muito que os Presbiterianos pensam que tomo como errado, e é vero que há adorações Pentecostais com as quais nunca me identificarei—mas continuo a encontrar verdade suficiente na ideia de que, no geral, Deus abençoou o pensamento mais sistemático nos Presbiterianos e o ímpeto de adoração nos Pentecostais, e que eu posso beneficiar disso.
Isto leva-me ao melhor sermão que ouvi nos últimos anos. O que me levou a ele não foi a causa mais santa, admito. Andava pela internet à procura de excertos de pregações porque, como o Kanye West, interessava-me incluir algo afiado numa canção. Já o consegui com o Jonas Madureira (os distraídos que escutem a canção “Não Há Descanso no Sistema da Babilónia” em qualquer plataforma digital), mas interessava-me naquela ocasião algo num estilo mais inflamado, mais gritado. Busquei e busquei e, por alguma razão, fui parar a uma colecção de excertos de pregadores “pentecostais bíblicos”, adjectivação que achei curiosa. Um dos pregadores em causa, que se destacou pela unção e pelo humor, chamava-se Elizeu Rodrigues. Até aí, nunca tinha ouvido falar dele. Fiz nova busca por um sermão dele e foi-me sugerido pelo YouTube a mensagem “O Espírito que nos enche”. Estava de apetite aberto: por um lado, atestava que a importância dada à pregação expositiva era possível de verificar até fora da minha praia calvinista, entre assembleianos; por outro, desde adolescente que fui influenciado por pregadores Pentecostais e, infelizmente, nos últimos anos tenho ouvido poucos. Cliquei no link.
Quem prega por vocação perde muitas vezes a capacidade de ser surpreendido pelo uso alheio do seu próprio mister. Ou seja, ficamos tão profissionais na tarefa de preparar sermões e pregá-los que parece que, quando ouvimos os outros a fazer o mesmo, só podemos avaliá-los como críticos. Esta é das coisas que mais me irrita quando, na companhia de outros pregadores, ouvimos um terceiro: rapidamente todos acabam armados em juízes de talentos de um programa de TV. É verdade que quando ouço outro pregador estou mais inclinado do que a maioria das pessoas para o criticar com alguma pertinência. Mas, quem é que me julgo que sou para me colocar numa suposta área de neutralidade quando alguém prega a palavra do Senhor? Daí o meu apelo a todos os pastores com dedo leve para o gatilho da crítica homilética: quando ouvimos outros pregadores, o nosso papel não é em primeiro lugar escrutinar; é escutar. Ao escrever isto, reconheço que não temos como desligar o nosso poder crítico. Até neste sermão do Elizeu, nem todos os aspectos me pareceram perfeitos. Mas o objetivo de a palavra de Deus, quando é pregada, não é ser aceite como perfeita porque nenhum ser humano o conseguirá; o objectivo da palavra de Deus quando é pregada é revelar a verdade acerca de Deus e acerca de nós, que a ouvimos. Logo, quando um sermão é pregado, antes de seres um avaliador, tens de ser um alvo.
E um alvo fui eu, naquele sermão do Elizeu Rodrigues. Ri e chorei. Reconheço que ainda ri mais do que chorei mas o menos que chorei deu para o muito que ri. E há tanta coisa importante que pode ser dita acerca desse dia de Outono de 2021, quando ouvi o Elizeu Rodrigues pela primeira vez… Vou mencionar só três que nem sequer vêm em ordem de importância. Primeiro, o ritmo. Os pregadores tantas vezes esquecem que, para um Protestante, qualquer sermão é música. Atribuo esta falha ao pouco conhecimento histórico e, por outro lado, até filosófico, que temos da Reforma Protestante. Do mesmo modo como Lutero não viveu sem se exprimir musicalmente, um pregador que beneficie dele não pode dispensar a música. É daqui que vem a minha convicção de que um pregador Protestante, para ser realmente um pregador Protestante, no sentido histórico e filosófico mais rigoroso do termo, precisa de ser músico. Um sermão sem ritmo, um sermão sem um traço musical, pode ser muita coisa mas não é genuinamente um sermão Protestante. Uma Igreja Protestante que cante mal ou desvalorize a música pode ser muita coisa, mas Protestante não será. Porque o ponto é este: não é possível valorizar a pregação desvalorizando a música porque qualquer sermão para ser sermão precisa de ser musical. E Elizeu Rodrigues prega musicalmente. Há cadência. Há estrofes e há refrões. Na sua voz há harpas e há death metal. Há píncaros e há fossos, como qualquer sinfonia exige. Um sermão tem de ser musical porque música é a uma forma de encarnação da palavra.
Em segundo lugar, há no Elizeu Rodrigues arco. O que é isso de arco? Arco é, como no futebol, a leitura do campo. Arco é aquele passe que, quando sai dos pés do jogador, parece um erro mas, quando encontra inesperadamente o avançado que se precipita para o golo, se revela como prodígio. “O que é que ele está a fazer?”, perguntamos exasperados ao ver o início de uma jogada aparentemente falhada. “O que ele fez!”, celebramos quando o que parecia um erro deu o que o guarda-redes não conseguiu defender. E esta questão do arco aplica-se à exegese do texto. Elizeu Rodrigues faz parte daquela linhagem de pregadores que ousa misturar assuntos que parecem desfamiliarizados. Está a pregar em Actos e dispara para os Salmos e Hebreus ao mesmo tempo e sem pudor. Como o faz com rapidez, jogador veloz que é, apanha-nos despreparados. Mas ele sabe que qualquer exegese para ser exegese pressupõe essa saída arriscada, essa possibilidade de descontextualização para que alguma contextualização real aconteça. A pregação do Elizeu é cheia de passes em arco que tratam toda a diversa biblioteca bíblica como o assunto único que os cristãos crêem que é (neste sentido, é uma pregação cheia de Teologia Bíblica mas não necessariamente jogada na táctica comum daquela que é mais apreciada pelos de persuasão calvinista).
Em terceiro lugar, o Elizeu Rodrigues, como bom Pentecostal que é, é um crava. O sermão na boca dele nunca é apenas uma pregação, é também uma pedinchice. E qualquer sermão tem de ser essa pedinchice porque qualquer invocação da palavra de Deus pede sempre mais dela ainda. Um pregador quando faz o que é certo, mais do que ter a barriga cheia da palavra que é pão, sente-a por encher porque o que pregou nunca satisfaz totalmente. A prova de que qualquer pregação tem de ser pedinchice é que a única mesa que nos encherá a barriga espera por nós nos Novos Céus e na Nova Terra—até partilharmos essa refeição com o nosso Senhor Jesus, rosto a rosto, enchemo-nos aqui de vida, é certo, mas de migalhas dela apenas. E neste aspecto de cravanço, os Pentecostais são crentes mais bíblicos do que todos os outros. Enquanto cristãos, somos todos mendigos. No outro dia lia o Jay Bauman acertar na mouche: “Estou convencido de que quem zomba e é cínico daqueles que cantam canções sobre milagres e clamam por milagres provavelmente nunca precisaram de um”—levei 40 anos para entender isso. Pior do que pedinchar milagres é nem precisar deles, escrevi no outro dia sobre isto. E, também por estas coisas, o Pentecostal é um exemplo. Ele não tem vergonha da sua insatisfação. Os milagres de que um Pentecostal precisa são a miséria que ele não finge não ser.
A secção da mensagem que vai de 22’56’’ até 25’45’’ é a melhor coisa que vi num ecrã (numa tela) nos últimos anos. É melhor do que todas as séries de TV, é melhor do que todos os filmes, e dificilmente revejo esse trecho sem me descobrir escandalosamente nele, com tudo o que sinto e com tudo o que acredito. A minha vida é essa afirmação do Elizeu Rodrigues: a palavra, como expressão de Cristo, é o fogo que dá vida e que não pode ser, debaixo das melhores intenções, vedada às pessoas. O Protestantismo é por natureza popular porque Deus salva pessoas e não grupos delas organizados em elites. Eu, que sou uma pessoa tão miserável como os pobres de qualquer lugar do mundo, quero da palavra porque a minha fome é o mais sincero que sou. O Elizeu começou a pregar para mim desde este sermão e não tem parado. Tenho até esperança de ainda o conhecer aqui nesta vida, não para fazer dele uma sensação de internet maior do que já é, mas para simplesmente lhe agradecer dizendo: “meu irmão, tenho vindo a encher a minha barriga de Jesus ouvindo as tuas palavras. Obrigado!”