quinta-feira, dezembro 28, 2017

Ouvir

O sermão de Domingo passado, chamado "Se Deus pode vir até mim, só Ele sabe o que posso ser", pode ser ouvido aqui.


quinta-feira, dezembro 21, 2017

Uma espécie de Sub-Judas a dar uma de Supra-Tomés

Aqui há uns meses meti-me numa polémica por causa da tradução da Bíblia feita pelo Frederico Lourenço. Poucas vezes me senti tão desapontado pela discrepância entre o potencial do debate e a desinspiração do retorno. Entre várias manifestações hostis aos meu projecto, nenhum remate ocorreu no campo (neste caso, no texto grego, nem mesmo pelo eminente Professor) mas os foras-de-jogo foram curiosos: uns quantos auto-denominados cristãos (inclusive auto-denominados cristãos evangélicos) esbracejaram explicando o meu disparate em querer defender a integridade da Bíblia, como se a verdadeira fé disso carecesse.

Ao contrário de alguns afortunados por um tipo especial de dom de fé que não tenho, o meu tipo de dom de fé é daqueles que morre se a Bíblia não for eficaz nos propósitos para o qual apareceu. Sim, a minha fé depende de a Bíblia ser inteiramente verdadeira - é essa característica que também me torna realmente protestante (e realmente cristão!).

Ter uma fé que não depende da Bíblia é ter uma fé que depende da própria pessoa que a tem. Ora, ter uma fé que depende da própria pessoa que a tem é, como se está mesmo a ver, um tipo de mérito pessoal. A pessoa que continua a ter fé mesmo que a Bíblia seja uma colecção semi-inspirada de meias-verdades é uma pessoa que atinge um tipo de qualidade espiritual - é, de certo modo, um iluminado. É, se quisermos, uma pessoa que se salva dentro de si mesma e que não depende da verdade de nada externo a si.

Lamento mas semelhante fenómeno nada tem a ver com o cristianismo. O cristianismo é uma fé inteiramente dependente de factos externos à pessoa que crê. É por isso que os cristãos acreditam que são salvos pela graça de Deus, e não por nenhum processo pessoal de amadurecimento espiritual. Por isto mesmo, Paulo dizia que se os factos externos às pessoas que criam, como, por exemplo, a ressurreição, não fossem verdadeiros, a fé era vã - uma real fantochada, por muito poética que pudesse parecer (o capítulo 15 da primeira carta de Paulo aos Coríntios serve para demolir qualquer esperança de fazer da fé um sentimento pessoal independente de factos externos objectivos).

Os cristãos protestantes lutam pela integridade da Bíblia porque sem ela a fé que têm não passa de uma fezada pessoal, um wishful thinking. Adaptando as palavras da Flannery O'Connor, ou a Bíblia é verdadeira ou para o Inferno com ela (Flannery, como católica romana que era, aplicou esta ideia à transubstanciação). Isto não quer dizer que podemos defender a integridade das Escrituras de qualquer maneira - no cristianismo não deve haver hipótese de desonestidade intelectual nessa luta (afinal, não dá tentar usar falsidade para defender a crença em Deus quando se lida com um Deus que abomina a mentira). Mas quer dizer que em qualquer discussão intelectual sobre a verdade da Bíblia está muito mais em causa do que apenas uma opinião - está em causa uma verdade que tem poder para tirar pessoas do Inferno.

Logo, é complicado o meu convívio com pessoas que se dizem cristãs mas vêm tranquilizar-me dizendo que a fé delas permanece mesmo se a autoridade da Bíblia for lascada. Estas pessoas, dizendo-se cristãs, abraçam uma fé que nada tem a ver com o cristianismo, pelo menos, como ele é explicado na Bíblia (e é óbvio que há aqui uma lógica circular a funcionar - acredito que a Bíblia é verdadeira a partir do conceito de verdade que recebo da Bíblia - é por isso que a sola scriptura faz sentido). Este cristianismo, que sobrevive internamente no espírito da pessoa ainda que a verdade externa não se verifique, é, na prática, uma fé auto-criada que não depende de ser sustentada por mais ninguém que não a própria pessoa que decidiu crer. Ora, eu não sou cristão porque a fé que tenho depende de mim. Eu sou cristão porque a fé que tenho não depende de mim - é também isto que significa ser salvo pela graça.

Sou salvo não por aquilo que faço por mim próprio, como, por exemplo, crendo além dos factos serem verdadeiros. Sou, sim, salvo por aquilo que fora de mim foi feito por mim. Sou salvo por uma verdade independente de mim e não por uma verdade subjectiva que eu crio. Não me auto-salvo, sou salvo. Não sou eu que faço; é feito por mim. Supostos cristãos que se salvam além da verdade da Bíblia, são pessoas que se auto-salvam. E a auto-salvação é a religião do Diabo, não de Deus.

Quando Jesus corrige a falta de fé de Tomé, por ter precisado de apalpar as mãos furadas de Jesus, Jesus não elogiou um tipo de fé que é independente da veracidade dos factos. Estes cristãos que têm uma fé independente dos factos querem dar uma de supra-Tomés quando na verdade são sub-Judas: o discípulo traidor é o símbolo de quem, quando não gosta dos factos acerca do Salvador, inventa os seus próprios. A traição é o que acontece também pelo facto de Judas não suportar a direcção do ministério de Jesus. Judas traiu Jesus porque, na incapacidade de louvá-lo num trajecto descendente em direcção à morte, resolveu tornar a morte o lucro possível. Entre ter um ex-mestre morto e ter um ex-mestre morto com trinta moedas nas mãos, optou pela segunda. A traição é a capacidade de tirar proveito de algo que nos parece uma bancarrota.

Os supostos cristãos que continuam a ser cristãos independentemente de a Bíblia ser verdadeira são traidores como Judas porque, na aparência de a Bíblia não ser consistente, inventam dessa derrota uma vitória pessoal. A vitória pessoal dos traidores é que eles sobrevivem sempre quando morre quem depende de uma verdade superior a si mesmo. Jesus morreu porque não pensou em si. Judas sobreviveu porque pensou em si. A ironia é que essa sobrevivência é curta e, como com Judas, termina em suicídio. Creio que acreditar no cristianismo sem acreditar na veracidade que a Bíblia pede para si mesma é um suicídio - é o destinos dos Judas desta vida.

Quando Jesus corrigiu Tomé, ele não lhe recomendou que o importante era seguir a verdade do seu coração, independentemente dos factos palpáveis. Jesus corrigiu Tomé dizendo que a verdade dos factos deve ser aceite além ainda da nossa capacidade de os verificar - bem-aventurados os que não viram mas creram. Os que continuam a crer independentemente da consistência da Bíblia são sub-Judas porque não vêem nem querem ver, não acreditam nem querem apalpar. A fé que dizem ter é um desprezo por toda a realidade que não se baseie essencialmente no amor-próprio, que é uma das características reais dos verdadeiros narcisistas.


quarta-feira, dezembro 20, 2017

Ouvir

Abraça a largura desta promessa bíblica: sonha e chora, chora e sonha. Sonhos + choros = alegria. Não subtraias nada na conta. Não temas o choro para teres uma versão infantil da vida com Deus. Mas também não temas o sonho para teres uma versão vazia e desesperançada da vida com Deus. E ainda, não temas a alegria para teres uma versão cínica da vida com Deus. Não sejas infantil. Não percas a esperança. Não sejas cínico. Sê como o Salmo 126. Sê como Jesus. Chora e sonha, sonha e chora e no fim, graças ao que ele fez na cruz, agarra a alegria.

O sermão de Domingo passado pode ser ouvido aqui.

terça-feira, dezembro 12, 2017

Um breve texto moralista a pretexto de uma rábula do Bruno Nogueira

Estou a escrever este texto porque, depois de ter lido um do meu amigo Filipe Avillez, fui ouvir uma rábula radiofónica do Bruno Nogueira, que passou esta passada Sexta-Feira, 8 de Dezembro. Nesses poucos mais de três minutos de rádio, o Bruno Nogueira fazia humor a partir da Imaculada Conceição de Maria, que nos dá o feriado (caindo num erro de confundir a Imaculada Conceição de Maria com o nascimento virginal de Cristo, como o Filipe Avillez explica).

Quero começar por fazer três qualificações prévias:

1. Sou um cristão reformado (ou protestante, ou evangélico, escolham o que preferirem). Não acredito na Imaculada Conceição de Maria (o que não deve ser confundido com o nascimento virginal de Cristo, no qual creio - é uma doutrina fundamental da ortodoxia cristã). Tentando ser respeitoso com os meus companheiros católicos romanos, quero, ainda assim, afirmar claramente que tenho esse dogma como uma invenção. Se o tivesse como verdadeiro, defendia-o. Este texto não serve para defender doutrinas que não têm qualquer fundamento nas Escrituras.

2. Como cristão reformado que sou, já no passado fiz o que o Bruno Nogueira fez. Já fiz humor com o dogma da Imaculada Conceição. E mesmo que o meu humor no passado possa ter sido de gosto duvidoso (fiz há muitos anos a mesma piada de ser José quem merece elogios por supostamente ter convivido com a virgindade permanente de Maria - coisa em que não acredito, pois creio que a Bíblia é clara a afirmar que Jesus tinha irmãos e esta interpretação tem a idade do Novo Testamento), este texto não defende que não se possa fazer piadas com dogmas como a Imaculada Conceição de Maria.

3. Como cristão que sou, há ocasiões em que me rio com o Bruno Nogueira. Confesso que há uns dias espreitei no YouTube uma das velhas emissões do Curto Circuito na Sic Radical em que a dinâmica entre o Bruno e o Rui Unas nos dava alguns momentos televisivos memoráveis. Este texto não serve para atacar o Bruno Nogueira nem o talento que, volta e meia, lhe reconheço.

No entanto, e aqui tendo chegado, gostava de dizer, não sem algum amigável paternalismo, que:

- o humor anti-católico é, para mim e na maior parte das vezes, o mesmo que bater num gordo lá da escola que sabemos de antemão que geralmente não responde. Tolerem a fraca ilustração por mais uns instantes, por favor. A Igreja Católica Romana é gorda na medida em que ocupa muito espaço no nosso país. Roma já cá estava antes que Portugal chegasse a Lisboa, por isso ela tem sempre muito por onde se lhe pegue. Ora, pegar-lhe para piadas tem, no ambiente secularizado e de esquerda que reina na comunicação social, zero de coragem. Mas alguém pode dizer, pegando na minha fraca ilustração: atenção que a Igreja Católica Romana não é um gordo qualquer - é um gordo sobre o qual se diz ter ligações ao Conselho Directivo da escola. Ok, percebo a ideia. Confesso até que uma das coisas que me irrita no catolicismo contemporâneo é precisamente este sentimento de Dono Disto Tudo que, em vez de querer ajustar contas, se torna numa perversa ausência de resposta. Os católicos romanos tornaram-se tão civilizados hoje que são poucos os que se ainda ofendem com alguma coisa (e isto agora dava pano para mangas onde vos explicava da situação filosófica complicada onde o catolicismo se encontra sobretudo desde o Vaticano II, mas vocês não tinham como seguir-me nestes meandros históricos). Mas não é pelo facto de se dizer que o gordo da escola tem ligações ao Director que lhe vou bater. Bruno, podes ser mais corajoso no humor que fazes.

- Em segundo lugar, associar o catolicismo a Salazar (como o Bruno Nogueira deixa implícito) é aquela piada que repetimos porque é nula a probabilidade de alguém que sabe mais de história estar no grupo onde a contamos. Que Salazar se relacionou com a Igreja Católica Romana e vice-versa é óbvio. Como é que seria possível alguém existir em Portugal sem ter de ter um relacionamento com a Igreja Católica Romana? Até eu tenho um relacionamento com ela, céus. Sou português, logo relaciono-me com a Igreja Católica Romana. No entanto, o “Salazar Loves Roma e Roma Loves Salazar” talvez seja um coraçãozinho que não podemos desenhar tão facilmente com o nosso canivete de hoje nas árvores da Gulbenkian - lá estou eu a resvalar outra vez para outra metáfora, e bem fraca. Onde quero chegar: Bruno, tendo em conta o tanto que se tem escrito sobre a relação entre Vaticano e Salazar, podes ser historicamente menos preguiçoso no humor que fazes.

- Em terceiro e último lugar, creio que a visão do estado laico do Bruno Nogueira exige milagres intelectuais maiores do que o da Imaculada Conceição de Maria. Creio que também fica implícito no que o Bruno diz que Portugal, por ser um estado sem religião oficial, não deveria ter feriados religiosos. Gostaria de saber que tipo de feriado é que não convoca um tipo de pensamento religioso. Por exemplo, quando celebramos o 25 de Abril, celebramo-lo porque transferimos para ele um significado de liberdade. Mas até que ponto é que a liberdade que benevolamente transferimos para o feriado do 25 de Abril nos pede algo assim tão diferente daquilo que nos pede um feriado religioso? Faço esta pergunta honestamente e sem cinismo. Onde é que termina o facto e começa o “querer acreditar” num feriado que, apesar de não ser religioso, também transmite um ideal? Ora, para mim que sou um cristão reformado que tem a Imaculada Conceição como uma invenção (nesse sentido, estou na mesma posição de descrente do Bruno), não me passa pela cabeça despir o meu país da sua relação com a história e a religião, independentemente de aderir ou não ela - também não é isso que descreve uma cultura verdadeiramente civilizada? Nesse sentido, e por fim: Bruno, podes ser um cidadão mais tolerante com as convicções dos outros que te parecem infundadas.

Se assim for, todos usaremos de maior graça uns com os outros. Sermão terminado. Vão em paz e tratem-se melhor uns aos outros.

P.S. Por outro lado, e apenas passadas algumas horas de escrever este texto, e reconhecendo que os nossos tempos de internet não nos ajudam a ser sábios, entristece-me a indiferença do Bruno ao que que é sagrado para alguns. O pior nisto tudo é que este novo sentido de humor (?) ao qual estamos a chegar é muito triste. Nem chega a ser propriamente herético, porque os hereges são geralmente mais sofisticados no conhecimento religioso que têm. É apenas triste. Estamos todos cada vez mais indiferentes uns aos outros e entretidos desde que haja uma gargalhada fácil. Que cultura que nos estamos a tornar…


quinta-feira, dezembro 07, 2017

Ouvir

O sermão de Domingo passado, chamado "Dicas para Desassossegados", pode ser ouvido aqui.

segunda-feira, dezembro 04, 2017

Updike ensina-nos a entender que a auto-ajuda é uma feitiçaria

Comecei a requisitar livros na biblioteca de Oeiras há dois meses. O meu primeiro instinto foi ir aos clássicos e por isso trouxe o "Hard Times" do Charles Dickens numa edição recente que inclui o prefácio do Chesterton. Depois, para espairecer, atirei-me a um do Malcolm Gladwell, chamado "O que o Cão Viu". O Gladwell tem rasgos a espaços mas, como o Henrique Raposo diz com razão, é demasiado esparramado por tanta coisa ao mesmo tempo que, a longo prazo, se torna pouco satisfatório.

Mas naquelas prateleiras da Biblioteca de Oeiras a minha sede conduzia-me inevitavelmente ao U de John Updike. A minha relação com o Updike é intensa, só pecando pelo facto de não me fazer bem ser exposto ao talento gráfico que tem na descrição de cenas sexuais. Updike tem uma compreensão sólida do cristianismo e, por isso, entende como a carne é o território mais seguro para observar os nossos males da alma. Há muito sexo nos livros do Updike porque ele continua (continuava) impressionado pelos efeitos do pecado na nossa vida.

Como não havias muitos updikes na biblioteca, escolhi "As Viúvas de Eastwick" julgando que escolhia "As Bruxas de Eastwick". Quando chegue a casa percebi que era uma continuação da primeira história. Mas como confio tanto no Updike, não me importei de me lançar a um segundo volume mesmo não tendo lido o primeiro. Claro que no fim fiquei com muita vontade de ir ler "As Bruxas de Eastwick", mas nem por isso me arrependi de ter começado pelo fim.

N'"As Viúvas de Eastwick" voltamos ao trio de bruxas d'"As Bruxas de Eastwick". O que John Updike também faz nestas histórias é recuperar a tradição anglo-saxónica dos contos fantásticos para efeitos morais. Nesse sentido, e talvez pela sua paradoxal juventude, pertence aos Estados Unidos o papel de não deixar morrer a fábula enfeitiçada. Na América os escritores ainda arriscam pensar de que é numa numa história de factos fantásticos que melhor se traduz o que realmente somos. E Updike serve para provar que ainda resulta.

Neste caso, John Updike sabe que ser bruxa é preferir a criação em vez do Criador. Nesse sentido, a feitiçaria é uma idolatria consciente e esclarecida. Logo, não admira que o trio de bruxas de Eastwick esteja animado de uma leitura pertinente da realidade, que rapidamente nos conquista. Por que gostamos de boas histórias com bruxas? Porque, quando sabemos o que as bruxas pensam, vemos o mundo descrito com precisão por quem escolheu dominá-lo em vez de aceitá-lo. A sabedoria das bruxas é mais realista que a dos sábios contemporâneos. Os sábios contemporâneos tendem a ser choninhas que se escondem por trás de humildade epistemológica. Já a bruxa não está para tretas: ela não escolhe saber, ela sabe porque escolheu dominar.

Hoje tendemos a ser arrogantes com o universo do ocultismo (um nome medricas para bruxaria), considerando-o campo de superstição e ignorância. Mas o poder do ocultismo reside não em ser um refúgio para a ignorância mas em ser uma procura de dominar a natureza. Se pensarmos que as bruxas são essencialmente burras, teremo-las como inofensivas. Acontece que as bruxas são efectivamente perigosas porque não desistem de lutar contra a natureza. As bruxas são seres religiosos que, em vez de aceitar a natureza com o consolo da fé, tentam dominá-la sacando-lhe novas circunstâncias. Onde a fé se resigna, o feitiço revolta-se. Naturalmente, a bruxaria oferece soluções onde o cristianismo aceita o problema.

A determinada altura, Alexandra, uma das bruxas, encontra-se com a sua filha Marcy e lamenta: "«Esta geração», pensou Alexandra. «Eles cresceram a ver-nos revoltarmo-nos contra as nossas educações piedosas e, como reacção, regressaram a todos os sentimentalismos, à família e ao lar e a outras tiranias do género (...) O nosso trabalho era fazer bebés e comprar produtos americanos. Se caíamos do comboio do casamento, não havia muito mais para nós do que montarmo-nos numa vassoura e criar feitiços. Não fiques escandalizada, isto era poder." (pág. 156 e 157). Claro que, agora mais velha, Alexandra também reconhece o peso dos anos: "Eu costumava achar que adorava a natureza, mas agora que me está a corroer de morte, apercebo-me de que a detesto e de que a receio". Uma bruxa nova não é a mesma coisa de uma bruxa velha.

Permitam-me aqui uma breve divagação. Uma boa parte do discurso político de género de hoje opera na mesma base da feitiçaria antiga, nesta tal tentativa de domínio da natureza. Por isso, não é raro que as bruxas modernas sejam das mais estridentes defensoras dos direitos LGBTEtc (há muita wiccaria na região). Volta e meia, lê-se um homem homossexual chorando o facto de os homens serem demasiados tímidos na causa. Só quem não entende a luta eterna da mulher contra a natureza se espanta com o facto de serem elas o pelotão da frente nesta luta. Para isto nem é preciso ler John Updike (ou a grande Camilla Paglia). Basta ler o terceiro capítulo do Génesis.

O maior êxito da feitiçaria é sempre o de sugerir que o conceito de pecado é absurdo. O bom bruxo (para também não dar a ideia de que a bruxaria é exclusivo feminino) não precisa de Deus porque aprendeu a perdoar-se a si próprio. Não é à toa que a bruxa Jane diz a certo ponto: "As pessoas andam por aí a chorar a morte de Deus; é a morte do pecado que me incomoda. Sem o pecado as pessoas já não são pessoas, são apenas ovelhas sem alma" (pág. 137). E, mais tarde, perto da conclusão da história, Updike escreve sobre o trio de feiticeiras: "Perdoando a si mesmas o imperdoável, livrando-se da culpa tão casualmente como, quando eram mais novas, se livravam das roupas" (pág. 296). Perdoar-se a si mesmo é o feitiço dos feitiços.

A razão porque o cristianismo deve ser impiedoso com qualquer discurso de auto-ajuda é porque, com a melhor das aparências (como geralmente têm as melhores bruxas), ele se limita a ser um feitiço. A pessoa que se aceita a si mesma como é, é uma pessoa auto-enfeitiçada. Se entendermos isto descobriremos que vivemos numa época eficazmente repaganizada no Ocidente - nesse sentido, nunca antes fomos tão ocultistas como somos hoje. Precisamos de antídotos que nos libertem da maldição da auto-estima porque a auto-estima mantém-nos sem necessidade de Deus. Deus só se torna necessário para quem ainda não aprendeu a arte dos feitiços. Como bom protestante que tento ser, deixem-me terminar com o exemplo de Maria.

A religião dos bruxos vem sempre das entranhas, das vísceras, dos elementos. Os bruxos tentam a sua própria versão da maternidade que, neste caso, não é aceitar a vida mas criar uma nova. Maria, mãe de Jesus, é a verdadeira anti-bruxa. Maria aceita uma vida da qual não chegou a participar no processo de a gerar. Maria é, toda ela, aceitação passiva, o que irrita de morte qualquer bruxa. Graças à intervenção directa do Espírito Santo, a passividade de Maria produz o que a melhor fertilidade feiticeira não consegue (daí ser especialmente triste o culto romano mariano, uma horrorosa descaracterização da fértil passividade da mãe de Jesus, em que Maria é invocada numa lógica não muito distante das invocações mágicas). Quanto mais biblicamente marianos somos, menos tentamos trocar negócios com Deus. Aceitar o que Deus nos dá é repugnante a um mundo que tenta dominar a natureza. Quem quer arriscar?