O elogio possível ao Maquiavelismo
[Na semana passada fui convidado a falar numa palestra acerca dos 500 anos de "O Príncipe" de Maquiavel. Como sou péssimo a recusar convites, atirei-me ao desafio sem qualquer experiência: li o livro e dei-me ao luxo de me juntar a pessoas que sabem muito. Foi uma grande oportunidade de aprender. Especialmente a intervenção do Professor Mário Avelar, que fazia parte da mesa, tranquilizou-me quando mencionou alguma necessidade de rever os clichés típicos acerca de Maquiavel. Quando li o texto seguinte, já não me sentia tão burro. Uns dias depois tropecei neste texto na Atlantic (clicar aqui), que sendo diferindo do meu raciocínio em algumas partes, noutras concorre para ele.]
Ser convidado a falar acerca de "O Príncipe" de Maquiavel num evento deste calibre só confirma que sou tratado muito melhor que mereço. E permitam-me a piada óbvia: sou recebido como um príncipe, de facto. Até porque a minha ignorância no assunto é enorme, só comparável ao meu descaramento de não ser capaz de resistir a juntar-me a estas pessoas que admiro para chapinhá-las com a minha falta de senso. Por isso agradeço ao João Caetano, que me convidou, e aos meus companheiros de mesa, antecipando um pedido prévio de misericórdia a eles e aos que me ouvem. Por cada século que a obra de Maquiavel comemora dêem-me um minuto de atenção.
No Domingo passado preguei o quinto de uma série de seis sermões contra a preguiça. Na Igreja Baptista que se reúne na Lapa, da qual faço parte, temos feito um esforço por detectarmos os nossos vícios com e a partir da Bíblia. Este é um exercício bem mais fácil do que aquele que pretende ginasticar as nossas virtudes. Mas, como cristãos, e sabendo que o poder para fazer o bem não é nosso mas do Espírito Santo, temos esperança e certeza no progresso da nossa santificação. Quando pregava contra a preguiça falei à igreja acerca da sua antepassada, a acédia. A acédia é a preguiça antes de ser secularizada. Uma sociedade desespiritualizada percebe a preguiça a partir da sua manifestação física. Numa definição possível e muito resumida, pessoas preguiçosas são aquelas cujo corpo é palco de pouco. Mas uma sociedade menos desespiritualizada preferia a definição de acédia porque a manifestação física era entendida a partir da sua origem espiritual. Ou seja, o pouco que as pessoas preguiçosas exibem no corpo provem do que lhes acontece na alma. A acédia estabelecia uma ligação directa entre a ausência de resultado e o estado do espírito. Por isso Tomás de Aquino opunha directamente o pecado da acédia à virtude da alegria que temos em Deus. Numa equação simples diríamos: o corpo não fará nada quando o coração estiver vazio. Sem prazer no Criador a única criação possível seria a tristeza. Por isso a acédia era uma preguiça necessariamente melancólica. Porque tudo era espiritual. Hoje olhamos para a preguiça de uma maneira demasiado pragmática: tornamos os preguiçosos em zombies, pessoas sem alma, porque nos concentramos sobretudo nas suas deficiências locomotivas. O que interessa é pô-los a mexer (e quem fala em preguiçosos pode aqui falar em deprimidos). Na Idade Média não era assim. As pessoas, por muito doentes que estivessem, ainda eram entendidas a partir da alma que tinham.
Por que razão dar esta volta e resumir o sermão de Domingo passado quando o objectivo é falar de Maquiavel? Por um lado, é certo, porque ainda não sei separar o púlpito da igreja dos outros púlpitos e porque também ainda não saber resistir a pregar àqueles que não me ouvem as pregações ao Domingo. Por outro, porque ao ler "O Príncipe" de Maquiavel me apercebi da proximidade que lhe tenho, sobretudo tendo em conta que o tempo em que viveu acreditava em coisas que eu, num tempo diferente, acredito também. O ponto essencial da minha apreciação sobre "O Príncipe" é dizer que Maquiavel poderá parecer estranho para quem olha para as questões do poder temporal subtraíndo-lhes a realidade do poder espiritual. Para quem não o faz, e mesmo que discorde de muitas linhas do escritor italiano, não o achará tão estranho assim. Colocando isto de outra maneira: há sentidos possíveis para um cristão se defender como maquiavélico numa cultura que faz deste adjectivo uma acusação.
Não deixa de ser revelador que a cultura que no passado mais foi orientada pelo cristianismo seja aquela que hoje permite que ele exista desde que não ouse orientar alguém. Entendam-me: o mundo tem partes que proíbem pura e simplesmente que o cristianismo seja pregado. Mas essa proibição vem precisamente do facto dessas partes do mundo reconhecerem no cristianismo a sua presunção de orientar. Lá as religiões ainda são entendidas a partir do que procuram: dirigir para o que é espiritual. Nesta lógica, a permissão que o Ocidente ainda condescendentemente oferece ao cristianismo não é a de movimento mas de imobilização. Por isso se fala tanto de liberdade para a fé quando localizada no privado, porque o privado é a cela mais segura da política contemporânea. Não me entendam mal: como Baptista tenho muito orgulho em dizer que a denominação religiosa da qual faço parte defendeu há 400 anos aquilo que, por exemplo no nosso país, ainda muito timidamente é garantido pela lei - a separação real entre Igreja e o Estado. Mas essa separação, uma verdadeira conquista cívica da democracia, não é uma plataforma para dizer que a única coisa que há de governável entre os cidadãos é os corpos que eles têm. O facto das pessoas terem almas é o que continua a tornar difícil a política temporal. E o que faz de Maquiavel um exemplo de virtude muito maior que a multidão de filantropos materialistas.
As aparências iludem e creio que hoje o texto de "O Príncipe" não nos choca tanto pelo que mostra que o autor italiano pensava sobre a política. Choca-nos mais pelo que mostra que o autor italiano pensava sobre os homens. Nessa medida, a minha apreciação sobre esta obra é mais movida pelo que concordo antropologicamente com Maquiavel, e menos pelo que discordo politicamente dele. Usemos um exemplo da sua própria pena, no muito mencionado capítulo 17:
"Daí se origina esta questão discutida: se melhor é ser amado que temido, e vice-versa. Responder-se-á que se queria ser uma e outra coisa; como, entretanto, é difícil reunir ao mesmo tempo as qualidades que levam àqueles resultados, muito mais seguro é ser temido que amado, quando seja obrigado a falhar numa das duas." Tendemos a escandalizar-nos pelo pragmatismo de Maquiavel. Afinal há aqui um governante que se projecta a partir da necessidade de desempenhar uma tarefa e não da resposta que essa tarefa provoca no coração dos que por ele são governados - ser temido é mais importante que ser amado. Devemos consequentemente perguntar por que razão nos escandalizamos tanto. Arrisco uma resposta, sob a eminência do simplismo possível: escandalizamo-nos que um homem olhe naturalmente para a manutenção do seu poder sobre os outros na medida em que ele considere esse poder necessário. Ou seja, a força de "O Príncipe" não está em mostrar-nos que os homens gostam de governar. A força de "O Príncipe" está em mostrar que os homens não gostam mas precisam de ser governados. Todos podemos concluir a primeira e somos uma cultura com facilidade em apontar excessos de autoridade. Já a segunda é contra o
zeitgeist no nossos dias e somos uma cultura com dificuldade em reconhecer a necessidade de autoridade.
Não tenho a certeza que a contemporaneidade agarrou a distinção entre público e privado para se livrar da antiga, entre temporal e espiritual. Sinto, todavia, que muitas vezes me parece que sim, que há a presunção de fugir de um velho problema escolhendo um novo. Afinal, a partir do momento em que os homens se tornassem apenas produtos materiais poderia ser que o caminho de os governar se simplificasse. Nessa perspectiva a autoridade deixou de ser um bem em si mesmo, uma vez que homens sem alma deixam de poder ser classificados como bons ou maus e, portanto, deixa de se justificar a necessidade de serem governados. A autoridade passou então a ser um mal necessário e da ordem do que é prático - é exercida não porque é ontologicamente necessária mas porque ainda não se consegue viver melhor sem qualquer tipo de governo. Um cristão evangélico como eu tem nesta matéria o caminho mais facilitado: acredita que a autoridade é necessária primariamente porque é uma coisa boa, encontrada no próprio modo como Deus se relaciona amorosamente com as suas criaturas. A prova de que esta perspectiva não é nenhum atalho para totalitarismos é que, em último grau, a Bíblia coloca a lei dos homens dependente da lei de Deus (Actos 5:29). O cristianismo nunca apreciará o uso do poder simplesmente porque é necessário usá-lo mas apreciará o uso do poder quando esse poder for, de acordo com o carácter de Deus, bom.
Não tenho a pretensão de defender que, bem vistas as coisas, Maquiavel pode ser encontrado no Sermão da Montanha. Mas encontro-o com facilidade na antiga tradição cristã que não resolve o problema do poder temporal fugindo e gritando que ele não lhe diz respeito. Este tipo de manobra anarco-pacifista, tão cara hoje de pregadores de platitudes, insulta tanto a nossa inteligência quanto o nosso conhecimento do Passado. Jesus ter distinguido Deus de César (em Marcos 12:17) não separou os cristãos das suas autoridades civis (como é visível na Carta de Paulo aos Romanos, no capítulo 13, entre outros textos possíveis nas Escrituras). Mesmo quando não concordo com Maquiavel, concordo com o que o leva a escrever: é preciso exercer autoridade. Há na História uma linha notável de homens que por serem da piedade não tinham alternativa a serem também da polis. Pegamos na "Cidade de Deus" de Agostinho e no "Leviatã" de Hobbes, ou na obra que hoje lembramos de Maquiavel, e, amedrontados que estamos da autoridade, resumimo-los a manuais de
real politik? Será de uma grande ironia que nós, os do desconforto com a palavra "espírito", tenhamos de conseguir lidar com estes homens apenas quando lhes roubamos a alma e os transformamos em proto-tecnocratas. Pelo modo como Maquiavel baseia os seus conselhos no facto de crer que os homens são maus por natureza, encontrei-lhe muito mais coração que nos bons de serviço que hoje nos cabem em sorte.