Tentando responder ao Vincent
Lembro-me do
Vincent desde que me recordo de existir. Para além de meu amigo, na adolescência tornou-se uma espécie de herói pessoal. Foi ele que me ensinou que por se fumar não se ia parar ao inferno. Foi ele que me fez entender o que era precisar de escrever para sobreviver. Provavelmente o Vincent é dos poucos escritores genuínos que conheço. E acima disto tudo a forma como ama o Senhor sempre excedeu os constrangimentos nascidos das suas incompatibilidades com o
sistema.
Os adjectivos que usei não colocam em risco a admiração que tenho por ele. Nem tão pouco a nossa amizade já de muitos anos. E foram artifícios literários bem débeis, comparados com a crítica afiada que o Vincent desferiu àqueles que, como eu, se mantêm dentro das estruturas religiosas. Passo a tentar expôr a minha divergência.
Nas pessoas que se incompatibilizam com as instituições encontro quase sempre uma cegueira obstinada em olhar para si próprios. E uma crença infantil numa tese simplista: sozinho sou puro, acompanhado perverto-me.
Em comunidade temos o melhor de nós multiplicado uma série de vezes e temos o pior de nós multiplicado também uma série de vezes. A vivência comunitária da fé, a igreja, não foge a esta regra.
Em congregação, como noutra qualquer forma de vida em sociedade, deve existir uma perspectiva contratual da convivência: os pressupostos devem apontar as convergências necessárias do projecto comum que existe entre os indivíduos mas, simultaneamente, zelar pelo espaço da intimidade de cada um. Esse é intransponível. Neste sentido arrepiam-me as manifestações religiosas que sugerem um princípio de
transparência total. Só Deus usa os óculos Raio X para o coração humano.
Quando me reúno com os meus irmãos às dez da manhã de Domingo em Moscavide, não reclamamos nenhum exclusivo das qualidades espirituais. Desenhamo-as, sim, enquanto alvos e sabemos que é impossível viver a nossa relação com Deus sem ser em comunhão. O Vincent, como bom protestante que é, sabe que é impossível que alguém numa igreja evangélica arrebate para si o termo ortodoxia enquanto defesa da verdade. Nós, os que em Portugal adoramos a Deus em garagens e lojas de rés-do-chão, sabemos que as nossas raízes escrevem no solo a palavra "heréticos". Não condenamos ninguém à obscuridade por se afastar da perspectiva única porque nós fomos os primeiros a fazê-lo. Quem quiser amordaçar a História só pode cortar relações com o futuro.
Acabo. A minha fé não valida a defesa da verdade. A verdade, existindo, nem sequer precisa de ser defendida, já dizia Kierkegaard. E eu acrescento: nenhum homem possui a verdade. A verdade é que possui alguns homens.