Uma espécie de Sub-Judas a dar uma de Supra-Tomés
Aqui há uns meses meti-me numa polémica por causa da tradução da Bíblia feita pelo Frederico Lourenço. Poucas vezes me senti tão desapontado pela discrepância entre o potencial do debate e a desinspiração do retorno. Entre várias manifestações hostis aos meu projecto, nenhum remate ocorreu no campo (neste caso, no texto grego, nem mesmo pelo eminente Professor) mas os foras-de-jogo foram curiosos: uns quantos auto-denominados cristãos (inclusive auto-denominados cristãos evangélicos) esbracejaram explicando o meu disparate em querer defender a integridade da Bíblia, como se a verdadeira fé disso carecesse.
Ao contrário de alguns afortunados por um tipo especial de dom de fé que não tenho, o meu tipo de dom de fé é daqueles que morre se a Bíblia não for eficaz nos propósitos para o qual apareceu. Sim, a minha fé depende de a Bíblia ser inteiramente verdadeira - é essa característica que também me torna realmente protestante (e realmente cristão!).
Ter uma fé que não depende da Bíblia é ter uma fé que depende da própria pessoa que a tem. Ora, ter uma fé que depende da própria pessoa que a tem é, como se está mesmo a ver, um tipo de mérito pessoal. A pessoa que continua a ter fé mesmo que a Bíblia seja uma colecção semi-inspirada de meias-verdades é uma pessoa que atinge um tipo de qualidade espiritual - é, de certo modo, um iluminado. É, se quisermos, uma pessoa que se salva dentro de si mesma e que não depende da verdade de nada externo a si.
Lamento mas semelhante fenómeno nada tem a ver com o cristianismo. O cristianismo é uma fé inteiramente dependente de factos externos à pessoa que crê. É por isso que os cristãos acreditam que são salvos pela graça de Deus, e não por nenhum processo pessoal de amadurecimento espiritual. Por isto mesmo, Paulo dizia que se os factos externos às pessoas que criam, como, por exemplo, a ressurreição, não fossem verdadeiros, a fé era vã - uma real fantochada, por muito poética que pudesse parecer (o capítulo 15 da primeira carta de Paulo aos Coríntios serve para demolir qualquer esperança de fazer da fé um sentimento pessoal independente de factos externos objectivos).
Os cristãos protestantes lutam pela integridade da Bíblia porque sem ela a fé que têm não passa de uma fezada pessoal, um
wishful thinking. Adaptando as palavras da Flannery O'Connor, ou a Bíblia é verdadeira ou para o Inferno com ela (Flannery, como católica romana que era, aplicou esta ideia à transubstanciação). Isto não quer dizer que podemos defender a integridade das Escrituras de qualquer maneira - no cristianismo não deve haver hipótese de desonestidade intelectual nessa luta (afinal, não dá tentar usar falsidade para defender a crença em Deus quando se lida com um Deus que abomina a mentira). Mas quer dizer que em qualquer discussão intelectual sobre a verdade da Bíblia está muito mais em causa do que apenas uma opinião - está em causa uma verdade que tem poder para tirar pessoas do Inferno.
Logo, é complicado o meu convívio com pessoas que se dizem cristãs mas vêm tranquilizar-me dizendo que a fé delas permanece mesmo se a autoridade da Bíblia for lascada. Estas pessoas, dizendo-se cristãs, abraçam uma fé que nada tem a ver com o cristianismo, pelo menos, como ele é explicado na Bíblia (e é óbvio que há aqui uma lógica circular a funcionar - acredito que a Bíblia é verdadeira a partir do conceito de verdade que recebo da Bíblia - é por isso que a
sola scriptura faz sentido). Este cristianismo, que sobrevive internamente no espírito da pessoa ainda que a verdade externa não se verifique, é, na prática, uma fé auto-criada que não depende de ser sustentada por mais ninguém que não a própria pessoa que decidiu crer. Ora, eu não sou cristão porque a fé que tenho depende de mim. Eu sou cristão porque a fé que tenho não depende de mim - é também isto que significa ser salvo pela graça.
Sou salvo não por aquilo que faço por mim próprio, como, por exemplo, crendo além dos factos serem verdadeiros. Sou, sim, salvo por aquilo que fora de mim foi feito por mim. Sou salvo por uma verdade independente de mim e não por uma verdade subjectiva que eu crio. Não me auto-salvo, sou salvo. Não sou eu que faço; é feito por mim. Supostos cristãos que se salvam além da verdade da Bíblia, são pessoas que se auto-salvam. E a auto-salvação é a religião do Diabo, não de Deus.
Quando Jesus corrige a falta de fé de Tomé, por ter precisado de apalpar as mãos furadas de Jesus, Jesus não elogiou um tipo de fé que é independente da veracidade dos factos. Estes cristãos que têm uma fé independente dos factos querem dar uma de supra-Tomés quando na verdade são sub-Judas: o discípulo traidor é o símbolo de quem, quando não gosta dos factos acerca do Salvador, inventa os seus próprios. A traição é o que acontece também pelo facto de Judas não suportar a direcção do ministério de Jesus. Judas traiu Jesus porque, na incapacidade de louvá-lo num trajecto descendente em direcção à morte, resolveu tornar a morte o lucro possível. Entre ter um ex-mestre morto e ter um ex-mestre morto com trinta moedas nas mãos, optou pela segunda. A traição é a capacidade de tirar proveito de algo que nos parece uma bancarrota.
Os supostos cristãos que continuam a ser cristãos independentemente de a Bíblia ser verdadeira são traidores como Judas porque, na aparência de a Bíblia não ser consistente, inventam dessa derrota uma vitória pessoal. A vitória pessoal dos traidores é que eles sobrevivem sempre quando morre quem depende de uma verdade superior a si mesmo. Jesus morreu porque não pensou em si. Judas sobreviveu porque pensou em si. A ironia é que essa sobrevivência é curta e, como com Judas, termina em suicídio. Creio que acreditar no cristianismo sem acreditar na veracidade que a Bíblia pede para si mesma é um suicídio - é o destinos dos Judas desta vida.
Quando Jesus corrigiu Tomé, ele não lhe recomendou que o importante era seguir a verdade do seu coração, independentemente dos factos palpáveis. Jesus corrigiu Tomé dizendo que a verdade dos factos deve ser aceite além ainda da nossa capacidade de os verificar -
bem-aventurados os que não viram mas creram. Os que continuam a crer independentemente da consistência da Bíblia são sub-Judas porque não vêem nem querem ver, não acreditam nem querem apalpar. A fé que dizem ter é um desprezo por toda a realidade que não se baseie essencialmente no amor-próprio, que é uma das características reais dos verdadeiros narcisistas.