Miguel Ângelo
É impossível ter vivido a última década do século passado em Portugal sem ter esbarrado na popularidade dos Delfins. A maioria de nós tem um disco deles sem que se lembre de o ter comprado. E esta é uma das maneiras de aferir o verdadeiro sucesso de uma banda - a participação individual inconsciente num movimento colectivo. Há poucos nomes da música portuguesa que tenham atingido este patamar.
Claro que com esta entronização massiva veio também o embalo oposto. No final dessa mesma década os Delfins tornavam-se uma piada fácil para a nova geração de humoristas portugueses, que se limitava a dissociar pavlovamente o nome da banda a qualquer tipo de critério audiofónico esclarecido. Ainda hoje se sentem os efeitos desta bipolaridade ficando a música quase sempre para segundo plano.
Lembro-me de gostar do "Desalinhados", descurtir à grande a fase mística seguinte, render-me ao efeito Resistência, fazer pouco do
takeover comercial do "Caminho da Felicidade" (porque já tinha a mania que era punk nessa altura, apesar de cantarolar "Sou como um rio"), e surpreender-me com uma actuação da "Sharon Stone" no Herman. Os Delfins chegavam ao fim sendo uma banda menos ouvida e mais sentida como um desconforto. Apesar da minha própria apreciação deles ser irregular, sempre me pareceu que reduzi-los a uma
punchline era demasiado gratuito. Hoje conheço razoavelmente bem a discografia dos Delfins e,
mark my words, aprecio-a. Deram-nos algumas das grandes canções pop das últimas décadas. Agora mandem a
jazz police prender-me que eu não me importo.
Conheci o Miguel Ângelo por volta de 2005, 2006, creio. Quando uma das bandas da FlorCaveira foi tocar ao Lótus Bar, em Cascais. O Miguel era um dos donos e era genuinamente interessado em ouvir o que de novo se andava a fazer. Tivemos uma grande conversa e foi a primeira vez que me apercebi do amor incondicional que o Miguel tem à música. Quando anos mais tarde li o livro dele, "Um Lugar ao Sol", fiquei convencido que antes de ser uma estrela o Miguel é um ouvinte. É essa dedicação que faz com que o Miguel possa ser encontrado nos concertos mais improváveis sem se preocupar com o seu incómodo lastro de popularidade. O Miguel é dos poucos músicos em Portugal que realmente está cá pelo
rock'n'roll e que dá corpo à teologia do Lou Reed que declara que é ele, o
rock, que salva vidas. Isso fez com que nos voltássemos a cruzar por volta do
boom da FlorCaveira na imprensa em 2008, 2009, e que a partir daí nos tornássemos mais próximos.
Em 2011 os Lacraus tiveram uma ideia para um teledisco que envolvia o Miguel Ângelo tornar-se um assassino que esquartejasse o Nuno Markl. Nem um nem outro pestanejaram e deram-nos, perdoem-me a imodéstia, um dos maiores telediscos da música portuguesa. Mais de uma vez o Miguel se juntou em palco aos Lacraus para cantar "Um Peito em Forma de Bala", o que era um privilégio duplo porque crescemos a ouvi-lo e dava-nos uma oportunidade de irritar saloios porque sabemos que a figura do Miguel é uma blasfémia para os saloios que se armam em puristas do
punk (e nós amamos irritá-los).
Esta Quarta-Feira vai acontecer o contrário. O Miguel convidou-me para cantar uma música com ele no concerto que vai dar no CCB. É de uma grande generosidade até porque serei uma perfeita desconhecida e desengraçada figura em palco. A ironia feliz é que em níveis de popularidade absolutamente opostos quer ele, quer eu, sabemos que é apenas
rock'n'roll. E gostamos.