A Babá
A família Cavaco tem o hábito de ao Domingo só ouvir música de louvor. E a regra nasceu também porque não somos de ouvir muita música dita cristã. Mas o Domingo é aquele dia em que desejamos que tudo o que fazemos nos convide e excite a louvar Deus. Logo, um dos automatismos que acontece quando entramos no carro a caminho da igreja é meter um CD no leitor que nos acenda o rastilho para a adoração que vai continuar na Lapa. Durante uns meses interrompemos este hábito. E por causa de uma pessoa.
Não é suposto que nenhuma pessoa interrompa o louvor que devemos a Deus. Se assim acontecer, podemos ter um problema de idolatria, em que alguém (ou alguma coisa) serve de obstáculo para a nossa devida adoração ao Senhor. Mas esta pessoa, que durante uns meses impediu que colocássemos um CD de louvor aos Domingos, não era uma pessoa qualquer e a razão porque impediu que o louvor começasse mais cedo no nosso carro não foi para nos desviar de Deus mas, pelo contrário, nos dar mais dele. Essa pessoa chama-se Bárbara e foi uma espécie de filha adoptiva da família Cavaco durante meio ano.
A Bárbara é brasileira, esteve a terminar os seus estudos na Suiça e depois arranjou um estágio em Portugal. Conhecemo-la porque é amiga de amigos nossos (a Alê, o Alberto e o Calebe) e quando soubemos que tinha arranjado casa perto de nós, tentámos ser-lhe o mais útil que conseguimos. Ela visitou a nossa Igreja, gostou dela e começou a frequentá-la. O mínimo que podíamos fazer por ela era dar-lhe boleia (carona, para os leitores brasileiros). Como podem imaginar, se dávamos boleia à Bárbara ao Domingo de manhã, houve um encontro dela com o nosso hábito de colocar um CD cristão.
Na primeira boleia que lhe demos, e por uma questão de educação, suspendemos o CD que estava a tocar. Afinal, não é muito gentil receber alguém no carro e não oferecer-lhe os nossos ouvidos. E se há dom que a Bárbara mostrou ter é o de saber usar a atenção das pessoas com quem está. Mal entrou, entrou com ela um universo novo que a nossa viatura nunca tinha visto a um Domingo de manhã. Acho que ficámos logo com a ideia, no momento, que aquela miúda estava a trazer um jogo diferente que mudava as regras dominicais do carro mas mudava mais ainda.
Durante meio ano não foram só os nossos Domingos que foram tomados pelo furacão Bárbara. Foram feriados, fins-de-semana, e outros dias. Gradualmente a Bárbara conquistou não só a nossa companhia, como também a nossa confiança. Em menos de nada a Bárbara tornou-se a Babá, também porque a usámos como baby-sitter das nossas crianças (e em Portugal não se usa "babá" para baby-sitter, mas nós adorávamos fazê-lo). A Bárbara deixou de ser apenas Bárbara para ser também a Babá - tornou-se parte da família Cavaco.
Em muitas das qualidades que trouxe à nossa vida, duas destacaram-se. A Bárbara tem um talento natural para contar episódios em que fez figura. Em Portugal fazer figura também significa aqueles momentos em que damos por nós numa situação meio ridícula - em que a piada somos nós próprios. Com a Bárbara isto acontece frequentemente. O resultado era que em pouco tempo acabávamos a rir da Bárbara graças à Bárbara. Esse humor gracioso trouxe uma dose grande de alegria à nossa família. Nós sabíamos que quando íamos estar com ela, íamos estar mais alegres. Se primeiro era por causa da piada em si, depois já era simplesmente porque estar com ela era estar com a alegria.
A segunda qualidade é que a Bárbara gosta de cidades. Os Cavacos gostam de campo mas gostam muito de cidades também. Nós andamos muito a pé nas cidades porque gostamos da coisa particular que é as pessoas viverem em cidades - uma cidade nunca é um acaso sem valor. Ora, a Bárbara, que já tinha estudado arquitectura, cedo se apaixonou por Lisboa (quando um brasileiro diz que se apaixonou, não vale a pena duvidar). O que chegou ela a fazer? A vir de Carcavelos a pé para Lisboa, só para apreciar a região onde estava, junto ao mar e ao rio. Nesse seu empenho, como podem imaginar, conheceu Lisboa como nunca vimos nenhum amigo nosso estrangeiro conhecer. De tal modo que chegou a acontecer a nossa família ir passear num Sábado ao MAAT e, quando pensámos em convidar a Bárbara para se juntar a nós, onde estava ela? Já a passear em Lisboa, claro. Acabámos juntos e felizes em Belém nessa tarde.
A Bárbara regressou ao Brasil há umas semanas. Nas despedidas propriamente ditas houve muitas lágrimas. Mas não é aí que quero chegar, para neste texto homenagear a Bárbara. No primeiro Domingo depois do seu regresso, voltámos ao velho hábito dominical da família Cavaco. Chegar ao carro e ligar um CD de louvor. À ida e à volta. Foi bom readquirir a prática que tinha sido interrompida. E estamos a gostar de ter novamente aquele lume para acender o rastilho da nossa adoração. Mas há uma diferença. Uma parte do lume da nossa adoração queima agora mais devagar. Sem a Bárbara, a nossa alegria é mais tímida. Claro que continuamos a ser adoradores alegres de Deus, mas a nossa intensidade ficou transformada. De certo modo, a Bárbara, ao suspender a música, tornava-se a nossa própria música de louvor a Deus. Por isso, não caíamos em idolatria ao termos a Bárbara a silenciar o CD cristão porque ela fazia ainda mais vivo o nosso cristianismo.
Um dia, nos novos céus e nova terra, estas coisas que ficam meio quebradas, entre o louvor a Deus e as pessoas, ficarão para sempre concertadas. Teremos a alegria da Bárbara e a alegria da música cristã tudo a cooperar junto e ao mesmo tempo, e sem as tristezas das despedidas provisórias. Saberemos que tudo contribuirá para a alegria sem fim de estarmos rosto a rosto com Jesus.